quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Regramento da repetição do indébito no Código Civil e no CDC

REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CÓDIGO CIVIL

Imagine a seguinte situação:

João ajuizou ação de cobrança contra Pedro por um suposto débito de R$ 10 mil.

Pedro contestou a demanda provando que já havia pagado a dívida. Além disso, na própria contestação, o réu pediu que o autor fosse condenado a pagar R$ 20 mil a ele em razão de estar cobrando uma dívida já quitada.

 

Sob o ponto de vista do direito material, esse pedido de Pedro encontra amparo na legislação?

SIM. Há previsão expressa no Código Civil:

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

 

Obs1: essa penalidade do art. 940 deve ser aplicada independentemente de a pessoa demandada ter provado qualquer tipo de prejuízo. Assim, ainda que Pedro não comprove ter sofrido dano, essa indenização será devida. O art. 940 do CC institui uma autêntica pena privada, aplicável independentemente da existência de prova do dano (STJ. 3ª Turma. REsp 1.286.704/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 28/10/2013).

 

Obs2: a penalidade do art. 940 exige que o credor tenha exigido judicialmente a dívida já paga (“demandar” = “exigir em juízo”).

 

Para que Pedro cobre esse valor em dobro, é necessária ação autônoma ou reconvenção, ou ele pode fazer isso por meio de mera contestação?

O pedido pode ser feito por meio de contestação:

A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança judicial de dívida já adimplida (art. 1.531 do CC 1916 / art. 940 do CC 2002) pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de ação autônoma ou do manejo de reconvenção.

STJ. 2ª Seção. REsp 1111270-PR, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 25/11/2015 (recurso repetitivo) (Info 576).

 

Sempre que houver cobrança de dívida já paga, haverá a condenação do autor à penalidade do art. 940 do CC?

Não, nem sempre.

Segundo o STJ, são exigidos dois requisitos para a aplicação do art. 940:

a) a cobrança se dá por meio judicial; e

b) a má-fé do demandante fica comprovada.

Essa exigência da má-fé é antiga e vem desde o CC-1916, onde esta penalidade encontrava-se prevista no art. 1.531. Veja o que o STF já havia decidido naquela época:

Súmula 159-STF: Cobrança excessiva, mas de boa fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil (atual art. 940).

 

þ (PGM Manaus 2018 CEBRASPE) De acordo com a jurisprudência do STJ e as disposições do Código Civil, uma vez ajuizada ação de cobrança de dívida já paga, o direito do requerido à restituição em dobro prescindirá da demonstração de má-fé do autor da cobrança. (errado)

 

Se João tivesse desistido da ação de cobrança antes de Pedro apresentar contestação, isso o eximiria do pagamento da penalidade do art. 940 do CC?

SIM. O CC prevê que a indenização é excluída se o autor desistir da ação antes de contestada a lide:

Art. 941. As penas previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido.

 

REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CDC

Previsão legal

O Código de Defesa do Consumidor possui uma regra semelhante ao art. 940 do CC, mas que apresenta peculiaridades. Assim, se o consumidor for cobrado em quantia indevida e efetuar o pagamento, terá direito de receber valor igual ao dobro do que pagou em excesso. Veja:

Art. 42 (...) Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

 

Obs: esse valor deve ser acrescido de juros e correção monetária. Nesse sentido:

þ (MPE/SC 2019) O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável. (certo)

 

Dobro do que pagou em excesso (e não dobro do que foi cobrado em excesso)

ý (MP/TO 2012 CESPE) Segundo o direito consumerista brasileiro, o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que lhe tiver sido cobrado em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável. (errado)

 

Requisitos para aplicar essa penalidade do CDC:

a) Consumidor ter sido cobrado por quantia indevida;

b) Consumidor ter pagado essa quantia indevida (o CDC exige que a pessoa tenha efetivamente pago e não apenas que tenha sido cobrada);

c) Não ocorrência de engano justificável por parte do cobrador.

 

Engano justificável

• Exemplo de engano justificável: cobrança com base em lei ou cláusula contratual mais tarde declarada nula pela Justiça.

• Exemplo de engano injustificável: concessionária de água e esgoto que cobra taxa de esgoto em local onde o serviço não é prestado.

 

Vale ressaltar que o ônus de provar que houve engano justificável é do fornecedor:

þ (Juiz TJPR 2014): Segundo o contido no art. 42, parágrafo único do CDC, o consumidor cobrado por quantia indevida, tem direito a repetição do indébito do valor em dobro ao que pagou em excesso, porém, se o engano para tal cobrança for justificável não cabe a repetição em dobro. A prova de que o engano é justificável cabe ao fornecedor, haja vista que a matéria é de defesa. (certo)

 

Devolução simples

Se tiver havido engano justificável por parte do cobrador, este continuará com a obrigação de devolver as quantias recebidas indevidamente, no entanto, essa devolução será simples (ou seja, não será em dobro).

 

Para incidir a regra do art. 42, parágrafo único, do CDC exige-se má-fé do fornecedor (“cobrador”)? Exige-se a demonstração de que o fornecedor tinha a intenção (vontade) de cobrar um valor indevido do consumidor?

Esse era um ponto polêmico no STJ.  

Prevalece atualmente que NÃO.

Não se exige a demonstração de má-fé, ou seja, da intenção do fornecedor de cobrar um valor indevido. Não é necessário se perquirir qualquer elemento volitivo por parte do fornecedor.

Basta que o fornecedor tenha agido de forma contrária à boa-fé objetiva.

 

O STJ fixou a seguinte tese em embargos de divergência:

A restituição em dobro do indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento volitivo do fornecedor que cobrou valor indevido, revelando-se cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva.

STJ. Corte Especial. EAREsp 676608/RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 21/10/2020.

 

Está superada a Tese 7 do Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 39):

Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 39)

Tese 7: A devolução em dobro dos valores pagos pelo consumidor, prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, pressupõe tanto a existência de pagamento indevido quanto a má-fé do credor.

 

 

DISCUSSÃO QUANTO À APLICAÇÃO DO REGRAMENTO DO CÓDIGO CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

Imagine a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação de reparação de danos contra o Banco HSBC. O autor alegou que o Banco lhe cobrou, em juízo, uma dívida que já estava paga. Como a dívida paga era no valor de R$ 50 mil, o autor pedia para que o Banco fosse condenado a pagar R$ 100 mil, ou seja, o dobro do que havia cobrado.

João fundamentou seu pleito no art. 940 do CC:

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

 

Contestação

O Banco apresentou contestação alegando o seguinte:

- realmente, ajuizei ação cobrando de João dívida que ele já tinha pagado;

- no entanto, nesta ação proposta, João não chegou a pagar nada porque o magistrado julgou improcedente o pedido;

- diante disso, como o consumidor não pagou essa quantia indevida, não pode ser aplicado o parágrafo único do art. 42 do CDC:

Art. 42 (...) Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

 

- além disso, não é possível aplicar o art. 940 do CC porque estamos diante de uma relação de consumo, devendo, portanto, incidir o diploma especial, qual seja, o CDC.

 

A discussão jurídica foi, portanto, a seguinte: é possível aplicar a sanção do art. 940 do Código Civil neste caso, mesmo se tratando de uma relação de consumo?

SIM. Mesmo diante de uma relação de consumo, é possível aplicar a sanção prevista no art. 940 do CC.

O art. 940 do CC e o art. 42 do CDC incidem em hipóteses diferentes, tutelando, cada um deles, uma situação específica envolvendo a cobrança de dívidas pelos credores. Veja as principais diferenças:

ART. 940 DO CÓDIGO CIVIL

ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC

Requisitos:

a) A pessoa (consumidora ou não) foi cobrada, por meio de processo judicial, por dívida já paga;

b) O autor da cobrança agiu de má-fé (súmula 159 STF).

Requisitos:

a) Consumidor foi cobrado por quantia indevida;

b) Consumidor pagou essa quantia indevida;

c) Não houve um engano justificável por parte do autor da cobrança.

A cobrança foi feita na via judicial.

A cobrança foi feita na via extrajudicial.

Exige má-fé do autor da cobrança.

Cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 940.

A restituição em dobro do indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento volitivo do fornecedor que cobrou valor indevido, revelando-se cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva.

Não se exige que a pessoa cobrada tenha pagado efetivamente a quantia.

Para incidir o dispositivo basta que a pessoa seja acionada na justiça por dívida já paga.

Não basta a simples cobrança indevida.

Exige-se que o consumidor tenha pagado efetivamente o valor indevido.

 

Desse modo, se o consumidor foi cobrado indevidamente, mas não estão presentes os pressupostos de aplicação do art. 42 do CDC, ainda assim será possível incidir o art. 940 do CC, se os requisitos deste dispositivo estiverem demonstrados.

Como explica o Min. Herman Benjamin:

“(...) A sanção do art. 42, parágrafo único, dirige-se tão somente àquelas cobranças que não têm o munus do juiz a presidi-las. Daí que, em sendo proposta ação visando à cobrança do devido, mesmo que se trata de dívida de consumo, não mais é aplicável o citado dispositivo, mas, sim, não custa repetir, o Código Civil. No sistema do Código Civil, a sanção só tem lugar quando a cobrança é judicial, ou seja, pune-se aquele que movimenta a máquina do Judiciário injustificadamente.

Não é esse o caso do Código de Defesa do Consumidor. Usa-se aqui o verbo cobrar, enquanto o Código Civil refere-se a demandar. Por conseguinte, a sanção, no caso da lei especial, aplica-se sempre que o fornecedor (direta ou indiretamente) cobrar e receber, extrajudicialmente, quantia indevida.

O Código de Defesa do Consumidor, preventivo por excelência, enxerga o problema em estágio anterior ao tratado pelo Código Civil. E não poderia ser de modo diverso, pois, se o parágrafo único do art. 42 do CDC tivesse aplicação restrita às mesmas hipóteses fáticas do art. 940 do CC, faltar-lhe-ia utilidade prática, no sentido de aperfeiçoar a proteção do consumidor contra cobranças irregulares, a própria ratio que levou, em última instância, à intervenção do legislador” (Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 330).

 

Para os casos envolvendo consumidores, a aplicação do CDC é prioritária. Isso porque se presume que este diploma trata o consumidor de forma mais protetiva.

Vale ressaltar, contudo, se, no caso concreto, for mais favorável ao consumidor aplicar o Código Civil, esta solução deverá ser adotada.

Assim, admite-se a aplicação do CC, no que couber, quando a regra não contrariar o sistema estabelecido pelo CDC, sobretudo quando as normas forem complementares, como neste caso, pois os arts. 42, parágrafo único, do CDC e 940 do CC preveem sanções para condutas distintas dos credores.

 

Em suma:

Em caso de cobrança judicial indevida, é possível aplicar a sanção prevista no art. 940 do Código Civil mesmo sendo uma relação de consumo.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.645.589-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 04/02/2020 (Info 664).

 

 

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