sexta-feira, 5 de março de 2021

O “mentor intelectual” dos atos libidinosos pode responder pelo crime de estupro de vulnerável mesmo sem ter tido contato físico com a vítima?


A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

“A”, adulto do sexo masculino, mantinha relacionamento com “O”, mulher maior de idade.

“O” era mãe de “H”, criança com poucos meses de vida.

“O” fazia tudo o que “A” exigia para satisfazer sua lascívia.

Determinado dia, “A”, em conversa com “O”, por meio de aplicativo de mensagens, solicita que “O” tire fotos da genitália de “H”.

“O” faz isso e envia as fotos para “A” pelo aplicativo.

Ainda viria algo mais grave.

“A” exige que “O” toque na genitália e faça sexo oral na criança. “O” obedece e faz o que “A” pediu.

Nas exatas palavras da denúncia oferecida pelo Ministério Público:

“Durante vários momentos do diálogo mantido entre [O.] e [A], são enviadas fotos, pela mãe da menor para o denunciado, nas quais o órgão genital da criança [H.] é exibido.

Não obstante, a pedido de [A.], [O.] chega a fazer sexo oral na própria filha, filmando e enviando o arquivo a ele. (...)”

 

Houve ainda a prática de outras condutas repugnantes, que não influenciam diretamente na explicação e que, portanto, em respeito aos leitores, não serão detalhadas.

 

Condenação

“A” foi condenado pela prática do delito do art. 241-A do ECA e pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP):

Art. 241-A. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

 

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

O Tribunal de Justiça manteve a condenação.

 

Habeas corpus

Em habeas corpus impetrado no STJ, a defesa de “A” alegou a atipicidade da conduta invocando, como principal argumento, o fato de não ter havido contato físico entre o autor e a criança, vítima do crime.

Assim, o réu “A” argumentou que ele não praticou conjunção carnal nem qualquer outro ato libidinoso com “H”. Logo, não poderia ser condenado por esse delito.

 

A tese da defesa foi acolhida pelo STJ?

NÃO.

 

Qualquer ato libidinoso é suficiente para configurar o estupro de vulnerável

Inicialmente, importante ressaltar que o estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima.

 

Ato libidinoso pode ocorrer mesmo sem contato físico entre agente e vítima

O Código Penal não define o que seja ato libidinoso, cabendo este papel, portanto, à doutrina.

Segundo a maioria dos autores, para que se configure ato libidinoso, não se exige contato físico entre ofensor e vítima.

Assim, por exemplo, o simples fato de o agente ficar olhando a vítima nua com o objetivo de satisfazer sua lascívia (contemplação lasciva) já é suficiente para caracterizar ato libidinoso e, portanto, configurar o crime de estupro (art. 213) ou de estupro de vulnerável (art. 217-A).

Essa é a posição, por exemplo, de Cleber Masson:

“Na prática de atos libidinosos, a vítima também pode desempenhar, simultaneamente, papeis ativo e passivo. Nessas duas últimas condutas - praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é dispensável o contato físico de natureza erótica entre o estuprador e a vítima”. (MASSON, Cleber. Código Penal comentado. 2ª ed., São Paulo: Método, 2014, p. 825)

Rogério Sanches também explica que é desnecessário o contato físico:

“De acordo com a maioria da doutrina, não há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para satisfazer a sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se), somente para contemplação (tampouco há que se imaginar a vítima desnuda para a caracterização do crime- RT 429/380).” (Manual de direito penal: parte especial. 8ª ed., Salvador: Juspodivm, 2016, p. 460).

 

Esse entendimento é acolhido pelo STJ:

Em situações excepcionais, tem-se que o crime de estupro pode se caracterizar, inclusive, em situações nas quais não há contato físico entre o agente e a vítima.

STJ. 5ª Turma. HC 611.511/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 15/10/2020.

 

A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável.

Segundo a posição majoritária na doutrina, a simples contemplação lasciva já configura o “ato libidinoso” descrito nos arts. 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido.

STJ. 5ª Turma. RHC 70976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016 (Info 587).

 

Dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física

Vale ressaltar, ainda, que o delito imputado (estupro de vulnerável) é uma espécie de crime contra a dignidade sexual. A dignidade sexual da vítima não se ofende somente com lesões de natureza física.

 

Voltando ao caso concreto:

Na situação concreta, ficou devidamente comprovado que o paciente agiu mediante nítido poder de controle psicológico sobre a mãe da vítima, dado o vínculo afetivo entre eles estabelecido. Assim, a incitou à prática dos atos de estupro contra a infante, com o envio das respectivas imagens via aplicativo virtual, as quais permitiram a referida contemplação lasciva e a consequente adequação da conduta ao tipo do art. 217-A do Código Penal.

Em se tratando de vítima menor de 14 anos, como no caso concreto, a proteção integral à criança e ao adolescente, em especial no que se refere às agressões sexuais, é preocupação constante de nosso Estado (art. 227, caput e § 4º, da CF/88) e de instrumentos internacionais.

 

Partícipe também pode ser condenado pelo estupro

Importante registrar, por fim, que o STJ reconhece que o agente que concorre para a prática do estupro na qualidade de partícipe também responde pelo crime: STJ. 5ª Turma. RHC n. 110.301/PR, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 11/6/2019.

 

Em suma:

O estupro de vulnerável se consuma com a prática de qualquer ato de libidinagem ofensivo à dignidade sexual da vítima.

Para que se configure ato libidinoso, não se exige contato físico entre ofensor e vítima.

Assim, doutrina e jurisprudência sustentam a prescindibilidade do contato físico direto do réu com a vítima, a fim de priorizar o nexo causal entre o ato praticado pelo acusado, destinado à satisfação da sua lascívia, e o efetivo dano à dignidade sexual sofrido pela ofendida.

STJ. 6ª Turma. HC 478.310, Rel. Min. Rogério Schietti, julgado em 09/02/2021 (Info 685).

 


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