quarta-feira, 27 de junho de 2012

STF decide que a definição de organização criminosa estabelecida na Convenção de Palermo não pode ser usada como crime antecedente da lavagem de dinheiro



O delito de lavagem de dinheiro é previsto no art. 1º, da Lei n.° 9.613/98.

A lavagem de dinheiro é classificada como um crime derivado, acessório ou parasitário, considerando que se trata de infração penal que pressupõe a ocorrência de um delito anterior (crime antecedente).

Repare na redação da Lei n.° 9.613/98, em especial no inciso VII do art. 1º:
Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:
I - de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
II - de terrorismo;
II - de terrorismo e seu financiamento;
III - de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;
IV - de extorsão mediante sequestro;
V - contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;
VI - contra o sistema financeiro nacional;
VII - praticado por organização criminosa.
VIII – praticado por particular contra a administração pública estrangeira (arts. 337-B, 337-C e 337-D do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal).
Pena: reclusão de três a dez anos e multa.

Desse modo, as infrações penais listadas nesses incisos do art. 1º são consideradas “crimes antecedentes” do delito de lavagem de dinheiro.

Para que seja recebida a denúncia pelo crime de lavagem, deve haver, no mínimo, indícios da prática do crime antecedente ou crime-base:
Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:
(...)
II - independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país;
(...)
§ 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime.

Registre-se que não se exige condenação prévia do crime antecedente para que seja iniciada a ação penal pelo delito de lavagem de dinheiro.

Caso concreto julgado pela 1ª Turma do STF:
O Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou ação penal contra Estevan Hernandes Filho e Sônia Haddad Moraes Hernandes, membros da Igreja Renascer em Cristo, imputando-lhes a suposta prática do delito tipificado no art. 1º, inciso VII, da Lei n.° 9.613/98 (lavagem de dinheiro).

A denúncia narrava que os acusados seriam membros de uma organização criminosa que se valeria de estrutura de entidade religiosa e de empresas vinculadas para arrecadar vultosos valores, ludibriando fiéis mediante fraudes, desviando numerários oferecidos para finalidades ligadas à Igreja da qual seriam dirigentes, em proveito próprio e de terceiros.

O Ministério Público argumentava que o conceito de organização criminosa pode ser encontrado na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 5.015/2004:
Artigo 2. Para efeitos da presente Convenção, entende-se por: a) ‘Grupo criminoso organizado’ - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.

A denúncia foi recebida pelo juízo de 1ª instância.

Contra o ato do juiz que recebeu a denúncia foi impetrado habeas corpus no Tribunal de Justiça de São Paulo, que indeferiu a ordem.

Contra essa decisão do TJSP, a defesa impetrou novo HC, desta vez para o STJ, que também indeferiu a ordem.

Contra essa decisão do STJ, a defesa finalmente ajuizou novo HC, desta vez para o STF.

O que alegava a defesa no HC?
O principal argumento era o de que a conduta narrada na denúncia era atípica.
Para que haja o enquadramento de uma conduta como lavagem de dinheiro é necessária a ocorrência de um crime antecedente.
O crime antecedente descrito pelo Ministério Público na denúncia foi o de organização criminosa.
Sucede que, segundo a defesa, o crime de “organização criminosa” não foi definido (conceituado) por nenhuma lei no Brasil.
Logo, não caberia denúncia de lavagem de dinheiro com base em crime praticado por organização criminosa (art. 1º, VII, da Lei n.° 9.613/98).

A 1ª Turma do STF acolheu o argumento da defesa?
SIM.

A 1ª Turma deferiu habeas corpus para trancar ação penal instaurada em desfavor do casal.

Segundo entendeu o STF, utilizar a Convenção de Palermo nesse caso violaria o princípio da legalidade, segundo o qual não pode haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (CF, art. 5º, XXXIX).

Assim, para que a organização criminosa seja usada como crime antecedente da lavagem de dinheiro faz-se necessária a edição de uma lei em sentido formal e material definindo o que seja organização criminosa.

O Ministro Relator afirmou que a melhor doutrina defende que a ordem jurídica brasileira ainda não contempla previsão normativa do crime de organização criminosa.

Realçou-se que, no rol taxativo do art. 1º da Lei 9.613/98, não consta sequer menção ao delito de quadrilha.

Desse modo, quando o inciso VII do art. 1º menciona “organização criminosa”, deve-se entender essa expressão em sentido estrito, não abrangendo a quadrilha ou bando organizado, mas sim uma definição que ainda carece de lei.


Divergência de entendimento com o STJ
A Lei n.º 9.034/95 dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas.

Ocorre que a referida lei não definiu o que seja organização criminosa.

Justamente por isso, alguns autores afirmam que a definição de organização criminosa foi inserida em nosso ordenamento jurídico por meio da Convenção de Palermo, de 2000. Foi esse o entendimento defendido pelo Ministério Público de São Paulo no caso acima analisado e que não foi acolhido pela 1ª Turma do STF.

O STJ, no entanto, possui inúmeros precedentes adotando essa tese, ou seja, a de que se pode utilizar o conceito de “organização criminosa” previsto na Convenção de Palermo:
II. A conceituação de organização criminosa se encontra definida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, que promulgou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional - Convenção de Palermo, que entende por grupo criminoso organizado, "aquele estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material".
(HC 171.912/SP, Rel. Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 13/09/2011)

O conceito jurídico da expressão organização criminosa ficou estabelecido em nosso ordenamento com o Decreto n.º 5.015, de 12 de março de 2004, que promulgou o Decreto Legislativo nº 231, de 29 de maio de 2003, que ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo). Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal.
(HC 129.035/PE, Rel. Ministro CELSO LIMONGI (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), Rel. p/ Acórdão Ministro HAROLDO RODRIGUES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/CE), SEXTA TURMA, julgado em 16/08/2011, DJe 03/11/2011)

Desse modo, atualmente, temos uma divergência entre o STJ e a 1ª Turma do STF:
1ª Turma do STF
A organização criminosa não pode ser usada como crime antecedente da lavagem de dinheiro, considerando que não existe definição legal no país.
A definição contida na Convenção de Palermo não vale para tipificar o art. 1º, VII, da Lei n.° 9.613/98.
STJ
A conceituação de organização criminosa se encontra definida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto 5.015, de 12 de março de 2004, que promulgou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional - Convenção de Palermo.
Logo, é possível a imputação do crime previsto no art. 1º, VII, da Lei n.° 9.613/98.

Esse tema deve ser dirimido em breve pelo Plenário do STF no caso do “Mensalão”. Vamos aguardar e acompanhar. Por enquanto, o panorama é esse.

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