quarta-feira, 17 de abril de 2019

É constitucional lei estadual que permite o sacrifício de animais em cultos de religiões de matriz africana



Religiões de matriz africana
É muito comum hoje em dia se falar em “religiões de matriz africana”.
Religiões de matriz africana é uma nomenclatura utilizada para designar as religiões que tiveram origem ou buscaram inspiração religiões tradicionais africanas.
A história das religiões de matriz africana está diretamente relacionada com a escravidão no Brasil, quando escravos negros chegaram ao país vindos da África e trouxeram seu idioma, conhecimentos, tradições e religiões.
Os adeptos dessas religiões sempre sofreram com o preconceito de muitas pessoas com relação às suas práticas religiosas.
Podemos citar os seguintes exemplos de religiões de matriz africana: Candomblé‎, Cabula, Catimbó, Umbanda, Quimbanda, Xambá e Omolocô.

Animais em cultos de religiões de matriz africana
Algumas religiões de matriz africana realizam sacrifício de animais em seus cultos. É o caso, por exemplo, do Candomblé. A Umbanda, por outro lado, não concorda essa prática.
Os rituais variam de acordo com o grupo religioso. No entanto, em linhas gerais, acontece mais ou menos o seguinte: é escolhido um animal para ser morto no ritual (geralmente galinhas, patos, bodes, carneiros, bois). Depois de morto por um líder religioso que tem essa função (axogum), algumas partes do animal são colocadas em locais específicos para serem oferecidos à divindade religiosa (orixá). O sangue pode ser utilizado para sacramentar imagens. A carne é preparada para servir como refeição e o couro, algumas vezes empregado na confecção de atabaques.
Existe uma premissa que é defendida e adotada pela maioria dos terreiros: o animal utilizado no sacrifício deve ser morto de forma rápida com o objetivo de não causar dor.
Assim, as lideranças religiosas defendem que não há maus-tratos e condenam praticantes que deixam animais feridos, mas ainda vivos em encruzilhadas.

Lei estadual prevendo a possibilidade de sacrifício ritual de animais em cultos
O caput do art. 2º da Lei estadual nº 11.915/2003, do Rio Grande do Sul, proíbe uma lista de condutas que são consideradas maus-tratos de animais. O parágrafo único deste artigo, no entanto, prevê que tais vedações não se aplicam para o sacrifício de animais em rituais de cultos de religiões de matriz africana.
Veja a redação do dispositivo legal:
Art. 2º É vedado:
I - ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;
II - manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III - obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV - não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V - exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal;
VI - enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem;
VII - sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde - OMS -, nos programas de profilaxia da raiva.
Parágrafo único. Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. (Incluído pela Lei nº 12.131/2004)

ADI
O Ministério Público do Rio Grande do Sul ingressou com ADI no TJ/RS alegando que esse parágrafo único seria inconstitucional tanto sob o ponto de vista formal como material.
Sob o aspecto formal, a lei teria violado a competência da União para legislar sobre direito penal (art. 22, I, da CF/88). Isso porque este art. 2º, parágrafo único, da Lei estadual teria criado uma causa excludente de ilicitude para afastar a incidência de crime ambiental.
Além disso, haveria inconstitucionalidade material pela violação ao art. 19, I, da CF/88 considerando que a lei estadual somente permitiu o sacrifício de animais nos cultos de matriz africana, deixando de fora da regra os cultos de outras religiões:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

A questão chegou até o STF que respondeu ao seguinte questionamento: essa lei é constitucional?
SIM.

Lei estadual não tratou sobre direito penal
A Lei do Estado do Rio Grande do Sul não tratou sobre matéria penal.
A Lei nº 11.915/2003, do RS, instituiu o Código Estadual de Proteção aos Animais, ou seja, um diploma que estabelece regras de proteção à fauna, define conceitos e afasta a prática de determinadas condutas.
Não há, portanto, nenhuma matéria criminal envolvida, razão pela qual não houve usurpação de competência da União.
O parágrafo único do art. 2º da Lei prevê uma hipótese de exclusão de responsabilidade administrativa na hipótese de abate de animais em cultos religiosos, que em nada se relaciona com a excludente de ilicitude penal. Em nenhum momento a lei estadual fala em crime ou na sua exclusão.

Lei estadual não violou competência da União para editar normas gerais de proteção ao meio ambiente
A competência para legislar sobre proteção da fauna e do meio ambiente em geral é concorrente, estando dividida entre a União, Estados, DF e Municípios (art. 24, VI c/c art. 30, I, da CF/88).
Logo, compete à União editar normas gerais sobre o tema, cabendo ao Estado suplementar essa legislação federal (art. 22, § 2º). Vale ressaltar que a norma editada pelo Estado não contrariar aquilo que está previsto nas normas gerais da União, sob pena de ser inconstitucional.
No caso concreto, o STF considerou que o art. 2º, parágrafo único, da Lei gaúcha não ofendeu a competência da União para editar normas gerais de proteção do meio ambiente. Isso porque não existe lei federal tratando sobre o sacrifício de animais com finalidade religiosa. Logo, a lei estadual, ao tratar sobre o tema, não infringiu normas gerais da União.
A Lei de Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98) foi editada para tutelar a fauna silvestre, especialmente em atividades de caça. Ela não tratou, nem mesmo indiretamente, sobre imolação de animais em custos religiosos. Logo, percebe-se uma omissão da União em editar normas gerais sobre esse tema específico (sacrifício de animais em rituais religiosos).
A omissão da União na edição de normas gerais faz com que o Estado-membro tenha liberdade para estabelecer regras a respeito, observado o § 3º do art. 24 da CF/88:
Art. 24 (...)
§ 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

Vale ressaltar que, apesar de não ter força de lei ordinária, o Ministério da Agricultura possui a Instrução Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2000, que regulamenta os métodos de insensibilização para o abate humanitário de animais de açougue. Em seu artigo 11.3, o regulamento expressamente prevê que “é facultado o sacrifício de animais de acordo com preceitos religiosos, desde que sejam destinados ao consumo por comunidade religiosa que os requeria ou ao comércio internacional com países que façam essa exigência, sempre atendidos os métodos de contenção dos animais.”

Liberdade de culto e de liturgia
A discussão em foco envolve a exegese de normas fundamentais, estando relacionada com o exercício da liberdade de culto e de liturgia.
A religião desempenha papel importante em vários aspectos da vida da comunidade, tendo recebido especial proteção do legislador constituinte:
Art. 5º (...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

Patrimônio cultural imaterial
A prática e os rituais relacionados ao sacrifício animal são “patrimônio cultural imaterial”, na forma do disposto no Artigo 2, item 2, alínea “c”, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco.
Além disso, como dispõe o texto constitucional, elas constituem os modos de criar, fazer e viver de diversas comunidades religiosas e se confundem com a própria expressão de sua identidade.
Vale ressaltar que o Estado brasileiro tem o dever de proteger as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215, § 1º).

Não há violação ao princípio da laicidade
O princípio da laicidade significa dizer que o Estado brasileiro é laico (secular ou não-confessional), ou seja, não existe nele uma religião oficial (art. 19, I, da CF/88). Assim, por força deste princípio, o Estado não pode estar associado a nenhuma religião, nem sob a forma de proteção nem de perseguição. Há, portanto, uma separação formal entre Igreja e Estado.
O STF entendeu que, ao contrário do que alegou o MP/RS, a referida lei não viola o princípio da laicidade.
A proteção legal às religiões de matriz africana não representa um privilégio, mas sim um mecanismo de assegurar a liberdade religiosa, mantida a laicidade do Estado.
Desse modo, a lei gaúcha, na verdade, está de acordo com o princípio da laicidade. Isso porque a laicidade do Estado proíbe que haja o menosprezo ou a supressão de rituais, especialmente no caso de religiões minoritárias que poderiam ser subjugadas pelo Estado.

Não há violação ao princípio da igualdade
A CF promete uma sociedade livre de preconceitos, entre os quais o religioso.
A cultura afro-brasileira merece maior atenção do Estado, por conta de sua estigmatização, fruto de preconceito estrutural.
A proibição do sacrifício de animais em seus cultos negaria a própria essência da pluralidade cultural, com a consequente imposição de determinada visão de mundo.
Ao se conferir uma proteção aos cultos de religiões historicamente estigmatizadas, o legislador não ofende o princípio da igualdade. Ao contrário, materializa esse princípio diante do preconceito histórico sofrido.

Não há violação ao art. 225 da CF/88
O legislador, ao admitir a prática de imolação (sacrifício), não violou o dever constitucional de amparo aos animais, estampado no art. 225, § 1º, VII, da CF/88:
Art. 225 (...)
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Isso porque se deve evitar que a tutela de um valor constitucional relevante (meio ambiente) aniquile o exercício de um direito fundamental (liberdade de culto), revelando-se desproporcional impedir todo e qualquer sacrifício religioso quando diariamente a população consome carnes de várias espécies.
Além disso, deve-se reforçar o argumento de que os animais sacrificados nestes cultos são abatidos de forma rápida, mediante degola, de sorte que a realização dos rituais religiosos com estes animais não se amolda ao art. 225, § 1º, VII, que proíbe práticas cruéis com animais.

Em suma:

É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana.
STF. Plenário. RE 494601/RS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 28/3/2019 (repercussão geral) (Info 935).

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