quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Compete à Justiça Estadual (e não à Justiça do Trabalho) autorizar trabalho artístico de crianças e adolescentes



Crianças e adolescentes podem trabalhar?
O art. 7º, XXXIIII, da CF/88 prevê que:
• criança não pode trabalhar;
• adolescente pode trabalhar a partir de 14 anos, na condição de aprendiz;
• a partir de 16 anos, o adolescente pode trabalhar normalmente (mesmo sem ser aprendiz), salvo se for um trabalho noturno, perigoso ou insalubre;
• trabalho noturno, perigoso ou insalubre só pode ser realizado por maiores de 18 anos.

Alguns de vocês podem estar se perguntando: mas eu já vi criança “trabalhando” em filmes e novelas... Como isso é possível? É permitido que uma criança ou adolescente “trabalhe” em um filme, novela, peça de teatro etc.? É possível a participação de crianças e adolescentes em espetáculos artísticos?
SIM. A doutrina e a jurisprudência entendem que é possível o trabalho de crianças e adolescentes em espetáculos artísticos, mesmo antes da idade mínima prevista no art. 7º, XXXIII, da CF/88.
Um dos fundamentos para isso está no artigo 8º, 1, da Convenção 138 da OIT, que autoriza a participação de crianças e adolescentes em “representações artísticas”.

Exige-se alguma autorização especial para isso?
SIM. O ECA (Lei nº 8.069/90) exige um pronunciamento judicial para esses casos. Confira:
Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:
(...)
II - a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
(...)
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores:
a) os princípios desta Lei;
b) as peculiaridades locais;
c) a existência de instalações adequadas;
d) o tipo de frequência habitual ao local;
e) a adequação do ambiente a eventual participação ou freqüência de crianças e adolescentes;
f) a natureza do espetáculo.

Sempre se entendeu que a competência para esse ato era da Vara da Infância e Juventude (Justiça Estadual). Até mesmo porque é essa a redação expressa do art. 146 do ECA:
Art. 146. A autoridade a que se refere esta Lei é o Juiz da Infância e da Juventude, ou o juiz que exerce essa função, na forma da lei de organização judiciária local.

Ocorre que, em 2004, com a EC 45, surgiu uma nova tese a respeito do tema. Isso porque esta Emenda ampliou o rol de competências do art. 114 da CF/88 e parcela da doutrina e jurisprudência passou a defender que a competência para autorizar a participação de crianças e adolescentes em “representações artísticas” seria agora da Justiça do Trabalho, com base no art. 114, I e IX, da CF/88:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
(...)
IX - outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.

O STF concordou com esta tese?
NÃO. O STF, ao julgar medida cautelar na ADI 5326/DF, decidiu que:
Compete à Justiça Comum Estadual (juízo da infância e juventude) apreciar os pedidos de alvará visando a participação de crianças e adolescentes em representações artísticas.
STF. Plenário. ADI 5326/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 27/9/2018 (Info 917).

Proteção das crianças e adolescentes
A CF/88 dedicou um capítulo para tratar sobre a família, a criança, o adolescente, o jovem e o idoso.
No art. 227 prevê que:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O legislador ordinário, ao concretizar o comando do art. 227 da CF/88, editou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e previu a chamada “Justiça da Infância e da Juventude”.
O ECA determinou, então, que o Juiz da Infância e da Juventude é a autoridade judiciária responsável pelos processos de tutela integral das crianças e adolescentes.
Trata-se de competência fixada em razão da matéria, de caráter absoluto, e em proveito da especial tutela requerida pelo grupo de destinatários: crianças e adolescentes.

Competência para autorizar a participação em eventos artísticos
Uma das atribuições impostas ao Juiz da Infância e da Juventude foi justamente a de autorizar a participação de menores em eventos artísticos (art. 149, II do ECA), autorização a ser implementada mediante a expedição de alvará específico.

Natureza cível da cognição (ausência de discussão quanto à relação de trabalho)
No § 1º do art. 149 estão listados os fatores que o juiz deverá levar em consideração para conferir a referida autorização. Ao se analisar tais fatores, percebe-se que o magistrado faz uma cognição de “natureza cível”, não havendo exame de “relação de trabalho”. A análise se faz acerca das condições da representação artística. O juiz deve investigar se essas condições atendem à exigência de proteção do melhor interesse do menor, contida no art. 227 da CF/88.
Assim, o referido pedido de autorização possui natureza eminentemente cível, relacionado ao Direito da Criança e do Adolescente. A sua causa de pedir envolve a verificação da preservação integral dos direitos do menor, como, por exemplo, educação, saúde, alimentação, convivência familiar, cultura e dignidade, que não podem ser prejudicados pelo desempenho da atividade artística.
O Juízo da Infância e da Juventude é a autoridade que reúne os predicados e as capacidades institucionais necessárias para a realização de exame de tamanha relevância e responsabilidade.
Dessa forma, o art. 114, I e IX, da CF/88, que estabelece a competência da Justiça do Trabalho, não alcança os casos de pedido de autorização para participação de crianças e adolescentes em eventos artísticos, considerando que não há, no caso, conflito atinente a relação de trabalho.
Vale ressaltar que esse é também o entendimento do STJ:
O pedido de alvará para autorização de trabalho a menor de idade é de conteúdo nitidamente civil e se enquadra no procedimento de jurisdição voluntária, inexistindo debate sobre qualquer controvérsia decorrente de relação de trabalho, até porque a relação de trabalho somente será instaurada após a autorização judicial pretendida.
STJ. 1ª Seção. CC 98.033/MG, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 12/11/2008.

Caso concreto julgado pelo STF:
Alguns Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais do Trabalho, em conjunto com Ministérios Públicos Estadual e do Trabalho editaram recomendações dizendo que a competência para autorizar a participação de crianças e adolescentes em espetáculos artísticos seria da Justiça do Trabalho. Foi o caso, por exemplo:
• da Recomendação Conjunta 1/2014 das Corregedorias dos Tribunais de Justiça e do Trabalho, e dos Ministérios Públicos estadual e do Trabalho, todos do Estado de São Paulo; e
• da Recomendação Conjunta 1/2014, dos Ministérios Públicos estadual e do Trabalho, e das Corregedorias do Tribunal de Justiça e do Trabalho, todos do Estado de Mato Grosso.

Além disso, o TRT da 2ª Região também baixou um Provimento (GP/CR 7/2014) no mesmo sentido.
A Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT) ajuizou ADI contra esses atos normativos.
Em 2015, Ministro Relator Marco Aurélio, monocraticamente, deferiu liminar para suspender os atos e para determinar que os pedidos de autorização de trabalho artístico para crianças e adolescentes fossem apreciados pela Justiça Comum.
Em 2018, o STF referendou a medida liminar concedida e suspendeu a eficácia das normas impugnadas. Para a maioria dos Ministros, a matéria é de competência da Justiça comum.
Os Ministros entenderam que os atos normativos impugnados possuem vícios de inconstitucionalidade formal e material:
• Inconstitucionalidade formal: os dispositivos tratam da distribuição de competência jurisdicional e da criação de juízo auxiliar da Infância e da Juventude no âmbito da Justiça do Trabalho, porém não foram produzidos mediante lei.
• Inconstitucionalidade material: os referidos atos normativos determinam uma competência da Justiça do Trabalho que não encontra respaldo na Constituição Federal, violando, portanto, os arts. 114 e 227 da CF/88.




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