segunda-feira, 21 de maio de 2012

Comentários à Lei 12.650/2012, que acrescentou o inciso V ao art. 111 do Código Penal








Márcio André Lopes Cavalcante*

Foi publicada no último dia 18/05, a Lei n.° 12.650/2012, que versa sobre prescrição penal.

Vamos conhecer um pouco mais sobre o que dispõe esta nova lei.

Sobre o que trata a Lei n.° 12.650/2012
Esta Lei altera o Código Penal, dispondo sobre a prescrição nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes.

Conceito de prescrição
Pode-se conceituar prescrição como
-          a perda do direito do Estado de
-          punir (pretensão punitiva) ou
-          executar uma punição já imposta (pretensão executória)
-          em razão de não ter agido (inércia) nos prazos previstos em lei.

Natureza jurídica
A prescrição é causa de extinção da punibilidade (art. 107, IV do CP).
Embora a prescrição produza efeitos no processo penal, ela possui natureza de direito penal (direito material) tendo em vista que influencia diretamente no direito ou não do Estado de punir. Logo, são aplicados à prescrição os “princípios” do direito penal, dentre eles o da irretroatividade da lei ulterior mais gravosa.

Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva
Quando começa a correr o prazo da prescrição? Em outras palavras, a partir de quando começa o prazo para que o Estado-acusação tente punir uma pessoa que, supostamente, cometeu um crime?

Os termos iniciais da prescrição estão previstos nos incisos do art. 111 do Código Penal:
Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
I - do dia em que o crime se consumou;
II - no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa;
III - nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência;
IV - nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido.
Este artigo, em sua redação original, trazia:
  • Uma regra geral para os crimes consumados (ou seja, regra válida para quase todos os crimes consumados); e
  • Uma regra geral para os crimes tentados (ou seja, regra válida para quase todos os crimes tentados);
  • Três exceções (ou seja, três regras específicas para alguns tipos de crimes).

As regras e as exceções são as seguintes:

Regra geral no caso de
crimes consumados
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que o crime se CONSUMOU.
Regra geral no caso de
crimes tentados
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que CESSOU A ATIVIDADE CRIMINOSA.
1ª regra específica:
crimes permanentes
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que CESSOU A PERMANÊNCIA.
2ª regra específica:
crime de bigamia
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que O FATO SE TORNOU CONHECIDO.
3ª regra específica:
crime de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que O FATO SE TORNOU CONHECIDO.
Obs: existem outras regras de termo inicial estabelecidas por leis especiais, como a Lei de Falência (p. ex.), ou por conta de entendimentos jurisprudenciais, como no caso dos crimes habituais. Vamos nos concentrar, no entanto, apenas nas regras previstas no Código Penal.

O que fez a Lei n.° 12.650/2012?
A Lei n.° 12.650/2012 acrescentou o inciso V no art. 111 do Código Penal prevendo uma nova regra específica para o termo inicial da prescrição:

Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

4ª regra específica:
crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que a VÍTIMA COMPLETAR 18 (dezoito) anos,
salvo se a esse tempo já houver sido proposta ação penal.
Exemplo prático de aplicação desta nova regra:
“X”, homem de 30 anos, é vizinho da Sra. Maria, que tem uma filha (“A”) de 12 anos de idade.
“X”, no dia 20 de junho de 2012, aproveitando-se que Maria não estava em casa e que tinha livre acesso à casa da vizinha, pratica ato libidinoso com a pequena “A”. Antes de sair da casa, “X” ainda subtrai um cordão de ouro pertencente à “A” mediante grave ameaça.

Que crimes praticou “X”?
·         Estupro de vulnerável (art. 217-A do CP): pena de 8 a 15 anos.
·         Roubo (art. 157 do CP): pena de 4 a 10 anos.

“A” fica com medo de contar o que aconteceu para sua mãe. Por isso, omite o estupro e afirma que perdeu o cordão de ouro.

Em 2034, ou seja, 22 anos após este fato, “A” reencontra “X” e os fatos que viveu e que procurou esquecer voltam à tona em sua memória. Ela se revolta e fica incomodada diante da impunidade de “X” e da possibilidade de ele estar praticando com outras menores o mesmo que fez com ela. Diante disso, ela decide procurar a polícia e relatar o que aconteceu no dia 20 de junho de 2012.

Do ponto de vista apenas da prescrição, o Delegado de Polícia poderá instaurar inquérito para apurar tais fatos e o Ministério Público poderá oferecer denúncia pelos crimes praticados por “X” contra “A”?
  • No que tange ao crime de roubo: NÃO (está prescrito).
  • No que pertine ao crime de estupro: SIM.

Quando começou a correr o prazo prescricional para estes crimes?
  • No caso do roubo: o prazo prescricional começou a correr do dia em que o crime se consumou (20/06/2012), nos termos do art. 111, I, do CP.
  • No caso do estupro: O prazo prescricional começou a correr não no dia em o crime se consumou, mas sim na data em que a vítima (“A”) completou 18 (dezoito) anos, conforme previsto no novel inciso V do art. 111 do CP.

Logo, no caso do roubo (art. 157, caput), o crime já prescreveu (prescreve em 16 anos), mas o estupro de vulnerável ainda não por conta do inciso V do art. 111, inserido no CP pela Lei n.° 12.650/2012.

Na hipótese narrada, o crime de estupro de vulnerável (que prescreve em 20 anos, nos termos do art. 109, I, do CP), somente irá prescrever 20 anos após a vítima “A” ter completado 18 anos.

Entendendo a parte final do inciso V
O inciso V do art. 111 possui a seguinte redação:
Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
(...)
V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

O que significa esta parte final (destacada) do inciso V?
Se for cometido um crime contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, o prazo prescricional só começa a correr quando a vítima completar 18 anos.
No entanto, o fato de o prazo prescricional estar suspenso não impede que seja, desde logo, instaurado o inquérito policial para apurar este estupro e que o Ministério Público ofereça denúncia.
Assim, em nosso exemplo, se “A”, mesmo antes de completar 18 anos, tivesse contado para sua mãe o que aconteceu, ou se o crime tivesse sido descoberto por qualquer outro meio, seria possível que as investigações fossem iniciadas imediatamente e que o MP propusesse a ação penal em seguida.
Vamos então supor que “A”, no mesmo dia, contou o que aconteceu para sua mãe. Esta procurou o Delegado, que presidiu um IP e remeteu para o MP. O Promotor ofereceu denúncia (propôs a ação penal) contra “X” no dia 12 de agosto de 2012.
Significa dizer que, nesse caso, em 12/08/2012, começou a correr o prazo prescricional. Trata-se da situação prevista na parte final do inciso V do art. 111.

Aprofundando o debate sobre a parte final deste inciso V
Acredito que a interpretação que deveria prevalecer é a exposta acima. No entanto, pode ser que surjam correntes diferentes. Vamos então polemizar um pouco?

Pergunta: no caso da parte final do inciso V do art. 111, tendo sido proposta a ação penal mesmo antes da vítima completar 18 anos, qual é o termo inicial da prescrição?

1ª corrente: é a data da propositura da ação penal. É a interpretação que reputo mais adequada com o espírito protecionista da vítima revelado pelo legislador.

2ª corrente: é a data do recebimento da denúncia, com base em uma interpretação conjugada com o art. 117, I, do CP. É a posição defendida por Rogério Sanches.

3ª corrente: é a data da consumação do delito. Isso porque a parte final do inciso V do art. 111 nega a exceção, sem estabelecer expressamente um novo marco inicial da prescrição. Logo, volta-se à regra geral, que é o art. 111, I, do CP. Trata-se da posição que pode ser adotada por doutrinadores mais “garantistas”, com base em uma interpretação mais benéfica ao réu.

Crítica a esta eventual 3ª corrente:
Vamos demonstrar a impertinência da interpretação baseada nesta 3ª corrente com um exemplo hipotético:
“João” e “Maria”, motorista e babá, praticam, na presença de “Ricardo” (4 anos de idade), conjunção carnal, a fim de satisfazer lascívia própria. Este fato ocorreu em 10/06/2012.
“João” e “Maria” cometeram o delito previsto no art. 218-A do Código Penal. Trata-se de crime contra a dignidade sexual de criança ou adolescente.

Quando começa a correr o prazo prescricional deste delito?
R: No dia em que a “Ricardo” completar 18 anos (em 10/03/2026). Até lá, o prazo prescricional está suspenso por força da parte inicial do inciso V do art. 111 do CP.

Prazo prescricional em abstrato do crime do art. 218-A do CP
A pena máxima do crime do art. 218-A é de 4 anos. Logo, este delito prescreve em 8 anos.
No exemplo dado, no dia em que “Ricardo” completou 18 anos (em 10/03/2026), ele procurou o MP e relatou o ocorrido naquele dia. O Promotor ajuizou a ação penal. Este crime não estava prescrito e somente prescreverá em 2034.

Agora imaginemos que, quando “Ricardo” completou 14 anos, ou seja, 10 anos após o fato, ele decidiu contar aos pais o que aconteceu naquele dia 10/06/2012. Os pais de “Ricardo” procuraram o MP.
Se adotarmos a 3ª corrente, o MP não poderá ajuizar a ação penal porque se o fizer antes de “Ricardo” completar 18 anos, o prazo prescricional será o da regra geral do inciso I do art. 111, ou seja, o prazo prescricional terá iniciado na data em que o crime se consumou (10/06/2012). Como já se passaram mais de 10 anos, o crime estaria prescrito.

Desse modo, chegaríamos à absurda conclusão de que o MP teria que esperar até que a vítima completasse 18 anos para então ajuizar a ação penal e, assim, o prazo prescricional ser contado da data do 18º aniversário.

Vale ressaltar que a referida mudança legislativa atendeu a interesses de vitimologia no sentido de proteger os interesses da vítima.

Por essa razão, a interpretação exposta na 3ª corrente não deve ser adotada.

Analisando a expressão “crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos no CP ou em leis especiais”
Vejamos mais uma vez a redação do inciso V do art. 111:
Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
(...)
V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

O que é criança e adolescente?
Segundo o critério legal do ECA (art. 2º), criança é a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.

Crime praticado contra a pessoa em seu 18º aniversário:
No dia em que a pessoa completa 18 anos, ela deixa de ser adolescente e passa a ser adulta. Assim, se a pessoa for estuprada no dia do seu 18º aniversário, não se aplica este art. 111, V do CP.

Quais são os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes previstos no Código Penal?
  • Estupro (art. 213, § 1º);
  • Violação sexual mediante fraude (art. 215);
  • Assédio sexual (art. 216-A, § 1º);
  • Estupro de vulnerável (art. 217-A);
  • Corrupção de menores (art. 218);
  • Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A);
  • Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B);
  • Mediação para servir a lascívia de outrem (art. 227, § 1º);
  • Rufianismo (art. 230, § 1º);
  • Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231, § 2º, I);
  • Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231-A, § 2º, I).

Existem atualmente crimes contra a dignidade sexual praticados contra crianças e adolescentes previstos em leis especiais?

Sobre este tema, certamente surgirão duas correntes:

1ª corrente: NÃO. A única lei que fala literalmente em “crimes contra a dignidade sexual” é o Código Penal. Aplicar esta regra do inciso V do art. 111 do CP a outros crimes sexuais contra crianças e adolescentes que não tem a rubrica de “crimes contra a dignidade sexual” seria analogia in malam partem.

2ª corrente: SIM. Quando o novel inciso V do art. 111 do CP menciona “crimes contra a dignidade sexual” ele está se referindo ao bem jurídico protegido, ou seja, trata-se de um gênero que abrange todas as espécies de “delitos sexuais” envolvendo crianças e adolescentes. A expressão “crimes contra a dignidade sexual” é apenas um eufemismo para “crimes sexuais” ou uma atualização vernacular para “crimes contra a liberdade sexual”. Assim, esta expressão utilizada pela Lei (“crimes contra a dignidade sexual”) abrange todas as infrações penais cuja ofensa ao bem jurídico envolva práticas ligadas à sexualidade. Não se trata de analogia in malam partem, mas tão somente do exercício da interpretação teleológica e histórica. É a minha posição sobre o tema.

Desse modo, a meu sentir, o inciso V do art. 111 do CP é aplicável aos delitos previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente considerando que se tratam de crimes praticados contra crianças e adolescentes no contexto da sexualidade. Seria absurdo e excessivo apego ao formalismo dizer que tais delitos não ofendem a dignidade sexual das crianças e dos adolescentes, enquanto bem jurídico tutelado, pelo simples fato de o ECA não utilizar esta expressão.

Observação importante: os crimes de que trata o inciso V do art. 111 não se confundem, necessariamente, com os crimes contra a dignidade sexual praticados contra vulneráveis.
Em outras palavras, “crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes” não é sinônimo de “crimes contra a dignidade sexual praticados contra vulneráveis”. Provemos:
  • Existe crime contra a dignidade sexual de vulnerável que não se enquadra no inciso V do art. 111. Ex: estupro de vulnerável praticado contra pessoa de 20 anos com deficiência mental (art. 217-A, § 1º).
  • Existe crime contra a dignidade sexual de adolescente que não é crime contra a dignidade sexual de vulnerável. Ex: estupro praticado contra pessoa de 16 anos sem enfermidade mental e que, no caso concreto, podia oferecer resistência (art. 213, § 1º).

Conclusão: toda criança é vulnerável para fins de crimes contra a dignidade sexual, mas nem todo adolescente será vulnerável sob este aspecto.

O adolescente só será considerado vulnerável para fins de crime contra a dignidade sexual se:
  • For maior que 12 e menor que 14 anos; ou
  • Não tiver o necessário discernimento para a prática do ato por enfermidade ou deficiência mental; ou
  • Não podia, no caso concreto, por qualquer causa, oferecer resistência.

Os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes são sempre de ação penal pública incondicionada.

Vigência da Lei n.° 12.650/2012
A Lei n.° 12.650/2012 entrou em vigor na data de sua publicação (18/05/2012), não possuindo vacatio legis.

Lei irretroativa
Conforme já explicado, a prescrição é matéria penal, ou seja, de direito material e não de direito processual. Desse modo, submete-se à regra segundo a qual a nova lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF/88). No caso concreto, a Lei n.° 12.650/2012, ao retardar o início da contagem da prescrição, torna mais gravosa a situação para o réu. Logo, não pode ser aplicada retroativamente aos fatos praticados antes de 18/05/2012, data em que entrou em vigor.


* Juiz Federal Substituto (TRF da 1ª Região).
Foi Defensor Público estadual, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.

Como citar este texto em trabalhos científicos:

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.650/2012, que acrescentou o inciso V ao art. 111 do Código Penal. Dizer o Direito. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2012/05/comentarios-lei-126502012-que.html. Acesso em: dd mm aa

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