quarta-feira, 28 de março de 2018

Constitucionalidade dos §§ 3º e 4º do art. 224 do Código Eleitoral




Lei nº 13.165/2015
A Lei nº 13.165/2015 (conhecida como minirreforma eleitoral de 2015) alterou diversos dispositivos da legislação eleitoral.
Dentre as mudanças promovidas, vale destacar que a Lei nº 13.165/2015 acrescentou os §§ 3º e 4º ao art. 224 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65).
Veja os dispositivos incluídos:
Art. 224 (...)
§ 3º A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados.
§ 4º A eleição a que se refere o § 3º correrá a expensas da Justiça Eleitoral e será:
I - indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato;
II - direta, nos demais casos.

Desse modo, o § 3º prevê que a decisão da Justiça Eleitoral que importe:
• o indeferimento do registro,
• a cassação do diploma ou
• a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário
... acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados.

Vale ressaltar que, para o STF, o legislador federal pode estabelecer causas eleitorais, ou seja, relacionadas a ilícitos associados ao processo eleitoral, que possam levar à vacância do cargo.

Segundo o § 4º, essa eleição será:
1) INDIRETA (feita pelo parlamento): se a vacância do cargo ocorrer a menos de 6 meses do final do mandato (está faltando menos de 6 meses, não “vale a pena” fazer eleição direta);
2) DIRETA (com voto universal de todos os eleitores): se quando ocorreu a vacância ainda havia mais de 6 meses de mandato. Então, se ainda não tiver passado mais que 3 anos e 6 meses, a eleição será direta.

ADI e § 3º do art. 224
A Procuradoria-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade contra estes dois parágrafos incluídos pela Lei 13.165/2015.
Quanto ao § 3º, a alegação da PGR foi a de que a exigência de trânsito em julgado para a realização de novas eleições seria uma espera “exagerada e desproporcional, em face da gravidade das condutas que autorizam cassação de diploma e de mandato”.
O autor da ADI defendia a seguinte tese: se o TSE já tiver julgado todos os recursos sobre o tema e somente se estiver aguardando eventual recurso extraordinário interposto contra a decisão, então, neste caso, deve-se autorizar a realização de novas eleições. Isso porque o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo. Logo, não deveria impedir a realização de novas eleições. Em outras palavras, a PGR queria que o STF julgasse inconstitucional a expressão “após o trânsito em julgado” prevista no § 3º do art. 224 do Código Eleitoral e que o Tribunal fixasse a interpretação de que basta o encerramento da tramitação do processo na Justiça Eleitoral.

ADI e § 4º do art. 224
A PGR alegou que a previsão do § 4º do art. 224 do Código Eleitoral viola o art. 81, caput e § 1º da CF/88:
Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.
§ 1º - Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.

• art. 224, § 4º do CE: prevê que se a vacância for nos últimos 6 meses, a eleição será indireta;
• art. 81, § 1º da CF/88: estabelece que se a vacância for nos dois últimos anos, a eleição será indireta.

Desse modo, o art. 224, § 4º do CE reduziu de 2 anos para 6 meses o tempo no qual se exige que a vacância ocorra para que a eleição seja indireta.

O que o STF decidiu quanto ao § 3º?
O STF concordou com a PGR e declarou a inconstitucionalidade da locução “após o trânsito em julgado”, prevista no § 3º do art. 224 do Código Eleitoral.
O STF entendeu que a exigência do trânsito em julgado para a perda do mandato contraria o princípio democrático e o princípio da soberania popular.
Normalmente o candidato eleito que é condenado pela Justiça Eleitoral interpõe sucessivos recursos. Se as novas eleições somente pudessem ser realizadas após o julgamento de todos esses recursos, é muito provável que o mandato de 4 anos do Prefeito, do Governador ou do Presidente se encerrasse sem que esse novo pleito fosse realizado.
Além disso, mesmo se o condenado é afastado cautelarmente do cargo enquanto se aguarda o trânsito em julgado, se não há novas eleições, quem assume temporariamente é o Presidente do Poder Legislativo. Ex: Prefeito é condenado à perda do mandato; suponhamos que a Justiça Eleitoral o afaste mesmo havendo ainda recurso pendente; pela regra do § 3º, não seria possível a realização de nova eleição para o cargo enquanto não houvesse o trânsito em julgado; isso significa que o Presidente da Câmara Municipal ficaria na função de Prefeito durante meses ou até mesmo anos aguardando o trânsito em julgado sem tenha sido eleito para isso. Tal situação representaria violação ao princípio democrático e ao princípio da soberania popular, porque permitiria que alguém que não foi eleito exercesse o cargo majoritário por largo período.
Dessa forma, o STF declarou a inconstitucionalidade da expressão “após o trânsito em julgado” e decidiu que basta a exigência de decisão final da Justiça Eleitoral. Assim, concluído o processo na Justiça Eleitoral (ex: está pendente apenas recurso extraordinário), a nova eleição já pode ser realizada mesmo sem trânsito em julgado.

O que o STF decidiu quanto ao § 4º?
O STF afirmou que esse dispositivo deveria receber uma interpretação conforme a Constituição, de modo a afastar do seu âmbito de incidência as situações de vacância nos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, bem como no de Senador da República.
Em outras palavras, o § 4º é válido, mas ele não se aplica para os cargos de:
• Presidente e Vice-Presidente da República; e
• Senador.

Não se aplica porque no caso de vacância dos cargos de Presidente, Vice-Presidente e Senador, a própria Constituição Federal já estabelece regras que deverão ser observadas para o seu preenchimento elas são diferentes do que preconiza o § 4º.

Regras da CF/88 para a vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente
A CF/88 prevê que, se vagarem os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, deverá ser realizada uma nova eleição.
Essa eleição será:
• direta: se a vacância ocorrer nos primeiros dois anos do mandato;
• indireta (pelo Congresso Nacional): se a vacância ocorrer nos últimos dois anos do mandato.

Desse modo, esse critério de 6 meses trazido pelo § 4º do art. 225 do Código Eleitoral não pode ser aplicado para os casos de Presidente ou Vice-Presidente da República porque há previsão expressa diferente no art. 81, caput e § 1º da CF/88.

Regras da CF/88 para a vacância do cargo de Senador
No caso de Senador, também há uma previsão expressa no art. 56, § 2º da CF/88:
Art. 56 (...)
§ 2º Ocorrendo vaga e não havendo suplente, far-se-á eleição para preenchê-la se faltarem mais de quinze meses para o término do mandato.

Logo, o § 4º do art. 225 também não pode ser aplicado para a vacância dos cargos de Senador.

E para os cargos de Prefeito e Governador, pode ser aplicado o § 4º do art. 225 do Código Eleitoral?
SIM. É compatível com a Constituição Federal a aplicação do § 4º do art. 225 do CE em relação aos cargos de Governador e de Prefeito. Isso porque, diferentemente do que faz com o Presidente da República e com o Senador, o texto constitucional não prevê modo específico de eleição no caso de vacância de Governador e Prefeito. Logo, no que tange aos Governadores e Prefeitos, não há incompatibilidade do § 4º com nenhum dispositivo da CF/88.

Previsões das Constituições estaduais e leis orgânicas
Algumas Constituições estaduais e leis orgânicas de Municípios repetem, para os Governadores e Prefeitos a mesma regra do art. 81, caput e § 1º da CF/88. Veja o exemplo da Constituição do Estado de Minas Gerais:
Art. 87. No caso de impedimento do Governador e do Vice-Governador do Estado ou no de vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício do Governo o Presidente da Assembleia Legislativa e o do Tribunal de Justiça.
§ 1º – Vagando os cargos de Governador e Vice-Governador do Estado, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.
§ 2º – Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do mandato governamental, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pela Assembleia Legislativa, na forma de lei complementar.
(...)

A pergunta que surge é a seguinte: nestes casos, deverá prevalecer a previsão das Constituições estaduais e leis orgânicas ou o § 4º do art. 225 do Código Eleitoral?
Depende:
• se a vacância tiver razões eleitorais (ex: Governador e Vice perderam o mandato por compra de votos): aplica-se o art. 225, § 4º do Código Eleitoral.
• se a vacância estiver fundada em razão de causas não eleitorais (ex: Governador e Vice morreram durante o mandato): aplica-se a regra prevista nas Constituições estaduais (para os Governadores) ou nas leis orgânicas (para os Prefeitos). Isso porque como se trata de matéria político-administrativa, tais entes possuem autonomia federativa para legislar.

Resumindo:
A Lei nº 13.165/2015 (minirreforma eleitoral de 2015) inseriu os §§ 3º e 4º ao art. 224 do Código Eleitoral.
O § 3º prevê que “a decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados.”
O STF declarou a inconstitucionalidade da expressão “após o trânsito em julgado” e decidiu que basta a exigência de decisão final da Justiça Eleitoral. Assim, concluído o processo na Justiça Eleitoral (ex: está pendente apenas recurso extraordinário), a nova eleição já pode ser realizada mesmo sem trânsito em julgado.
O § 4º, por sua vez, determina que:
§ 4º A eleição a que se refere o § 3º correrá a expensas da Justiça Eleitoral e será:
I - indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato;
II - direta, nos demais casos.
O STF afirmou que esse § 4º deveria receber uma interpretação conforme a Constituição, de modo a afastar do seu âmbito de incidência as situações de vacância nos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, bem como no de Senador da República.
Vale ressaltar que a regra do § 4º aplica-se aos cargos de Governador e Prefeito.
STF. Plenário. ADI 5525/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 7 e 8/3/2018 (Info 893).

ADI 5619/DF
Além da ADI proposta pela PGR acima analisada, o Partido Social Democrático (PSD) também ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5619) contra o § 3º do art. 224.
O autor alegou que a anulação de pleitos majoritários em decorrência de indeferimento de registro, cassação de diploma ou perda de mandato de candidato eleito, independentemente do número de votos anulados, apenas deveria incidir em eleições para as quais a Constituição Federal exija maioria absoluta dos votos válidos.
Assim, seria inconstitucional aplicar este § 3º a eleições para cargos de Senador e de Prefeito de município com menos de 200 mil eleitores. Isso porque nesses dois casos (Senador e Prefeito de cidade com menos de 200 mil eleitores) não há segundo turno de votação e a investidura depende apenas de obtenção de maioria simples (art. 29, II e art. 46).
O partido alegava que o indeferimento de registro, cassação de diploma ou perda de mandato de candidato eleito em tais pleitos deveria acarretar atribuição da vaga ao próximo mais votado, não sendo necessário fazer outra eleição. Desse modo, segundo a tese do requerente, se o Prefeito de um Município com menos de 200 mil eleitores perdesse o mandato por compra de votos, por exemplo, a solução correta não seria realizar novas eleições (§ 3º do art. 224), mas sim determinar que o 2º colocado assumisse a vaga.

O STF concordou com a tese do autor da ADI? O § 3º do art. 224 do CE é incompatível com eleições majoritárias simples (ou seja, eleições majoritárias nas quais não se exige 2º turno)?
NÃO.
É constitucional legislação federal que estabeleça novas eleições para os cargos majoritários simples — isto é, Prefeitos de Municípios com menos de duzentos mil eleitores e Senadores da República — em casos de vacância por causas eleitorais.
STF. Plenário. ADI 5619/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 7 e 8/3/2018 (Info 893).

Assim, o § 3º do art. 224 do CE deve sim ser aplicado mesmo em casos de eleições para Prefeitos de Municípios com menos de 200 mil eleitores e para Senadores.
O fato de em tais eleições não haver 2º turno não impede que o legislador imponha a realização de novas eleições. Trata-se de uma escolha legítima e que está de acordo com o princípio da soberania popular.
Desse modo, o STF adotou uma postura de deferência ao legislador (respeito à opção legítima do legislador).
Vale ressaltar, ainda, que o argumento de que seria mais célere e menos custoso convocar o 2º colocado não se mostra suficiente para declarar a inconstitucionalidade da previsão. Isso porque a celeridade e a economicidade cedem espaço ao princípio democrático.

Cuidado para não confundir
Conforme decidido na ADI 5525/DF, o § 4º do art. 224 do Código Eleitoral não se aplica para o cargo de Senador. Assim, para Senador, incide o § 3º, mas não o § 4º do art. 224 do Código Eleitoral.


terça-feira, 27 de março de 2018

Lei 13.640/2018: regulamenta o transporte remunerado privado individual de passageiros (Lei do Uber)


Olá amigos do Dizer o Direito,

Foi publicada a Lei nº 13.640/2018, que altera a Lei nº 12.578/2012, com o objetivo de regulamentar o transporte remunerado privado individual de passageiros (Lei do Uber).

A Lei nº 12.578/2012 é um importante diploma que trata sobre a “Política Nacional de Mobilidade Urbana”, ou seja, dispõe sobre os modos de transporte urbano, entre outros assuntos.

O Uber chegou ao Brasil somente em 2014. Por essa razão, a Lei nº 12.578, que é de 2012, não tratou sobre este serviço nem sobre os similares que vieram depois (Cabify, 99 etc.).

Ficou, portanto, uma lacuna na legislação.

Diante disso, os Municípios, pressionados pelos taxistas, começaram a editar leis proibindo os serviços de transporte mediante aplicativo. Tais leis, contudo, foram sendo julgadas inconstitucionais pelos Tribunais de Justiça sob o argumento de que essa proibição pura e simples violaria a livre iniciativa (art. 1º, IV), a liberdade de exercício de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII), assim como a livre concorrência (art. 170, IV, da CF/88). Foi o caso, por exemplo, do TJSP no julgamento da ADIn 2213289-26.2016.8.26.0000.

Além disso, a Procuradoria Geral da República emitiu parecer afirmando que "apenas a lei federal pode interferir sobre o transporte privado individual de passageiros organizado por aplicativos online como atividade de interesse público". Assim, segundo defendeu a PGR, os Municípios não têm competência para legislar sobre “transporte”, matéria de competência privativa da União (art. 22, XI, da CF/88).

Em face desse cenário, os taxistas passaram a cobrar que o Congresso Nacional regulamentasse o tema. Daí surgiram duas forças antagônicas:
• os taxistas, que desejavam que a legislação federal fosse bem intervencionista e regulatória, exigindo-se, inclusive, que os carros ligados a aplicativos circulassem com placas vermelhas, que são concedidas pelo poder público;
• de outro, uma forte pressão das empresas de aplicativo para que a regulamentação fosse flexível.

Penso que os aplicativos venceram essa disputa. Isso porque, diante do cenário possível, a Lei nº 13.640/2018 não foi rigorosa quanto às exigências impostas.

Em linhas gerais, o que fez a Lei nº 13.640/2018?
Conferiu aos Municípios (e ao Distrito Federal) competência exclusiva para regulamentar e fiscalizar o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros.

O que é o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros? O Uber e similares estão incluídos nessa expressão?
SIM. Transporte remunerado privado individual de passageiros é...
- o serviço remunerado de transporte de passageiros,
- não aberto ao público,
- para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas (ex: uberPOOL)
- solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos
- ou outras plataformas de comunicação em rede.

Isso significa que agora os Municípios (e o DF) estão autorizados a editar leis tratando sobre o transporte por meio de aplicativos?
SIM. Isso mesmo.

Diretrizes impostas pela lei federal
A Lei n. 13.640/2018 afirmou que, quando os Municípios (ou DF) forem editar as suas leis regulamentando os serviços, eles deverão observar algumas diretrizes.
Assim, a lei municipal (ou distrital) deverá exigir:
a) que tais serviços de transporte por aplicativos sejam prestados com eficiência, eficácia, segurança e efetividade;
b)  a cobrança dos tributos municipais devidos pela prestação do serviço (ISS e taxas);
c) a contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT);
d) que o motorista seja inscrito como contribuinte individual do INSS (art. 11, V, “h”, da Lei nº 8.213/91).

Condições pessoais impostas aos motoristas
A Lei nº 13.640/2018 também trouxe algumas exigências pessoais ao motorista que trabalha com os serviços de transporte por aplicativo.
Assim, os motoristas de Uber e similares deverão:
I - possuir Carteira Nacional de Habilitação na categoria B ou superior que contenha a informação de que exerce atividade remunerada;
II - conduzir veículo que atenda aos requisitos de idade máxima e às características exigidas pela autoridade de trânsito e pelo poder público municipal e do Distrito Federal. Exs: exigência de que o veículo tenha um limite máximo do ano de fabricação, que tenha adesivo ou uma placa removível do aplicativo no para-brisas etc.
III - emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV);
IV - apresentar certidão negativa de antecedentes criminais.

O que acontece se o serviço for prestado no Município (ou DF) em contrariedade com a regulamentação?
A exploração dos serviços remunerados de transporte privado individual de passageiros sem o cumprimento dos requisitos previstos na Lei nº 12.578/2012 e na regulamentação do poder público municipal (ou distrital) caracterizará transporte ilegal de passageiros.

A regulamentação é obrigatória? Os Municípios (DF) são obrigados a editar leis regulamentando a atividade?
NÃO. O Município (ou DF) poderá optar por não regulamentar tais serviços.

Enquanto os Municípios não editarem a regulamentação, o serviço está permitido?
SIM. Os serviços de transporte de passageiros mediante aplicativo não dependem de autorização prévia e podem continuar sendo prestados normalmente mesmo sem regulamentação municipal.

Os Municípios podem proibir o transporte de passageiros mediante aplicativo? Podem proibir o serviço desempenhado pelo Uber e similares?
NÃO. A Lei nº 13.640/2018, que alterou a Lei nº 12.578/2012, reconheceu a existência legal dos serviços de transporte de passageiros mediante aplicativo. Ao prever esse tipo de serviço como meio de transporte válido, ela autorizou apenas que os Municípios (e DF) regulamentem a atividade, ou seja, que detalhem o funcionamento. Eventual proibição do serviço pela legislação municipal configuraria, portanto, previsão contrária à lei federal.

Pontos polêmicos
Como a Lei federal foi lacônica, ainda surgirão inúmeros pontos polêmicos a respeito do serviço. Os três principais questionamentos que antevejo são os seguintes:
- A legislação municipal pode exigir que o motorista seja proprietário do veículo que irá utilizar?
-  A legislação municipal poderá exigir autorização individual dos motoristas e placa especial, como ocorre com os táxis?
- Os Municípios podem limitar o número de motoristas ou carros que realizam o transporte por meio dos aplicativos?

Clique AQUI para ler a íntegra da Lei.

Márcio André Lopes Cavalcante
Professor




Compete ao TSE julgar RCED envolvendo Presidente ou Vice-Presidente da República




Diplomação
Depois que as eleições são realizadas e que são apurados os votos e os eleitos, ocorre um ato na Justiça Eleitoral chamado de “diplomação”.
A diplomação é o ato pelo qual a Justiça Eleitoral atesta quem são os candidatos eleitos e os respectivos suplentes.
A diplomação constitui ato decisório do tribunal, ainda que de natureza administrativa. A expedição do diploma ocorre apenas após a análise dos requisitos para sua concessão ao candidato, bem como ante a verificação da lisura do pleito.
Os eleitos e suplentes recebem, efetivamente, um diploma entregue em um ato solene realizado pela Justiça Eleitoral. Veja um exemplo:



Assim determina o Código Eleitoral:
Art. 215. Os candidatos eleitos, assim como os suplentes, receberão diploma assinado pelo Presidente do Tribunal Regional ou da Junta Eleitoral, conforme o caso.
Parágrafo único. Do diploma deverá constar o nome do candidato, a indicação da legenda sob a qual concorreu, o cargo para o qual foi eleito ou a sua classificação como suplente, e, facultativamente, outros dados a critério do juiz ou do Tribunal.

A diplomação é considerada como a última fase do processo eleitoral.

De quem é a competência para realizar o ato de diplomação?
• Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores: são diplomados pela Junta Eleitoral (Juiz Eleitoral).
• Governador, Vice-Governador, Senadores, Deputados Federais e Estaduais: diplomados pelo TRE.
• Presidente da República e Vice-Presidente da República: diplomados pelo TSE.

Os diplomas são assinados pelo Juiz Eleitoral, pelo Presidente do TRE ou pelo Presidente do TSE, a depender do caso concreto.

Recurso contra a diplomação (RCED)
Mesmo depois da diplomação, é possível que esse ato seja impugnado por meio de um instrumento processual chamado “recurso contra a expedição do diploma”, estando previsto no art. 262 do Código Eleitoral nos seguintes termos:
Art. 262. O recurso contra expedição de diploma caberá somente nos casos de inelegibilidade superveniente ou de natureza constitucional e de falta de condição de elegibilidade.

Por meio do RCED, objetiva-se a cassação ou denegação do diploma em caso de:
a) inelegibilidade de cunho infraconstitucional superveniente ao requerimento de registro da candidatura;
b) inelegibilidade de natureza constitucional ou
c) ausência de condições de elegibilidade.

Natureza jurídica de “ação”
Apesar do nome, o recurso contra a expedição de diploma não tem natureza jurídica de “recurso”, sendo uma ação autônoma. Logo, o instrumento previsto no art. 262 do Código Eleitoral consiste em uma ação proposta contra o ato de diplomação da Justiça Eleitoral.
Esse nome existe porque o RCED foi originariamente concebido para ser um “recurso administrativo”, mas com o passar do tempo e com a evolução jurisprudencial, entendeu-se que se trata na verdade de uma ação autônoma, dando origem a um processo de cunho jurisdicional.

Legitimidade ativa. Quem pode propor o RCED?
Podem propor RCED:
a) os candidatos;
b) os partidos políticos;
c) as coligações;
d) o Ministério Público eleitoral.

Legitimidade passiva. Contra quem é proposto o RCED?
Contra o candidato eleito diplomado e que possui algum dos vícios previstos no art. 262 do CE.
Além disso, deverão também figurar na lide, como litisconsortes passivos necessários:
• o vice (no caso de eleições para a chefia do Poder Executivo);
• o suplente (no caso de eleições para Senador) e

O partido político não precisa figurar no polo passivo.

Prazo
O RCED deve ser proposto no prazo de 3 dias, contados a partir da data da sessão de diplomação (art. 258 do CE).

Procedimento
1) Legitimado ativo apresenta o RCED por meio de petição subscrita por advogado.
2) Recebida a petição, o Juiz Eleitoral (no caso de RCED proposto na Junta Eleitoral) ou o Relator do TRE sorteado (no caso de RCED proposto no TRE) mandará intimar o “recorrido” para ciência do “recurso”, dando vista dos autos a fim de, no prazo de 3 dias, possa oferecer razões, acompanhadas ou não de novos documentos.
3) Se o recorrido juntar novos documentos, terá o recorrente vista dos autos por 48 horas para se manifestar sobre eles.
4) O juiz eleitoral, dentro de 48 horas, fará subir os autos ao Tribunal Regional com a sua resposta e os documentos em que se fundar.

Competência
• Se o RCED for contra a diplomação de Prefeito, Vice-Prefeito ou Vereador (eleições municipais): a competência para julgar será do TRE.
• Se o RCED for contra a diplomação de Governador, Vice-Governador, Senador, Deputado Federal, Deputado Estadual/Distrital (eleições gerais federais e estaduais): a competência para julgar será do TSE.

Vale aqui explicar uma peculiaridade: o RCED é sempre interposto na instância “inferior” a que irá julgá-lo. Ex: um RCED proposto contra a diplomação de um Prefeito é ajuizado na Junta Eleitoral e, depois que o Juiz Eleitoral dá vista dos autos para a parte recorrida, ele remete os autos ao TRE para julgamento. De igual forma, se for proposto um RCED contra diplomação de Governador, isso é ajuizado no TRE, mas depois será remetido para julgamento pelo TSE.

E no caso de RCED proposto contra diplomação de Presidente ou Vice-Presidente da República? De quem será a competência para julgar RCED em eleições presidenciais?
TSE.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é o órgão competente para julgar os Recursos Contra Expedição de Diploma (RCED) nas eleições presidenciais e gerais (federais e estaduais).
STF. Plenário. ADPF 167/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 7/3/2018 (Info 893).

O sistema estabelecido pelo Código Eleitoral prevê que o julgamento do RCED será feito pelo órgão jurisdicional hierarquicamente superior àquele que concedeu a diplomação. A exceção fica por conta da diplomação para Presidente e Vice-Presidente da República. Isso porque o Presidente e o Vice são diplomados pelo TSE e é o próprio TSE que julga eventual RCED proposto questionando esse ato.




sábado, 24 de março de 2018

INFORMATIVO Comentado 892 STF




Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 892 STF.

Confira abaixo o índice. Bons estudos.


ÍNDICE DO INFORMATIVO 892 DO STF

Direito CONSTITUCIONAL
ADPF
É possível celebrar acordo em ADPF.

Direito ELEITORAL
LEI DA FICHA LIMPA
É aplicável a alínea “d” do inciso I do art. 1º da LC 64/90, com a redação dada pela LC 135/2010, a fatos anteriores a sua publicação.

DIREITO AMBIENTAL
CÓDIGO FLORESTAL
Análise da constitucionalidade do novo Código Florestal (Lei 12.651/2012).

DIREITO CIVIL
TRANSGÊNERO
Transgênero pode alterar seu prenome e gênero no registro civil mesmo sem fazer cirurgia de transgenitalização e mesmo sem autorização judicial.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL
RECURSOS
Não cabe recurso extraordinário contra decisão do TST que julga PAD.

AÇÃO CIVIL PÚBLICA
É possível que as associações privadas façam transação em ação civil pública.

DIREITO PENAL
CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL
Em caso de estupro praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada.

DIREITO PROCESSUAL PENAL
HABEAS CORPUS
Em regra, não cabe habeas corpus contra decisão transitada em julgado.












INFORMATIVO Comentado 892 STF - Versão Resumida


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 892 STF - Versão Resumida.

Bons estudos.












É possível celebrar acordo em ADPF?



                                                                        
É possível que seja celebrado um acordo no bojo de uma arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF)?
SIM.
É possível a celebração de acordo num processo de índole objetiva, como a ADPF, desde que fique demonstrado que há no feito um conflito intersubjetivo subjacente (implícito), que comporta solução por meio de autocomposição.
Vale ressaltar que, na homologação deste acordo, o STF não irá chancelar ou legitimar nenhuma das teses jurídicas defendidas pelas partes no processo.
O STF irá apenas homologar as disposições patrimoniais que forem combinadas e que estiverem dentro do âmbito da disponibilidade das partes.
A homologação estará apenas resolvendo um incidente processual, com vistas a conferir maior efetividade à prestação jurisdicional.
STF. Plenário. ADPF 165/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 1º/3/2018 (Info 892).

Exemplo:
As pessoas que tinham dinheiro em conta poupança nos anos de 1986 a 1991 foram prejudicadas pelos planos econômicos editados neste período (Planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor II). Isso porque esses planos fizeram a conversão dos valores depositados de forma errada (os chamados “expurgos inflacionários”).
Em razão disso, tais poupadores ingressaram com ações judiciais pedindo a correção disso e o pagamento das diferenças. Além das ações individuais, também foram propostas ações coletivas ajuizadas por associações de defesa do consumidor e por associações de poupadores.
Os juízes e Tribunais estavam todos decidindo em favor dos poupadores.
A fim de tentar reverter a situação, Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) ajuizou, no Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 165, pedindo, com eficácia erga omnes (para todos) e efeito vinculante, a suspensão de qualquer decisão judicial que tivesse por objeto a reposição das perdas decorrentes dos planos econômicos.
Na ação, a CONSIF alegava a plena constitucionalidade dos referidos planos, de forma que os poupadores não teriam nada a receber.
Ao longo da tramitação da ADPF, as várias associações de defesa do consumidor e dos poupadores, que haviam ajuizado ações coletivas tratando do tema, pediram para intervir no processo na qualidade de amicus curiae (ex: Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, Associação Brasileira do Consumidor, entre outras), o que foi aceito pelo STF.
Depois de quase 9 anos tramitando no STF, houve um acordo entre a CONSIF (autora da ADPF) e as associações de defesa do consumidor/poupadores.
Vale ressaltar que a AGU atuou como mediadora desse ajuste (art. 4º da Lei nº 13.140/2015), por meio da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal.
Por meio desse acordo, os bancos aceitam pagar os poupadores segundo cronograma e condições que estão no ajuste e, em troca, os correntistas desistem das ações individuais que possuíam contra as instituições financeiras. Além disso, as associações de defesa do consumidor comprometeram-se a peticionar nas ações civis públicas que ingressaram requerendo a extinção do processo pela transação (art. 487, III, “b”, do CPC).
Os termos do acordo preveem o pagamento de mais de 12 bilhões de reais aos poupadores, que serão inscritos em plataforma digital preparada pelo CNJ. Os bancos irão analisar os requerimentos dos interessados. Os pagamentos serão feitos nas contas correntes dos beneficiários, que receberão os respectivos valores à vista ou parceladamente, a depender do montante.
Terão direito à reparação todos que haviam ingressado com ações coletivas e individuais para cobrar das instituições financeiras os valores referentes às correções. No caso das ações individuais, poupadores ou herdeiros que ingressaram judicialmente dentro do prazo prescricional de 20 anos da edição de cada plano também poderão receber os valores. Igualmente poderão aderir os poupadores que, com base em ações civis públicas, requereram execução de sentença coletiva até 31/12/2016.

E o que a aconteceu com a ADPF?
Foi extinta, nos termos do art. 487, III, “b”, do CPC:
Art. 487.  Haverá resolução de mérito quando o juiz:
(...)
III - homologar:
(...)
b) a transação;

Apesar de a resolução da ADPF ter sido com resolução do mérito, ressalte-se, mais uma vez, que o STF, ao homologar o acordo, não concordou com nenhuma das teses jurídicas defendidas pelas partes no processo, ou seja, não disse que os poupadores ou que os bancos tinham razão. Isso não foi analisado na homologação do acordo.

Existe previsão legal de que as associações autoras de ações civis públicas possam fazer transação nessas ações?
NÃO. A Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) prevê que os órgãos públicos podem fazer acordos nas ações civis públicas em curso, não mencionando as associações privadas. Confira:
Art. 5º (...)
§ 6º Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.

Mesmo sem previsão legal as associações privadas podem transacionar em ações civis públicas
O STF afirmou que, mesmo sem previsão normativa expressa, as associações privadas também podem fazer acordos nas ações coletivas.
Assim, a ausência de disposição normativa expressa no que concerne a associações privadas não afasta a viabilidade do acordo. Isso porque a existência de previsão explícita unicamente quanto aos entes públicos diz respeito ao fato de que somente podem fazer o que a lei determina, ao passo que aos entes privados é dado fazer tudo que a lei não proíbe.
Para o Min. Ricardo Lewandoswki, “não faria sentido prever um modelo que autoriza a justiciabilidade privada de direitos e, simultaneamente, deixar de conferir aos entes privados as mais comezinhas faculdades processuais, tais como a de firmar acordos.”


quinta-feira, 22 de março de 2018

Em caso de estupro praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada



Ação penal no crime de estupro
A ação penal no crime de estupro deve ser analisada antes e depois da Lei nº 12.015/2009. Veja como essa Lei alterou o art. 225 do Código Penal:
CÓDIGO PENAL
Antes da Lei nº 12.015/2009
Depois da Lei nº 12.015/2009
Art. 225. Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa.
§ 1º Procede-se, entretanto, mediante ação pública:
I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;
II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.
§ 2º - No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação.
Art. 225.  Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.
Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

O estupro pode ser praticado mediante grave ameaça ou violência. Se o estupro é praticado mediante violência real, qual será a ação penal neste caso?
Em 1984, o STF editou uma súmula afirmando que se trata de ação pública incondicionada. Confira:
Súmula 608-STF: No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada.

Com a edição da Lei nº 12.015/2009, a maioria da doutrina defendeu a ideia de que esta súmula teria sido superada. Isso porque o caput do art. 225 do Código Penal falou que a regra geral no estupro é a ação pública condicionada. Ao tratar sobre as exceções nas quais o crime será de ação pública incondicionada, o parágrafo único do art. 225 não fala em estupro com violência real. Logo, para os autores, teria havido uma omissão voluntária do legislador.

O STF acatou esta tese? Depois da Lei nº 12.015/2009, o estupro praticado mediante violência real passou a ser de ação pública condicionada? Com a Lei nº 12.015/2009, a Súmula 608 do STF perdeu validade?
NÃO. O tema ainda não está pacificado, mas a 1ª Turma do STF decidiu que:
A Súmula 608 do STF permanece válida mesmo após o advento da Lei nº 12.015/2009.
Assim, em caso de estupro praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada.
STF. 1ª Turma. HC 125360/RJ, rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 27/2/2018 (Info 892).

Faça essa observação nos seus livros porque a esmagadora maioria deles diz o contrário.
Vale ressaltar que é dispensável a ocorrência de lesões corporais para a caracterização da violência real nos crimes de estupro. Em outras palavras, mesmo que a violência praticada pelo agressor não deixe marcas, não gere lesões corporais na vítima, ainda assim a ação será pública incondicionada. Nesse sentido: STF. 2ª Turma. HC 102683, Rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 14/12/2010.

E no caso de estupro que resulta lesão corporal grave ou morte (art. 213, §§ 1º e 2º)? Qual será a ação penal nestas hipóteses?
A doutrina também defende que neste caso a ação penal seria pública condicionada.
A Procuradoria-Geral da República ajuizou até mesmo uma ADI contra a nova redação do art. 225 do Código Penal, dada pela Lei nº 12.015/2009.
Na ação, a PGR pede que o caput do art. 225 seja declarado parcialmente inconstitucional, sem redução de texto, apenas “para excluir do seu âmbito de incidência os crimes de estupro qualificado por lesão corporal grave ou morte, de modo a restaurar, em relação a tais modalidades delituosas, a regra geral da ação penal pública incondicionada (artigo 100 do Código Penal e artigo 24 do Código de Processo Penal)”.
Em outras palavras, a PGR pediu que o STF interprete o art. 225 do CP dizendo que o estupro que resulte lesão corporal grave ou morte será crime de ação pública incondicionada.
O processo é a ADI 4301, que deve ser julgada ainda este ano.
Vale ressaltar que, com a decisão acima explicada (HC 125360/RJ), ganha força essa ADI proposta pela PGR e a tendência é que ela seja julgada procedente.

Resumindo. Ação penal no caso de estupro (após a Lei nº 12.015/2009):
Regra: ação penal condicionada à representação.
Exceções:
• Vítima menor de 18 anos: incondicionada.
• Vítima vulnerável: incondicionada.
• Se foi praticado mediante violência real: incondicionada (Súmula 608-STF).
• Se resultou lesão corporal grave ou morte: polêmica acima exposta. Deve ser aplicado o mesmo raciocínio da Súmula 608-STF.



quarta-feira, 21 de março de 2018

Transgênero pode alterar seu prenome e gênero no registro civil mesmo sem fazer cirurgia de transgenitalização e mesmo sem autorização judicial



Transgênero
Transgênero é o indivíduo que possui características físicas sexuais distintas das características psíquicas.
É uma pessoa que não se identifica com o seu gênero biológico.
A pessoa sente que ela nasceu no corpo errado. Ex: o menino nasceu fisicamente como menino, mas ele se sente como uma menina.
Assim, o transgênero tem um sexo biológico, mas se sente como se fosse do sexo oposto e espera ser reconhecido e aceito como tal.

Transexual
Da mesma forma, o transexual também possui características físicas sexuais distintas das características psíquicas. Ele também não se identifica com o seu gênero biológico.
Não existe ainda uma uniformidade científica, no entanto, segundo a posição majoritária, a diferença entre o transgênero e o transexual é a seguinte:
Resumindo:
• transgênero: quer poder se expressar e ser reconhecido como sendo do sexo oposto, mas não tem necessidade de modificar sua anatomia.
• transexual: quer poder se expressar e ser reconhecido como sendo do sexo oposto e deseja modificar sua anatomia (seu corpo) por meio da terapia hormonal e/ou da cirurgia de redesignação sexual (transgenitalização).

Identidade de gênero
Significa a maneira como alguém se sente e a maneira como deseja ser reconhecida pelas demais pessoas, independentemente do seu sexo biológico.
“A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento de seu nascimento.
Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não-binária ou com outros termos, tais como hijra, terceiro gênero, dois-espíritos, travesti,
fa’afafine, gênero queer, transpinoy, muxe, waria e meti. Identidade de gênero é diferente de orientação
sexual. Pessoas trans podem ter qualquer orientação sexual, incluindo heterossexual, homossexual, bissexual e assexual.” (Nota Informativa das Nações Unidas. Disponível em https://unfe.org/system/unfe-91-Portugese_TransFact_FINAL.pdf?platform=hootsuite)

Se o transexual faz a cirurgia de transgenitalização, ele poderá alterar o prenome e o sexo/gênero nos assentos do registro civil?
SIM. Essa possibilidade já foi reconhecida há muitos anos pelo STJ:
(...) A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive. (...)
STJ. 4ª Turma. REsp 737.993/MG, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/11/2009.

Sendo realizada a retificação do registro, os documentos serão alterados e neles não constará nenhuma menção quanto à troca do sexo.

E se não foi feita a cirurgia? Imagine a seguinte situação hipotética:
Mário, pessoa maior de idade que se identifica como transgênero mulher, ajuizou ação de retificação de registro de nascimento para troca do prenome e do sexo masculino para o feminino.
Na inicial, narrou que, desde tenra idade, embora nascida com a genitália masculina e nesse gênero registrada, sempre demonstrara atitudes de criança do sexo feminino.
Afirmou que foi diagnosticada como portadora de "transtorno de identidade de gênero".
Mário nunca realizou a cirurgia de transgenitalização.
Alegou que sofre muitos transtornos porque sente-se como mulher, veste-se como mulher, mas os dados que constam em seus documentos são masculinos (nome e sexo).
Na ação, Mário pediu para que seu prenome seja alterado para Mariana e seu sexo para feminino. Contudo, o empecilho que encontrou foi pelo fato de que não fez a cirurgia de transgenitalização nem deseja realizar.

A questão jurídica enfrentada, portanto, pelo STJ foi a seguinte: é possível que o transgênero altere seu nome e o gênero no assento de registro civil mesmo que não faça a cirurgia de transgenitalização?
SIM. Inicialmente o STJ decidiu que:
O direito dos transexuais à retificação do prenome e do sexo/gênero no registro civil não é condicionado à exigência de realização da cirurgia de transgenitalização.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.626.739-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 9/5/2017 (Info 608).

Agora, o STF avançou sobre o tema e, de forma mais ampla, utilizou a expressão transgênero, afirmando que:
Os transgêneros, que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, possuem o direito à alteração do prenome e do gênero (sexo) diretamente no registro civil.
STF. Plenário. ADI 4275/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 28/2 e 1º/3/2018 (Info 892).

Premissas da decisão do STF:
1) O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou a expressão de gênero. O respeito à identidade de gênero é uma decorrência do princípio da igualdade.
2) A identidade de gênero é uma manifestação da própria personalidade da pessoa humana. Logo, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Isso significa que o Estado não diz o gênero da pessoa, ele deve apenas reconhecer o gênero que a pessoa se enxerga.
3) A pessoa não deve provar o que é, e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental. Assim, se cabe ao Estado apenas o reconhecimento dessa identidade, ele não pode exigir ou condicionar a livre expressão da personalidade a um procedimento médico ou laudo psicológico. A alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero.

Fundamentos jurídicos:
Constituição Federal
• direito à dignidade (art. 1º, III, da CF);
• direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem (art. 5º, X, da CF).

Pacto de São José da Costa Rica
• direito ao nome (artigo 18);
• direito ao reconhecimento da personalidade jurídica (artigo 3);
• direito à liberdade pessoal (artigo 7.1 do Pacto);
• o direito à honra e à dignidade (artigo 11.2 do Pacto).

Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sobre “Identidade de Gênero e Igualdade e Não Discriminação a Casais dos Mesmo Sexo”, publicada em 24.11.2017, na qual se definiram as obrigações estatais em relação à mudança de nome, à identidade de gênero e os direitos derivadas de um vínculo entre casais do mesmo sexo. Veja trecho da Opinião Consultiva:
“(...) a Corte Interamericana deixa estabelecido que a orientação sexual e a identidade de gênero, assim como a expressão de gênero, são categorias protegidas pela Convenção.
Por isso está proibida pela Convenção qualquer norma, ato ou prática discriminatória baseada na orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero da pessoa. Em consequência, nenhuma norma, decisão ou prática do direito interno, seja por parte das autoridades estatais ou por particulares, podem diminuir ou restringir, de modo algum, os direitos de uma pessoa à sua orientação sexual, sua identidade de gênero e/ ou sua expressão de gênero”. (par. 78).
“O reconhecimento da identidade de gênero pelo Estado é de vital importância para garantir o gozo pleno dos direitos humanos das pessoas trans, incluindo a proteção contra a violência, a tortura e maus tratos, o direito à saúde, à educação, ao emprego, à vivência, ao acesso a seguridade social, assim como o direito à liberdade de expressão e de associação.”

Interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica
O art. 58 da Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos) prevê:
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.


O STF, contudo, afirmou que se deve fazer uma nova interpretação desse art. 58 à luz da Constituição Federal e do Pacto de São José da Costa Rica.

Exigir cirurgia ou outros procedimentos é contrário à dignidade da pessoa humana
O Estado deve abster-se de interferir em condutas que não prejudicam a terceiros e, ao mesmo tempo, buscar viabilizar as concepções e os planos de vida dos indivíduos, preservando a neutralidade estatal.
Mostra-se contrário aos princípios da dignidade da pessoa humana, da integridade física e da autonomia da vontade condicionar o exercício do legítimo direito à identidade à realização de um procedimento cirúrgico ou de qualquer outro meio de se atestar a identidade de uma pessoa.
Inadmitir a alteração do gênero no assento de registro civil é atitude absolutamente violadora de sua dignidade e de sua liberdade de ser, na medida em que não reconhece sua identidade sexual, negando-lhe o pleno exercício de sua afirmação pública.

Opinião Consultiva
Conforme consta da Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os Estados (países) têm a possibilidade de decidir qual é o procedimento que será adotado para a retificação do sexo ou nos registros e documentos. No entanto, segundo a Opinão, o procedimento de alteração adotado pelo Estado (inclusive o Brasil) deve cumprir os seguintes requisitos:
a) o procedimento deve respeitar a identidade de gênero auto-percebida pela pessoa requerente;
b) deve estar baseado unicamente no consentimento livre e informado do solicitante sem que se exijam requisitos como certificações médicas ou psicológicas ou outros que possam resultar irrazoáveis ou patologizantes;
c) deve ser confidencial e os documentos não podem fazer remissão às eventuais alterações;
d) deve ser expedito (célere), e na medida do possível, gratuito; e
e) não deve exigir a realização de operações cirúrgicas ou hormonais.

O Colegiado assentou seu entendimento nos princípios da dignidade da pessoa humana, da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, bem como no Pacto de São José da Costa Rica.

Vimos acima que o transgênero não precisa fazer cirurgia para requerer a alteração do prenome e do sexo. Ok. Uma última pergunta, apenas para não ficar dúvidas: a pessoa transgênera precisa de autorização judicial para essa alteração?
NÃO. O STF entendeu que exigir do transgênero a via jurisdicional para realizar essa alteração representaria limitante incompatível com a proteção que se deve dar à identidade de gênero.
O pedido de retificação é baseado unicamente no consentimento livre e informado do solicitante, sem a necessidade de comprovar nada.