quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Análise jurídica da decisão do STF que entendeu não ser possível a desaposentação



Conceito
A desaposentação consiste no ato do segurado de renunciar à aposentadoria que recebe a fim de que possa requerer uma nova aposentadoria (reaposentação), desta vez mais vantajosa, no mesmo regime previdenciário ou em outro.

Hipóteses mais comuns
O pedido de desaposentação ocorre normalmente nos casos em que a pessoa se aposenta, mas continua trabalhando e, portanto, contribuindo. Assim, este tempo de contribuição após a primeira aposentadoria, se computado, geraria um provento maior, o que justificaria a renúncia ao benefício que a pessoa estava recebendo para que pudesse formular novo pedido de aposentação.
Outra hipótese seria no caso de um aposentado pelo regime geral (INSS) que preste um concurso e, depois de anos trabalhando no cargo público concursado, requeira a renúncia do benefício no regime geral para requerer uma nova aposentadoria no regime próprio dos servidores públicos, utilizando o tempo de contribuição anterior.

Mas a pessoa aposentada voltar a trabalhar deve pagar contribuição previdenciária?
SIM. O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS) que estiver exercendo ou que voltar a exercer atividade remunerada é segurado obrigatório em relação a essa atividade, ficando sujeito ao pagamento de contribuição previdenciária, para fins de custeio da Seguridade Social (§ 3º do art. 11 da Lei nº 8.213/91).

O INSS aceita o pedido de desaposentação?
NÃO. Para o INSS, a desaposentação não possui previsão legal. Ao contrário, segundo a autarquia previdenciária, a desaposentação é proibida pelo § 2º do art. 18 da Lei nº 8.213/91 e pelo art. 181-B do Regulamento da Previdência Social:

Lei nº 8.213/91:
Art. 18 (...) § 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado.

Decreto nº 3.048/99:
Art. 181-B. As aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela previdência social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis.

Assim, quando o segurado formulava requerimento administrativo de desaposentação, este era negado pelo INSS.

“Ação de desaposentação”
Como o INSS nunca admitiu administrativamente, os segurados passaram a ajuizar ações judiciais postulando a desaposentação.

Como a jurisprudência se posicionou a respeito do tema? Os Tribunais admitiam a desaposentação?
SIM.

O STJ entendia que seria possível a renúncia à aposentadoria por tempo de serviço (desaposentação) objetivando a concessão de novo benefício mais vantajoso da mesma natureza (reaposentação), com o cômputo dos salários de contribuição posteriores à aposentadoria anterior, não sendo exigível, nesse caso, a devolução dos valores recebidos em razão da aposentadoria anterior.
Para o STJ, a aposentadoria, assim como os demais benefícios previdenciários, seria um direito patrimonial disponível e, portanto, suscetível de desistência pelos seus titulares, prescindindo-se da devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado desejasse preterir para a concessão de novo e posterior jubilamento.
STJ. 1ª Seção. REsp 1334488/SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 08/05/2013.

Em suma, o STJ admitia a desaposentação.

A Turma Nacional de Uniformização (TNU), órgão jurisdicional máximo na estrutura dos Juizados Especiais Federais, também seguia a mesma linha e concordava com o pedido dos segurados.

Posição do STF
Ocorre que o tema ainda não havia sido analisado por quem, na prática, dá a última palavra sobre os casos jurídicos no Brasil: o Supremo Tribunal Federal.
No dia de ontem (27/10/2016), o STF terminou o julgamento sobre a questão e decidiu que, segundo a legislação atualmente em vigor, NÃO É POSSÍVEL A DESAPOSENTAÇÃO. Por quê?

Art. 18, § 2º da Lei nº 8.213/91
A desaposentação é expressamente proibida pelo art. 18, § 2º da Lei nº 8.213/91, cuja redação novamente se transcreve:
Art. 18 (...)
§ 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado.

Desse modo, o § 2º do art. 18 afirma que se o aposentado voltar a contribuir, mesmo assim não terá direito a nenhuma prestação da Previdência Social (ex: nova aposentadoria ou melhora da aposentadoria que já recebe). Esta regra só comporta duas exceções: salário-família e reabilitação profissional. Tirando esses duas situações, o aposentado que volta a trabalhar não possui direito a nenhuma outra vantagem pelo fato de estar novamente pagando contribuições para a Previdência Social.

Alegação de que o art. 18, § 2º da Lei nº 8.213/91 seria inconstitucional
Os aposentados que queriam a desaposentação alegavam que esse dispositivo seria inconstitucional. Isso porque se o aposentado voltou a trabalhar e está pagando todos os meses contribuição previdenciária, seria justo que esse valor recolhido para a Previdência fosse utilizado em seu favor para melhorar a sua aposentadoria. Assim, se ele estava recebendo aposentadoria de R$ 3 mil e, mesmo depois de aposentado, trabalhou e contribuiu por mais 10 anos, seria justo que essas contribuições fossem utilizadas para se fazer um novo cálculo da aposentadoria e o valor de R$ 3 mil fosse aumentado.
O STF, contudo, não concordou com a tese e afirmou que a regra prevista no art. 18, § 2º da Lei nº 8.213/91 não viola a Constituição Federal.

Por que não é inconstitucional?
Porque o sistema previdenciário brasileiro possui uma característica muito importante. Ele é SOLIDÁRIO (art. 3º, I, da CF/88).

Em que consiste o princípio da solidariedade?
O Prof. Wladimir Novaes Martinez explica em que consiste o princípio da solidariedade:
"161. Princípio da solidariedade social — Na previdência social, a solidariedade é essencial, e, exatamente por sua posição nuclear, esse preceito sustentáculo distinguiu-se dos básicos e técnicos, sobrepairando como diretriz elevada. Ausente, será impossível organizar a proteção social.
a) significado: Solidariedade quer dizer cooperação da maioria em favor da minoria, em certos casos, da totalidade em direção à individualidade. Dinâmica a sociedade, subsiste constante alteração dessas parcelas e, assim, num dado momento, todos contribuem e, noutro, muitos se beneficiam da participação da coletividade. Nessa ideia simples, cada um também se apropria de seu aporte. Financeiramente, o valor não utilizado por uns é canalizado para outros.
Significa a cotização de certas pessoas, com capacidade contributiva, em favor dos despossuídos. Socialmente considerada, é ajuda marcadamente anônima, traduzindo mútuo auxílio, mesmo obrigatório, dos indivíduos." (MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de Direito Previdenciário. São Paulo: LTr, 5ª ed., 2013, p. 117).

Desse modo, o valor que o indivíduo paga a título de contribuição previdenciária não é empregado apenas para os seus benefícios, sendo também utilizado para custear os benefícios de outras pessoas que ela nem conhece. Ex: um jovem de 18 anos começa a trabalhar em seu primeiro emprego; com uma semana de trabalho, ele sofre acidente e fica total e permanentemente incapacitado para atividades laborais; como segurado obrigatório do INSS, ele terá direito de receber aposentadoria por invalidez mesmo não tendo pagado nem mesmo sequer uma contribuição previdenciária. O valor que irá custear esse benefício a ele é oriundo das contribuições previdenciárias pagas por todos os demais segurados.

Princípio da solidariedade e contribuição dos aposentados
Assim, os aposentados que voltam a trabalhar pagam contribuição previdenciária não porque esses recursos serão utilizados em seu favor, mas sim para ajudar na concessão de benefícios previdenciários que serão concedidos a outras pessoas que eles nem conhecem. Essa "ajuda" ocorre em nome do princípio da solidariedade. É o que explica Frederico Amado:
"Essa norma principiológica fundamenta a criação de um fundo único de previdência social, socializando-se os riscos, com contribuições compulsórias, mesmo daquele que já se aposentou, mas persiste trabalhando, embora este egoisticamente normalmente faça queixas da previdência por continuar pagando as contribuições." (AMADO, Frederico. Curso de Direito e Processo Previdenciário. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 37).

Nesse sentido, votou o Min. Teori Zavascki: "essas contribuições efetuadas pelos aposentados destinam-se ao custeio atual do sistema de seguridade, e não ao incremento de um benefício para o segurado ou seus dependentes”. 

Desse modo, para o STF, não é inconstitucional o aposentado pagar contribuições para a Previdência Social e não usufruir uma melhora por causa disso. Não é inconstitucional porque tal contribuição está amparada pelo princípio da solidariedade (art. 3º, I, da CF/88).

O argumento de que a desaposentação é uma "renúncia" à aposentadoria não foi acolhido
Um dos argumentos dos aposentados para defenderem a desaposentação é o de que ela seria permitida porque consistiria na renúncia da aposentadoria (que é um direito patrimonial disponível) e, após renunciar, a pessoa pediria novamente uma nova aposentadoria, agora somando os novos períodos de contribuição.
O STF, contudo, não acolheu esta alegação.
Segundo argumentou o Min. Teori Zavascki, não se trata de uma simples "renúncia", mas sim uma verdadeira "substituição" de uma aposentadoria menor por uma maior, ou seja, uma progressão de escala. Essa "troca" de benefício não tem amparo na lei. Logo, não existe "dever" da Previdência de fazer essa substituição.
O RGPS tem natureza estatutária ou institucional, e não contratual. Isso significa dizer que a previdência administrada pelo INSS deve sempre ser baseada na lei, sem qualquer espaço para a aquisição de direitos subjetivos sem previsão legal. Somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias.

Resultado da votação: 7 x 4
A favor da desaposentação:
Contrários à desaposentação:
Min. Marco Aurélio
Min. Roberto Barroso
Min. Rosa Weber
Min. Ricardo Lewandoski
Min. Dias Toffoli
Min. Teori Zavascki
Min. Edson Fachin
Min. Luiz Fux
Min. Gilmar Mendes
Min. Celso de Mello
Min. Cármen Lúcia

A desaposentação possui vedação constitucional? A CF/88 proíbe a desaposentação?
NÃO. Não existe uma proibição na Constituição Federal para a desaposentação. Quem veda a desaposentação é o art. 18, § 2º da Lei nº 8.213/91. Isso significa dizer que o Congresso Nacional pode editar uma lei alterando esse dispositivo e prevendo a desaposentação. Essa mudança seria válida.
Dessa forma, a conclusão do STF foi a de que, atualmente, a lei veda a desaposentação, não havendo nenhum problema caso a lei seja alterada.

Tese firmada pelo STF
Como a questão foi decidida pelo STF sob a sistemática da repercussão geral, foi fixada uma tese que vale para todos os processos envolvendo o tema. Confira:

No âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), somente lei pode criar benefícios e vantagens previdenciárias, não havendo, por ora, previsão legal do direito à ‘desaposentação’, sendo constitucional a regra do artigo 18, parágrafo 2º, da Lei 8.213/1991.
RE 381367, RE 827833 e RE 661256, Rel. para acórdão Min. Dias Toffoli, julgados em 26/10/2016 (repercussão geral).

O que acontecerá com as pessoas que ganharam na justiça o direito à desaposentação? Terão que devolver os valores recebidos?
O STF anunciou que ainda irá apreciar este tema no julgamento de embargos de declaração, oportunidade na qual poderá modular os efeitos da decisão. Assim, pode ser que o STF declare que devem permanecer válidas as desaposentações concedidas antes da decisão. É uma possibilidade bem factível.

Enquanto o STF não julga a eventual modulação, vamos aqui aventar possíveis cenários, conforme a jurisprudência atualmente majoritária:

1) Se o segurado tinha uma sentença favorável de 1ª instância, estava recebendo a aposentadoria a maior por força da decisão judicial e o processo ainda não havia se encerrado: neste caso, a decisão será reformada em 2ª instância com base na decisão do STF e, pela jurisprudência do STJ, o segurado terá que devolver os valores recebidos, não podendo alegar boa-fé (REsp 1.401.560-MT, julgado em 12/2/2014. Recurso repetitivo. Info 570).

2) Se o segurado tinha uma sentença favorável, esta já havia sido confirmada em 2ª instância e o processo ainda não havia se encerrado: a decisão será reformada com base na decisão do STF e, pela jurisprudência do STJ, o segurado NÃO terá que devolver os valores recebidos, em razão de ter havido dupla conformidade (EREsp 1.086.154-RS, julgado em 20/11/2013. Info 536).

3) Se o segurado tinha uma sentença favorável concedendo a desaposentação e esta havia transitado em julgado. Neste caso, surgem duas hipóteses:

3.1) Se o processo tramitou no Juizado Especial Federal: o INSS não poderá ajuizar ação rescisória (art. 59 da Lei nº 9.099/95) e, portanto, o segurado continuará recebendo normalmente o benefício majorado.

3.2) Se o processo tramitou no rito ordinário: aqui haverá intensa polêmica se caberá ou não ação rescisória. Parece-me que cabe, não se aplicando ao caso a Súmula 343-STF ("Não cabe ação rescisória por ofensa a literal dispositivo de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais"). Não incide a súmula por conta da previsão contida no art. 966, V, § 5º e no art. 525, § 15 do CPC/2015, que são posteriores ao enunciado:
Art. 966.  A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
V - violar manifestamente norma jurídica;
(...)
§ 5º  Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.

Art. 525 (...)
§ 12.  Para efeito do disposto no inciso III do § 1o deste artigo, considera-se também inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
§ 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido, é a posição de Fredie Didier e Leonardo Cunha:
"b) Divergência na interpretação do Direito entre tribunais, sem que existisse, ao tempo da prolação da decisão rescindenda, precedente vinculante do STF ou STJ (art. 927, CPC) sobre o tema; após o trânsito em julgado, sobrevém precedente obrigatório do tribunal superior: observado o prazo da ação rescisória, há direito à rescisão, com base nesse novo precedente, para concretizar o princípio da unidade do Direito e a igualdade. Note que o § 15 do art. 525, examinado mais à frente, reforça a tese de que cabe ação rescisória para fazer prevalecer posicionamento de tribunal superior formado após a coisa julgada." (DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3., 13ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 496).

Assim, em tese, poderá o INSS ajuizar ação rescisória nesta hipótese.

Provável modulação dos efeitos
Penso, contudo, que o STF, por razões de segurança jurídica, a exemplo do que fez no caso da discussão quanto à necessidade ou não de prévio requerimento (RE 631240/MG), deverá fixar uma regra de transição ou, o mais provável, modular os efeitos da decisão e afirmar que ela produzirá efeitos ex nunc.

Márcio André Lopes Cavalcante
Professor



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