quarta-feira, 17 de agosto de 2022

A causa de aumento de pena do § 1º do art. 155 do CP, além de se aplicar para os casos de furto simples (caput), pode também incidir nas hipóteses de furto qualificado (§ 4º)?

 

ESTRUTURA DO FURTO

O crime de furto encontra-se tipificado no art. 155 do CP, que tem oito parágrafos.

Vejamos o que dispõe cada um deles:

Caput: furto simples.

§ 1º: causa de aumento de pena para os casos em que o furto é praticado durante o repouso noturno.

§ 2º: causa de diminuição de pena, chamada pela doutrina de “furto privilegiado”.

§ 3º: a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico é equiparada à coisa móvel.

§ 4º: hipóteses de “furto qualificado”.

§ 4º-A: qualificadora pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum.

§ 4º-B e C: furto mediante fraude cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático.

§ 5º: qualificadora para as hipóteses em que a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.

§ 6º: qualificadora para o caso de subtração de semovente domesticável de produção, ainda que abatido ou dividido em partes no local da subtração.

§ 7º: qualificadora pelo fato de a subtração ter sido de substâncias explosivas ou de acessórios que, conjunta ou isoladamente, possibilitem sua fabricação, montagem ou emprego.

 

AUMENTO DE PENA PELO FURTO NOTURNO

Existe uma causa de aumento caso o furto seja praticado no período noturno. Veja:

Art. 155 (...)

§ 1º A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Pedro, durante a madrugada, invadem a residência da vítima enquanto ela dormia, e de lá subtraem a televisão. João e Pedro praticaram furto qualificado:

Art. 155 (...)

§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:

(...)

IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.

 

Na 3ª fase da dosimetria da pena, ao analisar as causas de aumento, o juiz poderá aumentar a pena em 1/3 pelo fato de o crime ter sido cometido durante o repouso noturno (§ 1º)?

 

A causa de aumento de pena do § 1º, além de se aplicar para os casos de furto simples (caput),

pode também incidir nas hipóteses de furto qualificado (§ 4º)?

STJ: NÃO

STF: SIM

A causa de aumento prevista no § 1º do art. 155 do Código Penal (prática do crime de furto no período noturno) não incide no crime de furto na sua forma qualificada (§ 4º).

STJ. 3ª Seção. REsp 1.890.981-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 25/05/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1087) (Info 738).

A causa de aumento do repouso noturno se coaduna com o furto qualificado quando compatível com a situação fática.

STF. 1ª Turma. HC 180966 AgR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 04/05/2020.

Posição topográfica: para que a majorante do furto noturno fosse aplicável ao furto qualificado, o legislador deveria ter colocado a regra do § 1º depois das hipóteses de furto qualificado. No entanto, não foi isso que aconteceu.

Sob o viés do princípio da proporcionalidade, objetiva-se evitar excesso de punição. A agravação da pena derivada da incidência da majorante do furto noturno nas hipóteses do furto qualificado resultaria em um desproporcional quantitativo.

Vale ressaltar, contudo, que, se o fato de o crime ser cometido à noite trouxer maior gravidade concreta ao delito, caberá ao julgador considerar isso como circunstância judicial negativa apta a aumentar a pena-base na 1ª fase da dosimetria. Logo, se o furto foi qualificado e também praticado durante o repouso noturno, não se aplica a causa de aumento de pena do § 1º do art. 155, mas isso pode ser considerado como circunstância judicial negativa (art. 59 do CP).

 

Não convence a tese de que a majorante do repouso noturno seria incompatível com a forma qualificada do furto, a considerar, para tanto, que sua inserção pelo legislador antes das qualificadoras (critério topográfico) teria sido feita com intenção de não submetê-la às modalidades qualificadas do tipo penal incriminador.

Se assim fosse, também estaria obstado, pela concepção topográfica do Código Penal, o reconhecimento do instituto do privilégio (CP, art. 155, § 2º) no furto qualificado (CP, art. 155, § 4º) -, como se sabe, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a compatibilidade desses dois institutos.

Inexistindo vedação legal e contradição lógica, nada obsta a convivência harmônica entre a causa de aumento de pena do repouso noturno (CP, art. 155, § 1º) e as qualificadoras do furto (CP, art. 155, § 4º) quando perfeitamente compatíveis com a situação fática.

STF. 2ª Turma. HC 130952, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/12/2016.

 

 

Mudança de entendimento

Antes de 25/05/2022, o STJ possuía entendimento em sentido contrário. Nesse sentido: STJ. 6ª Turma. HC 306.450-SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 4/12/2014 (Info 554).

 

Observação pessoal

Na prática forense, o entendimento do STJ deve prevalecer. Isso porque como o STJ possui decisão favorável ao réu, o Ministério Público não conseguirá levar a discussão para o STF já que não cabe recurso extraordinário tendo em vista que não existe ofensa direta à Constituição Federal. As oportunidades que o STF enfrentou o tema foram por meio de habeas corpus.

 

Uma última pergunta para você não confundir na hora da prova: é possível a aplicação do furto privilegiado (§ 2º do art. 155) no caso de furto qualificado (§ 4º do art. 155)?

SIM. Veja o que diz o § 2º do art. 155:

Art. 155 (...)

§ 2º Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

 

Por que existe essa diferença de tratamento? Por que o § 1º não pode ser aplicado junto com o § 4º, mas o § 2º pode ser aplicado com o § 4º?

O privilégio previsto no § 2º do art. 155 e a causa de aumento relativa ao furto noturno (§ 1º) são hipóteses fático-jurídicas diversas. O privilégio do § 2º é uma norma penal não incriminadora enquanto o § 1º é uma causa de aumento, ou seja, uma norma penal incriminadora.

Sendo o furto privilegiado uma norma não incriminadora, pode comportar extensividade quando utilizado para integração do sistema jurídico penal. Já o furto cometido durante o repouso noturno, por ser uma norma incriminadora, tem sua extensividade vedada, visto que tem por consectário o agravamento da situação do réu. Com efeito, o uso de raciocínio analógico integrativo no âmbito do Direito Penal é inadmissível em hipótese em que haja prejuízo para o acusado.

Desse modo, também sob a ótica de uma interpretação finalística, em que se deve conferir aplicabilidade aos princípios da proporcionalidade e da taxatividade, a incidência da causa de aumento referente ao cometimento do furto noturno limita-se ao furto simples, não se aplicando ao furto qualificado.

 

Em suma:

A causa de aumento prevista no § 1° do art. 155 do Código Penal (prática do crime de furto no período noturno) não incide no crime de furto na sua forma qualificada (§ 4°).

STJ. 3ª Seção. REsp 1.890.981-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 25/05/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1087) (Info 738).


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