sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Corregedor Nacional de Justiça pode requisitar dados bancários e fiscais de magistrado investigado sem prévia autorização judicial?

 

O caso concreto foi o seguinte:

O art. 8º, V, do Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº 67/2009) prevê que o Corregedor Nacional de Justiça pode requisitar dados bancários e fiscais sem prévia autorização judicial:

Art. 8º Compete ao Corregedor Nacional de Justiça, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:

(...)

V - requisitar das autoridades fiscais, monetárias e de outras autoridades competentes informações, exames, perícias ou documentos, sigilosos ou não, imprescindíveis ao esclarecimento de processos ou procedimentos submetidos à sua apreciação, dando conhecimento ao Plenário;

 

ADI

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) ajuizaram ADI contra esse dispositivo.

As autoras arguiram a inconstitucionalidade da norma impugnada por violação dos arts. 5º, X e XII, 60, § 4º, III, 68, §1º, I, 93, VIII e X, da Constituição Federal, ao permitir “(a) a quebra de dados sigilosos por autoridade administrativa, (b) sem ordem judicial, (c) em sede de procedimentos administrativos que não são, necessariamente, disciplinares, mas que alcançarão magistrados, e, ainda (d) sem autorização sequer do CNJ”.

Argumentaram a existência de vício formal, porque caberia apenas à Constituição Federal criar as competências do Corregedor Nacional de Justiça e, ao Estatuto da Magistratura, defini-las.

 

O que o STF decidiu? Essa previsão é constitucional?

SIM.

 

Constitucionalidade formal

A norma é constitucional sob o ponto de vista formal considerando que foi editada com respaldo no art. 5º, § 2º, da EC nº 45/2004, que confere competência ao Conselho Nacional de Justiça, mediante resolução, para disciplinar seu funcionamento e definir as atribuições do Corregedor, enquanto não normatizada a matéria pelo Estatuto da Magistratura:

Art. 5º O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público serão instalados no prazo de cento e oitenta dias a contar da promulgação desta Emenda, devendo a indicação ou escolha de seus membros ser efetuada até trinta dias antes do termo final.

(...)

§ 2º Até que entre em vigor o Estatuto da Magistratura, o Conselho Nacional de Justiça, mediante resolução, disciplinará seu funcionamento e definirá as atribuições do Ministro-Corregedor.

 

Desse modo, a EC 45/2004 autorizou o próprio CNJ a editar norma de caráter primário sobre seu funcionamento e sobre as atribuições do Corregedor Nacional de Justiça, a evitar vácuo normativo, o que poderia inviabilizar o exercício das funções constitucionais do Conselho.

A Resolução nº 67/2009 (Regimento Interno do CNJ) encontra, portanto, amparo direto na Constituição Federal e equivale à normatização pelo Estatuto da Magistratura, ao menos até que seja editada uma nova LOMAN.

 

Constitucionalidade material

A requisição atribuída ao Corregedor pelo art. 8º, V, do RI/CNJ, em uma primeira análise, poderia indicar uma ofensa ao direito à privacidade, à intimidade, à vida privada e à proteção de dados (art. 5º, X e XII, CF/88):

Art. 5º (...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a

indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(...)

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações

telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

 

Contudo, o art. 8º, V, do Regimento Interno é constitucional, porque representa hipótese de transferência de sigilo justificada diante do papel institucional do CNJ e do Corregedor Nacional de Justiça.

A requisição de dados estabelecida pelo RI/CNJ, no ponto contestado, é atribuição instrumental do Corregedor, visando ao exercício de suas competências de modo efetivo.

O controle interno do Poder Judiciário coaduna-se com os valores republicanos e com a necessidade de manter a idoneidade do exercício do poder que é a jurisdição.

Ainda que os sigilos bancário e fiscal tenham estatura constitucional, não há direitos absolutos em atenção a outros valores públicos. Nesse sentido é a jurisprudência do STF: RE 601314 (Tema nº 225 da Repercussão Geral), ADIs 2386, 2390, 2397 e 2859 e RE 1055941 (Tema nº 990 da Repercussão Geral).]

Os dados da vida patrimonial dos agentes públicos, enquanto exercem função pública, não podem ser considerados inacessíveis de forma ampla, havendo uma relativização, conforme se observa pelo art. 13 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), pelo art. 29 da Lei nº 5.010/66 e pela Lei nº 8.730/93:

Lei de Improbidade Administrativa

Art. 13. A posse e o exercício de agente público ficam condicionados à apresentação de declaração de imposto de renda e proventos de qualquer natureza, que tenha sido apresentada à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, a fim de ser arquivada no serviço de pessoal competente. (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

 

Lei Orgânica da Justiça Federal (Lei nº 5.010/66):

Art. 29. Os Juízes Federais e os Juízes Federais Substitutos enviarão, anualmente, ao Conselho da Justiça Federal, cópia da sua declaração de bens apresentada a repartição do imposto de renda.

 

Lei nº 8.730/93

Art. 1º É obrigatória a apresentação de declaração de bens, com indicação das fontes de renda, no momento da posse ou, inexistindo esta, na entrada em exercício de cargo, emprego ou função, bem como no final de cada exercício financeiro, no término da gestão ou mandato e nas hipóteses de exoneração, renúncia ou afastamento definitivo, por parte das autoridades e servidores públicos adiante indicados:

(...)

V - membros da Magistratura Federal;

VI - membros do Ministério Público da União;

 

A possibilidade de requisição de dados fiscais e bancários, pelo Corregedor Nacional de Justiça, a outras autoridades da Administração Pública, ao mesmo tempo que encontra amparo na lógica de probidade patrimonial dos agentes públicos, vai além e possibilita a transferência de outras informações que não somente as apresentadas em referidas declarações de rendas e bens, que o são por imposição legal, encontrando justificativa na função constitucional por si exercida, de fiscalização da integridade funcional do Poder Judiciário, em especial a idoneidade da magistratura nacional, que exerce poder indispensável ao Estado democrático de direito, a jurisdição, a exigir, por isso mesmo, a estrita observância dos princípios da Administração Pública e dos deveres funcionais respectivos.

 

Interpretação conforme

Vale ressaltar, contudo, que o art. 8º, V, do RI/CNJ deve ser interpretado com cautelas.

A requisição somente se sustenta, do ponto de vista constitucional, na hipótese de existência de processo devidamente instaurado para averiguação de conduta de pessoa determinada.

Assim, o Corregedor Nacional de Justiça somente pode se valer dessa requisição para apuração de infrações de sua competência, em desfavor de sujeito certo, e mediante decisão fundamentada e baseada em indícios concretos.

 

Conclusão

Ação conhecida apenas no que concerne à requisição de dados bancários e fiscais às autoridades competentes, e, na parte conhecida, julgado parcialmente procedente o pedido, para, em interpretação conforme a Constituição (art. 5º, X, XII e LIV, CF/88), estabelecer que a requisição dos dados bancários e fiscais imprescindíveis, prevista no art. 8º, V, do Regimento Interno do CNJ, é constitucional desde que decretada:

• em processo regularmente instaurado para apuração de infração por sujeito determinado;

• mediante decisão fundamentada; e

• baseada em indícios concretos da prática do ato.

 

Em suma:

É constitucional a requisição, sem prévia autorização judicial, de dados bancários e fiscais considerados imprescindíveis pelo Corregedor Nacional de Justiça para apurar infração de sujeito determinado, desde que em processo regularmente instaurado mediante decisão fundamentada e baseada em indícios concretos da prática do ato.

A previsão regimental do art. 8º, V, tem por fundamento a probidade patrimonial dos agentes públicos. A legitimidade para requisição pode ser por decisão singular do Corregedor por conta da função constitucional por ele exercida, de fiscalização da integridade funcional do Poder Judiciário.

Contudo, é preciso assegurar a existência de garantias ao contribuinte, de modo que não há espaço para devassa ou varredura, buscas generalizadas e indiscriminadas na vida das pessoas, com o propósito de encontrar alguma irregularidade.

STF. Plenário. ADI 4709/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 27/5/2022 (Info 1056).



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