quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Concessionária de transporte ferroviário deve pagar indenização à passageira que sofreu assédio sexual praticado por outro usuário no interior do trem




Imagine a seguinte situação adaptada:
Maria estava voltando para casa, por volta das 18h, em um trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), na cidade de São Paulo/SP.
Ela estava em pé dentro do vagão e, de repente, “foi importunada por um homem que se postou atrás da mesma, esfregando-se na região de suas nádegas”, sendo que, ao se queixar com o agressor, verificou que ele “estava com o órgão genital ereto”.
Vale ressaltar que, na parada seguinte, Maria informou o fato à equipe da CPTM, que localizou e conduziu o agressor à delegacia.
A vítima ficou muito abalada emocionalmente com o episódio e ingressou com ação de indenização por danos morais contra a CPTM, empresa concessionária do transporte ferroviário, alegando que não foi oferecida a devida segurança a ela enquanto passageira.

A questão chegou até o STJ. A empresa concessionária tem o dever de indenizar neste caso?
SIM.

Contrato de transporte de pessoas
O transporte de pessoas consiste em contrato pelo qual o transportador se obriga a transportar, com segurança e presteza, pessoas e suas bagagens, de um ponto a outro, mediante o pagamento da passagem.

Cláusula de incolumidade
Existe uma cláusula que está implícita nos contratos de transporte. Trata-se da chamada “cláusula de incolumidade”, segundo a qual se impõe ao transportador, mesmo que implicitamente, o dever de zelar pela incolumidade do passageiro, levando-o, a salvo e em segurança, até o local de destino.
Conforme explica Sérgio Cavalieri Filho, “a característica mais importante do contrato de transporte é a cláusula de incolumidade que nele está implícita. A obrigação do transportador não é apenas de meio, e não só de resultado, mas também de segurança. Não se obriga ele a tomar as providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito” (Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 12ª ed., 2015, p. 398).

Responsabilidade objetiva do transportador
O art. 734 do Código Civil estabelece, inclusive, a responsabilidade objetiva do transportador pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior:
Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.
Parágrafo único. É lícito ao transportador exigir a declaração do valor da bagagem a fim de fixar o limite da indenização.
Art. 735. A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.

Responsabilidade objetiva enquanto fornecedor de serviços
A empresa concessionária é fornecedora de serviços e possui responsabilidade civil decorrente do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3º O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Concessionária de serviço público
Além do Código Civil e do CDC, vale ressaltar que as concessionárias de serviço público também possuem responsabilidade objetiva por força do art. 37, § 6º da CF/88.
Segundo entende o STF, as pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviço público, respondem objetivamente pelos prejuízos que causarem a terceiros, sejam eles usuários ou não usuários do serviço.
Ex: um ônibus de uma empresa de transporte coletivo se envolve em um acidente de trânsito, essa empresa concessionária de serviço público terá responsabilidade objetiva tanto em relação aos passageiros (usuários do serviço) como também em relação aos eventuais pedestres que o ônibus atingiu (não usuários do serviço).
Essa foi a tese fixada pelo STF:
A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal.
STF. Plenário. RE 591874, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 26/08/2009 (repercussão geral).

Fato de terceiro como excludente do nexo de causalidade
Apesar de a responsabilidade ser objetiva, é possível que o fato de terceiro seja uma causa excludente de responsabilidade quando houver rompimento do nexo causal.
Vale ressaltar, no entanto, que o fato de terceiro somente será caracterizado como excludente de responsabilidade quando ele for inteiramente independente ao transporte em si, afastando-se, com isso, a responsabilidade da empresa transportadora por danos causados aos passageiros.
Assim, no que concerne à culpa de terceiro, a doutrina e a jurisprudência são unânimes no sentido de somente reconhecer o rompimento do nexo causal quando a conduta praticada pelo terceiro não apresentar qualquer relação com a organização do negócio e os riscos da atividade desenvolvida pelo transportador. Diz-se, nessa hipótese, que o fato de terceiro se equipara ao fortuito externo, apto a elidir a responsabilidade do transportador. Veja:
Fortuito INTERNO
Fortuito EXTERNO
Está relacionado com a organização da empresa.
É um fato ligado aos riscos da atividade desenvolvida pelo fornecedor.
Não está relacionado com a organização da empresa.
É um fato que não guarda nenhuma relação de causalidade com a atividade desenvolvida pelo fornecedor.
É uma situação absolutamente estranha ao produto ou ao serviço fornecido.
Ex1: o estouro de um pneu do ônibus da empresa de transporte coletivo;



Ex2: cracker invade o sistema do banco e consegue transferir dinheiro da conta de um cliente.

Ex3: durante o transporte da matriz para uma das agências, ocorre um roubo e são subtraídos diversos talões de cheque (trata-se de um fato que se liga à organização da empresa e aos riscos da própria atividade desenvolvida).
Ex1: assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo (não é parte da organização da empresa de ônibus garantir a segurança dos passageiros contra assaltos);

Ex2: um terremoto faz com que o telhado do banco caia, causando danos aos clientes que lá estavam.
O fortuito interno NÃO exclui a obrigação do fornecedor de indenizar o consumidor.
O fortuito externo é uma causa excludente de responsabilidade.

Desse modo, o fato de terceiro pode ser:
• fortuito externo: apto à exclusão do dever de indenizar do transportador;
• fortuito interno: quando se insere dentre os riscos inerentes à prestação do serviço, atraindo a responsabilidade da empresa de transportes.

A análise é casuística, sendo necessário avaliar, na hipótese trazida a julgamento, se o dano sofrido pelo passageiro extrapola ou não os limites da cláusula de incolumidade do contrato.

Exemplos nos quais o STJ reconheceu que o fato de terceiro era causa excludente da responsabilidade (fortuito EXTERNO):
• dano sofrido pelo passageiro em virtude de uma pedra que foi arremessada contra o ônibus ou trem (AgInt nos EREsp 1.325.225/SP, DJe de 19/09/2016);
• assalto a mão armada no interior do veículo de transporte coletivo (AgRg no REsp 620.259/MG, DJe de 26/10/2009);
• assalto a mão armada nas dependências da estação metroviária (REsp 974.138/SP, DJe de 09/12/2016);
• morte de usuário do transporte coletivo, vítima de “bala perdida” (AgRg no REsp 1.049.090/SP, DJe de 19/08/2014);
• danos decorrentes de explosão de bomba em composição de trem (AgRg nos EDcl nos EREsp 1.200.369/SP, DJe de 16/12/2013).

Assédio sexual em transportes públicos: fortuito INTERNO (necessidade de proteção da incolumidade físico-psíquica das mulheres)
Ser exposta a assédio sexual viola a cláusula de incolumidade física e psíquica daquele que é passageiro de um serviço de transporte de pessoas.
Este evento configura fortuito interno porque a ocorrência desse assédio sexual tem relação com a prestação do serviço de transporte de passageiros.
Os casos de assédio sexual têm sido comuns no transporte ferroviário de São Paulo, em especial, nesta linha.
Embora a CPTM tenha localizado e conduzido o agressor à delegacia, nada mais fez para evitar que esses fatos ocorram.
Há uma série de soluções que podem talvez não evitar, mas ao menos reduzir a ocorrência deste evento ultrajante, tais como a disponibilização de mais vagões, uma maior fiscalização por parte da empresa etc.
Por envolver, necessariamente, uma grande aglomeração de pessoas em um mesmo espaço físico, aliados à baixa qualidade do serviço prestado, incluído a pouca quantidade de vagões ou ônibus postos à disposição do público, a prestação do serviço de transporte de passageiros vem propiciando a ocorrência de eventos de assédio sexual. Em outros termos, mais que um simples cenário ou ocasião, o transporte público tem concorrido para a causa dos eventos de assédio sexual.
Nesse sentido, percebe-se que esse tipo de situação está diretamente ligada à prestação do serviço de transporte público, tornando-se assim mais um risco da atividade, a qual todos os passageiros, em especial as mulheres, tornam-se vítimas.

Em suma:
A concessionária de transporte ferroviário pode responder por dano moral sofrido por passageira, vítima de assédio sexual, praticado por outro usuário no interior do trem.
STJ. 1ª Turma. REsp 1.662.551-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/05/2018 (Info 628).

Valor da indenização
No caso concreto, o STJ condenou a CPTM a pagar R$ 20 mil a título de indenização por danos morais.





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