sexta-feira, 1 de julho de 2022

O médico é civilmente responsável por falha no dever de informação acerca dos riscos de morte em cirurgia

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Roberto consultou-se com um médico em busca de solução para o seu problema de ronco.

Após os exames, o médico diagnosticou que Roberto tinha apneia do sono, que pode gerar, inclusive, morte súbita. Para correção da síndrome, o médico indicou a realização de uma cirurgia.

Na consulta, foi dito ao paciente que a cirurgia seria rápida e a laser.

Infelizmente, durante a cirurgia houve um choque anafilático e o paciente faleceu.

O laudo pericial da necropsia concluiu que as condições anátomo-funcionais do paciente foram decisivas para o evento que desencadeou o óbito em razão da dificuldade de intubação.

Os familiares da vítima ajuizaram ação de indenização por danos morais contra o cirurgião e o anestesiologista.

A causa de pedir dessa ação não foi eventual erro médico, mas sim a ausência de esclarecimentos, por parte dos médicos, a respeito dos riscos do procedimento cirúrgico, notadamente em razão de suas condições físicas (obeso e com hipertrofia de base de língua), as quais poderiam dificultar bastante uma eventual intubação do paciente, o que, de fato, acabou ocorrendo.

Segundo as provas produzidas, não houve consentimento informado ao paciente.

 

Para o STJ, os médicos têm responsabilidade civil neste caso?

SIM.

Todo paciente possui, como expressão do princípio da autonomia da vontade (autodeterminação), o direito de saber dos possíveis riscos, benefícios e alternativas de um determinado procedimento médico. Isso é necessário para que ele possa manifestar, de forma livre e consciente, o seu interesse ou não na realização da terapêutica envolvida. Isso se chama “consentimento informado”.

Esse dever de informação decorre do art. 22 do Código de Ética Médica e dos arts. 6º, III, e 14 do CDC:

É vedado ao médico:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

 

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

(...)

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

 

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

 

Além disso, o Código Civil também disciplinou o assunto no seu art. 15:

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

 

Justamente por isso, é indispensável o consentimento informado do paciente acerca dos riscos inerentes ao procedimento cirúrgico. O médico que deixa de informar o paciente acerca dos riscos da cirurgia incorre em negligência, e responde civilmente pelos danos resultantes da operação.

Conclui-se, assim, que o médico precisa do consentimento informado do paciente para executar qualquer tratamento ou procedimento médico, em decorrência da boa-fé objetiva e do direito fundamental à autodeterminação do indivíduo, sob pena de inadimplemento do contrato médico-hospitalar, o que poderá ensejar a responsabilização civil.

 

Não é suficiente o “blanket consent”

Vale ressaltar, ainda, que a informação prestada pelo médico ao paciente, acerca dos riscos, benefícios e alternativas ao procedimento indicado, deve ser clara e precisa, não bastando que o profissional de saúde informe, de maneira genérica ou com termos técnicos, as eventuais repercussões no tratamento, o que comprometeria o consentimento informado do paciente, considerando a deficiência no dever de informação.

Com efeito, não se admite o chamado “blanket consent”, isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização das informações prestadas ao paciente, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação.

 

Os médicos poderiam ter provado que eles forneceram todas as informações ao paciente antes da cirurgia, mas que essas informações foram prestadas oralmente ou é indispensável que os riscos da cirurgia sejam informados por escrito?

Não há qualquer obrigatoriedade no ordenamento jurídico de que o consentimento informado seja exercido mediante “termo”, isto é, na forma escrita.

O que se exige é tão somente a prestação clara e precisa de todas as informações sobre os riscos, benefícios e alternativas do procedimento médico a ser adotado, independentemente da forma.

Admite-se, portanto, qualquer meio de prova para tentar demonstrar que foi cumprido o dever de informação, nos termos do art. 107 do Código Civil, que assim dispõe:

Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.

 

Entretanto, não se pode ignorar que a ausência de “termo de consentimento informado” gera uma enorme dificuldade para que o médico consiga comprovar que cumpriu seu dever de informação ao paciente. Logo, recomenda-se, sobretudo em casos mais complexos, em que há um maior incremento do risco, que o consentimento informado seja feito em documento próprio, por escrito e assinado, a fim de resguardar o profissional médico em caso de eventual discussão jurídica sobre o assunto.

 

Em suma:

O médico é civilmente responsável por falha no dever de informação acerca dos riscos de morte em cirurgia. 

STJ. 3ª Turma. REsp 1.848.862-RN, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 05/04/2022 (Info 733).

 

Obs: no caso concreto, o STJ condenou os réus ao pagamento de R$ 10 mil em favor de cada autor (eram dois autores), acrescido de correção monetária desde a data da sessão de julgamento (data do arbitramento), a teor do disposto na Súmula 362 do STJ, além de juros de mora a partir da data do evento danoso, nos termos da Súmula 54 do STJ.


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