quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Não se pode proibir o condômino inadimplente de usar as áreas comuns do condomínio



Imagine a seguinte situação hipotética:
João mora no condomínio de apartamentos “Viva la Vida”.
Em virtude de dificuldades financeiras, ele se encontra devendo três meses da cota condominial.
Diante disso, o síndico proibiu que João e seus familiares utilizem o centro recreativo do condomínio (piscina, brinquedoteca, salão de jogos, entre outros itens).
João foi reclamar com o síndico e este mostrou o regimento interno do condomínio que, expressamente, proíbe os condôminos inadimplentes de utilizarem as áreas comuns.
Não satisfeito, João propôs ação declaratória de nulidade da cláusula do regimento interno cumulada com indenização por danos morais.

Indaga-se: o regimento interno poderá determinar que o condômino inadimplente fique proibido de utilizar as áreas comuns do condomínio? Esta previsão é válida?
NÃO.
O condomínio, independentemente de previsão em regimento interno, não pode proibir, em razão de inadimplência, condômino e seus familiares de usar áreas comuns, ainda que destinadas apenas a lazer.
Assim, é ilícita a disposição condominial que proíbe a utilização de áreas comuns do edifício por condômino inadimplente e seus familiares como medida coercitiva para obrigar o adimplemento das taxas condominiais.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.564.030-MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 9/8/2016 (Info 588).
STJ. 4ª Turma. REsp 1.699.022-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 28/05/2019 (Info 651).

Direito ao uso das áreas comuns decorre do direito de propriedade
O direito do condômino ao uso das partes comuns, seja qual for a destinação a elas atribuídas, não decorre de ele estar ou não adimplente com as despesas condominiais. Este direito provém do fato de que, por lei, a unidade imobiliária abrange não apenas uma fração ideal no solo (unidade imobiliária), mas também as outras partes comuns. Veja o que diz o Código Civil:
Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos.
(...)
§ 3º A cada unidade imobiliária caberá, como parte inseparável, uma fração ideal no solo e nas outras partes comuns, que será identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição do condomínio.

Art. 1.335. São direitos do condômino:
(...)
II - usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores;

Em outras palavras, a propriedade da unidade imobiliária abrange a correspondente fração ideal de todas as partes comuns. O proprietário do apartamento também é “dono” de parte das áreas comuns.
Dessa forma, a proibição de que o condômino tenha acesso a uma área comum (seja qual for a sua destinação) viola o que se entende por condomínio, limitando, indevidamente, o direito de propriedade.
Portanto, além do direito a usufruir e gozar de sua unidade autônoma, os condôminos têm o direito de usar e gozar das partes comuns, já que a propriedade da unidade imobiliária abrange a correspondente fração ideal de todas as partes de uso comum.

Punições para o condômino inadimplente
Os condôminos possuem o dever de contribuir para as despesas condominiais, conforme determina o art. 1.336, I, do CC. No entanto, as consequências pelo seu descumprimento devem ser razoáveis e proporcionais.
No caso de descumprimento do dever de contribuição pelas despesas condominiais, o Código Civil impõe ao condômino inadimplente sanções de ordem pecuniária.
Em um primeiro momento, a lei determina que o devedor seja obrigado a pagar juros moratórios de 1% ao mês e multa de até 2% sobre o débito:
Art. 1.336 (...)
§ 1º O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito.

Se o condômino reiteradamente apresentar um comportamento faltoso (o que não se confunde com o simples inadimplemento involuntário de alguns débitos), será possível impor a ele outras penalidades, também de caráter pecuniário, nos termos do art. 1.337:
Art. 1.337. O condômino, ou possuidor, que não cumpre reiteradamente com os seus deveres perante o condomínio poderá, por deliberação de três quartos dos condôminos restantes, ser constrangido a pagar multa correspondente até ao quíntuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, conforme a gravidade das faltas e a reiteração, independentemente das perdas e danos que se apurem.
Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembleia.

Dessa forma, a lei confere meios coercitivos, legítimos e idôneos, à satisfação do crédito, descabendo ao condomínio valer-se de sanções outras que não as pecuniárias expressa e taxativamente previstas no Código Civil para o específico caso de inadimplemento das despesas condominiais. Em outros termos, não existe margem discricionária para a imposição de outras sanções que não sejam as pecuniárias estipuladas na Lei.

Ausência de pagamento restringe o direito de votar
O legislador, quando quis restringir ou condicionar o direito do condômino, em razão da ausência de pagamento, o fez expressamente, como no caso do art. 1.335, III, do CC:
Art. 1.335. São direitos do condômino:
(...)
III - votar nas deliberações da assembléia e delas participar, estando quite.

Por questão de hermenêutica jurídica, as normas que restringem direitos devem ser interpretadas restritivamente, não comportando exegese ampliativa.

Vedar acesso às áreas comuns viola o princípio da dignidade da pessoa humana
Além das sanções pecuniárias,  a lei estabelece em favor do condomínio instrumentos processuais efetivos e céleres para se cobrar as dívidas condominiais.
A Lei nº 8.009/90, por exemplo, autoriza que a própria unidade condominial (apartamento, casa etc.) seja penhorada para o pagamento dos débitos, não podendo o condômino devedor alegar a proteção do bem de família. 
O CPC/2015, por sua vez, prevê que as cotas condominiais possuem natureza de título executivo extrajudicial (art. 784, VIII), permitindo, assim, o ajuizamento direto de ação executiva, tornando a satisfação do débito ainda mais célere.
Desse modo, diante de todos esses instrumentos colocados à disposição pelo ordenamento jurídico percebe-se que não há razão legítima para que o condomínio se valha de meios vexatórios de cobrança.

A proibição de que o devedor tenha acesso e utilize as áreas comuns do condomínio pelo simples fato de que ele está inadimplente acaba expondo ostensivamente a sua condição de inadimplência perante o  meio social em que reside, o que, ao final, viola o princípio da dignidade humana.


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