domingo, 31 de março de 2019

Não é necessária, mesmo após a Lei 13.245/2016, a intimação prévia da defesa técnica do investigado para a tomada de depoimentos orais na fase de inquérito policial



Lei nº 13.245/2016
O art. 7º do Estatuto da OAB (Lei nº 8.906/94) traz um rol de direitos que são conferidos aos advogados.
A Lei nº 13.245/2016 acrescentou o inciso XXI a este artigo prevendo o seguinte:
Art. 7º São direitos do advogado:
(...)
XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) apresentar razões e quesitos;
b) (VETADO).

Contextualizando o cenário que inspirou a alteração legislativa
Durante muito tempo, houve uma divergência entre os advogados e Delegados de Polícia a respeito da participação da defesa técnica durante o interrogatório ou depoimento de testemunhas. Isso porque alguns Delegados não aceitavam que o advogado participasse do interrogatório do indiciado e, com mais frequência, não permitiam que o causídico estivesse presente durante o depoimento das testemunhas. Tais autoridades policiais argumentavam que não havia previsão legal para isso.
Outros Delegados até permitiam que o advogado estivesse presente nas oitivas, mas não era autorizado que ele formulasse perguntas e requerimentos durante o ato. A participação do advogado, quando facultada, acontecia na condição de mero ouvinte e espectador.
Diante deste cenário, a OAB se articulou para alterar a legislação, que passa a prever, expressamente, o direito do advogado de estar presente no interrogatório do investigado e nos depoimentos, podendo, inclusive, fazer perguntas.

Entendendo o que prevê o novo inciso XXI
O advogado, com o objetivo de assistir (auxiliar) seu cliente que esteja sendo investigado, possui o direito de estar presente no interrogatório e nos depoimentos que forem colhidos durante o procedimento de apuração da infração.
Durante os atos praticados, além de estar presente, o advogado tem o direito de:
• apresentar razões (argumentar e defender seu ponto de vista sobre algo que vá ser decidido pela autoridade policial ou sobre alguma diligência que precise ser tomada); e
• apresentar quesitos (formular perguntas ao investigado, às testemunhas, aos informantes, ao ofendido, ao perito etc.).
As razões e os quesitos poderão ser formulados durante o interrogatório e o depoimento ou, então, por escrito, durante o curso do procedimento de investigação, como no caso de um requerimento de diligência ou da formulação de quesitos a serem respondidos pelo perito.

O advogado tem o direito de ser intimado previamente da data dos depoimentos e interrogatório?
Vamos discutir o tema a partir do seguinte exemplo hipotético:
Foi instaurado inquérito policial para apurar suposto crime que teria sido praticado por João.
O advogado de João peticionou ao Delegado requerendo que todas as vezes em que ele for ouvir alguma testemunha a defesa seja intimada previamente, com antecedência razoável, a fim de que possa participar do ato mediante a apresentação de razões e quesitos, sob pena de nulidade, nos termos da alínea ‘a’ do inciso XXI do art. 7º da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da OAB).

O Delegado será obrigado a atender ao requerimento do advogado? A defesa tem o direito, no inquérito policial, de ser intimada previamente da realização dos atos de investigação?
NÃO. Vamos entender os motivos.

Inquérito é procedimento inquisitorial
O inquérito constitui procedimento de natureza inquisitorial destinado à formação da opinio delicti do órgão acusatório.
Logo, nessa fase, as garantias do contraditório e da ampla defesa são mitigadas, até mesmo porque os elementos de informação colhidos no inquérito não se prestam, por si sós, a fundamentar uma condenação criminal (art. 155 do CPP).
Obs: apesar de, no inquérito policial não existirem as mesmas garantias que em um processo judicial, é preciso dizer que “o investigado não é mero objeto de investigação; ele titulariza direitos oponíveis ao Estado” (Min. Celso de Mello). Assim, alguns autores e Ministros defendem que existe um contraditório no inquérito policial, mas que ele é mitigado.

Lei nº 13.245/2016 não garantiu intimação prévia do advogado
A alteração promovida pela Lei nº 13.245/2016 no art. 7º da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB) garante ao advogado do investigado o direito de assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, inclusive nos depoimentos e interrogatório, podendo apresentar razões e quesitos. No entanto, essa alteração legislativa não impôs um dever à autoridade policial de intimar previamente o advogado constituído para os atos de investigação.
Desse modo, embora constitua prerrogativa do advogado apresentar razões e quesitos no curso de investigação criminal (art. 7º, XXI, da Lei nº 8.906/94), daí não se pode extrair direito subjetivo de que se intime a defesa previamente e com necessária antecedência quanto ao calendário das inquirições a ser definido pela autoridade policial.

E como o advogado saberá as datas para poder participar dos depoimentos?
Se é do interesse do advogado acompanhar com os atos do inquérito, ele poderá ficar consultando os autos do procedimento a fim de verificar as datas que foram designadas para os depoimentos, conforme autoriza o inciso XIV do art. 7º do EOAB:
Art. 7º São direitos do advogado:
(...)
XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital;

Em suma:
Não é necessária a intimação prévia da defesa técnica do investigado para a tomada de depoimentos orais na fase de inquérito policial. Não haverá nulidade dos atos processuais caso essa intimação não ocorra.
O inquérito policial é um procedimento informativo, de natureza inquisitorial, destinado precipuamente à formação da opinio delicti do órgão acusatório.
Logo, no inquérito há uma regular mitigação das garantias do contraditório e da ampla defesa.
Esse entendimento justifica-se porque os elementos de informação colhidos no inquérito não se prestam, por si sós, a fundamentar uma condenação criminal.
A Lei nº 13.245/2016 implicou um reforço das prerrogativas da defesa técnica, sem, contudo, conferir ao advogado o direito subjetivo de intimação prévia e tempestiva do calendário de inquirições a ser definido pela autoridade policial.
STF. 2ª Turma. Pet 7612/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 12/03/2019 (Info 933).



Revisão - Juiz de Direito AC

Olá amigos do Dizer o Direito,

Está disponível a revisão para o concurso de Juiz de Direito do Acre.

Boa prova :)




sexta-feira, 29 de março de 2019

INFORMATIVO Comentado 642 STJ


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 642 STJ.

Confira abaixo o índice. Bons estudos.


ÍNDICE DO INFORMATIVO 642 DO STJ

DIREITO CONSTITUCIONAL
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
É possível que o magistrado condene o autor da ofensa a divulgar a sentença condenatória nos mesmos veículos de comunicação em que foi cometida a ofensa à honra.

DIREITO CIVIL
USUCAPIÃO
Não cabe oposição em ação de usucapião.

ALIMENTOS
Somente incidirá correção monetária para atualização do valor da pensão alimentícia combinada no acordo se isso estiver expressamente previsto no pacto.

DIREITO DO CONSUMIDOR
FORNECEDOR
A empresa que utiliza marca internacionalmente reconhecida, ainda que não tenha sido a fabricante direta do produto defeituoso, enquadra-se na categoria de fornecedor aparente.

RESPONSABILIDADE PELO FATO DO SERVIÇO
Companhia aérea é civilmente responsável por não promover condições dignas de acessibilidade de pessoa cadeirante ao interior da aeronave.

RESPONSABILIDADE PELO FATO DO SERVIÇO
Concessionária de transporte ferroviário deve pagar indenização à passageira que sofreu assédio sexual praticado por outro usuário no interior do trem?

PUBLICIDADE
A inserção de cartões informativos no interior das embalagens de cigarros não constitui prática de publicidade abusiva apta a caracterizar dano moral coletivo.

DIREITO EMPRESARIAL
RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Reserva de 40% dos honorários do administrador judicial (art. 24, § 2º da Lei) se aplica apenas à falência, não à recuperação.

DIREITO PROCESSUAL CIVIL
INTIMAÇÃO
A habilitação de advogado em autos eletrônicos não é suficiente para a presunção de ciência inequívoca das decisões, sendo inaplicável a lógica dos autos físicos.

ORDEM DOS PROCESSOS NOS TRIBUNAIS
Em caso de descumprimento do § 3º do art. 941 do CPC haverá nulidade do acórdão, mas não do julgamento.

DIREITO PROCESSUAL PENAL
PRISÃO PREVENTIVA
A SV 56 é inaplicável ao preso provisório (prisão preventiva) porque esse enunciado trata da situação do preso que cumpre pena (preso definitivo ou em execução provisória da condenação).

COISA JULGADA
Havendo duas sentenças transitadas em julgado envolvendo fatos idênticos, deverá prevalecer a que transitou em julgado em primeiro lugar.

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL MILITAR
COMPETÊNCIA
A Lei 13.491/2017 deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso, respeitando-se os benefícios previstos na legislação penal mais benéfica ao tempo do crime.








INFORMATIVO Comentado 642 STJ - Versão Resumida


Olá amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível o INFORMATIVO Comentado 642 STJ - Versão Resumida.

Bons estudos.





terça-feira, 26 de março de 2019

Companhia aérea deve ser condenada a pagar indenização por danos morais caso o passageiro com deficiência seja obrigado a entrar no avião carregado no colo


Imagine a seguinte situação hipotética:
João possui paraplegia dos membros inferiores e, em razão disso, necessita de cadeira de rodas.
Ele adquiriu uma passagem aérea de Porto Alegre (RS) para Brasília (DF).
No momento do embarque, no entanto, houve um problema para João entrar na aeronave.
A entrada neste voo não ocorreu por meio da ponte de embarque (conhecida como “finger”), ou seja, aquela ponte que faz a ligação entre o terminal e o avião e que fica na mesma altura da entrada da aeronave, de forma que os passageiros precisam apenas andar por uma espécie de “túnel” até a entrada do avião.
Como a aeronave estava pousada longe do terminal, o embarque ocorreu do modo “antigo”, ou seja, os passageiros pegaram um ônibus que os levou até o avião e lá chegando tiveram que subir as escadas para entrar na aeronave.
João foi no ônibus até o avião, mas lá chegando, não havia nenhum mecanismo adequado para permitir que ele ingressasse na aeronave. E quais seriam esses mecanismos?
Poderia ser uma rampa móvel:


Ou um “ambulift”, que é um veículo com uma plataforma que eleva a pessoa com cadeira de rodas para que ela fique na mesma altura da aeronave e entre normalmente no avião:


Como não havia rampa móvel ou “ambulift”, os funcionários na companhia aérea subiram as escadas carregando João no colo.
Alguns dias após esse fato, João ajuizou ação de indenização por danos morais contra a companhia aérea argumentando que o tratamento dispensado para que ele ingressasse na aeronave foi inseguro e vexatório, tendo havido má prestação dos serviços.
A companhia aérea apresentou contestação na qual alegou que o defeito no serviço decorreu da culpa de terceiro (art. 14, § 3º, II, do CDC). Isso porque seria da INFRAERO (empresa pública federal responsável pela administração do aeroporto) o dever de disponibilizar os meios de acesso à aeronave.

O STJ concordou com o pedido formulado pelo consumidor?
SIM.

Da garantia de acessibilidade à pessoa com deficiência no ordenamento jurídico brasileiro
A proteção aos direitos humanos passou de uma fase de universalização para a atual etapa de especificação, na qual é feita a individualização dos grupos titulares de tais prerrogativas dentro de suas especificidades, aprimorando-se os instrumentos de proteção às minorias.
Parte-se, então, para um esforço conjunto dos atores globais para valorizar de forma singularizada o sujeito de direitos.
É diante desse contexto que surge a preocupação específica com as pessoas com deficiência, promovendo-se políticas para assegurar a tais indivíduos o gozo da vida de maneira mais próxima possível da plenitude.

Documentos de proteção às pessoas com deficiência
Essa preocupação manifestou-se no cenário internacional e nacional, sendo possível destacar alguns atos normativos editados com o propósito de proteger as pessoas com deficiência:
Convenção Interamericana sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra Pessoas com Deficiência (1999):
Promulgada pelo Decreto nº 3.956/2001.
Este instrumento previu o comprometimento dos países signatários em adotar medidas legislativas para promover a integração da pessoa acometida por dificuldades, em toda sorte de serviços e instalações público e privados, especialmente o transporte.

Lei nº 10.098/2000:
Com o propósito de cumprir a determinação da Convenção Interamericana, o Congresso Nacional editou a Lei nº 10.098/2000, cuja função foi disciplinar os critérios para a promoção da acessibilidade para as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
Esta Lei foi regulamentada pelo Decreto nº 5.296/2004.
No que tange à aviação civil, o Decreto estabeleceu o seguinte:
Da Acessibilidade no Transporte Coletivo Aéreo
Art. 44.  No prazo de até trinta e seis meses, a contar da data da publicação deste Decreto, os serviços de transporte coletivo aéreo e os equipamentos de acesso às aeronaves estarão acessíveis e disponíveis para serem operados de forma a garantir o seu uso por pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.
Parágrafo único.  A acessibilidade nos serviços de transporte coletivo aéreo obedecerá ao disposto na Norma de Serviço da Instrução da Aviação Civil NOSER/IAC - 2508-0796, de 1º de novembro de 1995, expedida pelo Departamento de Aviação Civil do Comando da Aeronáutica, e nas normas técnicas de acessibilidade da ABNT.

Convenção Internacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência:
Promulgada pelo Decreto 6.949/2009, com status de emenda constitucional considerando que foi submetida ao tratamento previsto no art. 5º, § 3º, da CF/88.
Nele se observa a preocupação acentuada em assegurar a acessibilidade do portador de cuidados especiais, de forma a afastar tratamento discriminatório, realçando não só a pura adequação dos meios para sua concretização, mas também que permitam a independência do indivíduo ao executar as tarefas do cotidiano.
Esse enfoque na autodeterminação é a tônica atual dada à proteção dos direitos das pessoas com deficiência. Com isso, abandona-se a antiquada e reprovável visão que tratava esses indivíduos como mero assunto de saúde pública.
A intenção atual, portanto, é o de garantir ao máximo a integração das pessoas com deficiência com vida comum, reduzindo situações embaraçosas e permitindo deslocamentos sem obstáculos. O objetivo final de tudo isso é promover a máxima inclusão.
A Flávia Piovesan resume bem as quatro fases na história da construção dos direitos humanos das pessoas com deficiência:
1ª fase: foi uma época de intolerância em relação às pessoas com deficiência. A deficiência simbolizava impureza, pecado ou, mesmo, castigo divino;
2ª fase: marcada pela invisibilidade das pessoas com deficiência;
3ª fase: baseada em uma ótica assistencialista, pautada na perspectiva médica e biológica de que a deficiência era uma “doença a ser curada”, sendo o foco centrado no indivíduo “portador da enfermidade”;
4ª fase: orientada pelo paradigma dos direitos humanos, em que emergem os direitos à inclusão social, com ênfase na relação da pessoa com deficiência e do meio em que ela se insere, bem como na necessidade de eliminar obstáculos e barreiras superáveis, sejam elas culturais, físicas ou sociais, que impeçam o pleno exercício de direitos humanos. Isto é, nesta quarta fase, o problema passa a ser a relação do indivíduo e do meio, este assumido como uma construção coletiva. Nesse sentido, esta mudança paradigmática aponta aos deveres do Estado para remover e eliminar os obstáculos que impeçam o pleno exercício de direito das pessoas com deficiência, viabilizando o desenvolvimento de suas potencialidades, com autonomia e participação. (PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 483)

Acessibilidade
A acessibilidade é princípio fundamental assumido pelo Brasil na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoas com Deficiência que, conforme já explicado, possui status de norma constitucional.

Resolução da ANAC
Em âmbito infralegal, a questão é atualmente regulamentada pela Resolução nº 280/2013, da ANAC, que dispõe sobre os procedimentos relativos à acessibilidade de passageiros com necessidade de assistência especial ao transporte aéreo.
O art. 20 da Resolução prevê:
Art. 20. O embarque e o desembarque do PNAE que dependa de assistência do tipo STCR, WCHS ou WCHC devem ser realizados preferencialmente por pontes de embarque, podendo também ser realizados por equipamento de ascenso e descenso ou rampa.
§ 1º O equipamento de ascenso e descenso ou rampa previstos no caput devem ser disponibilizados e operados pelo operador aeroportuário, podendo ser cobrado preço específico dos operadores aéreos.
(...)

O § 4º do art. 20 da Resolução prevê que é “vedado carregar manualmente o passageiro, exceto nas situações que exijam a evacuação de emergência da aeronave.”

Companhias áreas são solidariamente responsáveis
Como vimos acima, o § 1º do art. 20 afirma que a obrigação fornecer o equipamento para embarque ou desembarque do passageiro com deficiência é do operador aeroportuário (em regra, a ANAC).
Apesar disso, o STJ afirma que essa previsão não tem o condão de eximir a companhia aérea da obrigação de garantir o embarque seguro e com dignidade da pessoa com dificuldade de locomoção.
Afinal de contas, a companhia aérea integra a cadeia de fornecimento, de forma que possui responsabilidade solidária em caso de fato do serviço, nos termos do art. 14 do CDC.
O embarque ou desembarque indevido de pessoa com deficiência – que é carregado por não se dispor de mecanismo adequado para seu transporte – é caracterizado como fato do serviço (art. 14 do CDC). Isso porque se trata de defeito que ultrapassa a esfera meramente econômica do consumidor, atingindo-lhe a incolumidade física ou moral considerando o tratamento vexatório a que é submetido.
Logo, nos termos do art. 14 do CDC, o fornecedor de serviços (empresa de aviação) responde, objetivamente, pela reparação dos danos causados.

Não se trata de causa excludente de responsabilidade (fato de terceiro)
A companhia aérea não poderá se eximir alegando fato de terceiro (art. 14, § 3º, II, do CDC). Isso porque o fato de terceiro somente será considerado excludente da responsabilidade civil do fornecedor quando for:
a) inevitável;
b) imprevisível; e
c) não guardar qualquer relação com a atividade empreendida pelo fornecedor.

Na hipótese, o constrangimento sofrido pelo passageiro guarda direta e estreita relação com o contrato de transporte firmado como a companhia de aviação.
As empresas de aviação sabem que, todos os dias, pessoas com deficiência pegam voos e, portanto, problemas com a sua acessibilidade estão na margem de previsibilidade e de risco desta atividade.
Neste contexto, não há como a concessionária de transporte aéreo invocar excludente de causalidade (art. 14, § 3º, II, do CDC), ao argumento de recair sobre terceiro a responsabilidade de assegurar a acessibilidade do cadeirante na aeronave, no caso a INFRAERO.

Em suma:
Companhia aérea é civilmente responsável por não promover condições dignas de acessibilidade de pessoa cadeirante ao interior da aeronave.
A sociedade empresária atuante no ramo da aviação civil possui a obrigação de providenciar a acessibilidade do cadeirante no processo de embarque, quando indisponível ponte de conexão ao terminal aeroportuário (“finger”).
Se não houver meio adequado (com segurança e dignidade) para o acesso do cadeirante ao interior da aeronave, isso configura defeito na prestação do serviço, ensejando reparação por danos morais.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.611.915-RS, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 06/12/2018 (Info 642).

Curiosidade: no caso concreto, foi fixada a indenização em R$ 15 mil.




segunda-feira, 25 de março de 2019

Em caso de descumprimento do § 3º do art. 941 do CPC haverá nulidade do acórdão, mas não do julgamento




Ordem dos processos nos Tribunais
Os arts. 929 a 946 trazem regras prevendo como serão os julgamentos dos processos nos Tribunais.
Esses dispositivos disciplinam tanto os processos originários como os recursos a serem julgados pelos Tribunais.

Princípio da colegialidade das decisões dos Tribunais
Nos tribunais, os processos que lá tramitam devem ser julgados, em regra, por um grupo de magistrados, cada um dando o seu voto sobre o tema, de forma que a decisão será o entendimento firmado pela maioria (ou unanimidade) dos julgadores. Trata-se do princípio da colegialidade das decisões dos Tribunais.

Relator
Em todo processo que tramita em Tribunal, será sorteado um julgador que exercerá a função de “relator”.
O “relator” será o magistrado que irá ter contato inicial e mais direto com os autos. O processo irá ser distribuído para seu gabinete e lá ele preparará um relatório sobre o caso e o seu voto. O relator poderá também requerer diligências, decidir pedidos de urgência, entre outras atribuições previstas no Regimento Interno do Tribunal.

Atribuições do Relator
O art. 932 do CPC prevê as atribuições do Relator. Vale a pena conhecer:
Art. 932.  Incumbe ao relator:
I - dirigir e ordenar o processo no tribunal, inclusive em relação à produção de prova, bem como, quando for o caso, homologar autocomposição das partes;
II - apreciar o pedido de tutela provisória nos recursos e nos processos de competência originária do tribunal;
III - não conhecer de recurso inadmissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida;
IV - negar provimento a recurso que for contrário a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
V - depois de facultada a apresentação de contrarrazões, dar provimento ao recurso se a decisão recorrida for contrária a:
a) súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal;
b) acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;
c) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;
VI - decidir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, quando este for instaurado originariamente perante o tribunal;
VII - determinar a intimação do Ministério Público, quando for o caso;
VIII - exercer outras atribuições estabelecidas no regimento interno do tribunal.
Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.

Voto do Relator
Após estudar o processo, o Relator irá preparar o seu “voto”.
O voto é a análise jurídica feita pelo Desembargador (se for em TJ/TRF) ou Ministro (em caso de Tribunais Superiores) a respeito daquele processo.

Inclusão em pauta
Depois que o Relator concluir o seu voto, ele deverá devolver os autos à Secretaria do Tribunal e esse processo estará pronto para ser “pautado”, ou seja, já poderá ser marcada uma data para este processo ser julgado pelo colegiado.
Art. 931. Distribuídos, os autos serão imediatamente conclusos ao relator, que, em 30 (trinta) dias, depois de elaborar o voto, restituí-los-á, com relatório, à secretaria.

Obs: o prazo do art. 931 é impróprio, ou seja, o seu descumprimento não gera consequências processuais.

Presidente do colegiado faz a pauta
Quem faz a pauta, isto é, quem define o dia em que o processo será levado a julgamento é o presidente do colegiado:
Art. 934. Em seguida, os autos serão apresentados ao presidente, que designará dia para julgamento, ordenando, em todas as hipóteses previstas neste Livro, a publicação da pauta no órgão oficial.

Art. 935. Entre a data de publicação da pauta e a da sessão de julgamento decorrerá, pelo menos, o prazo de 5 (cinco) dias, incluindo-se em nova pauta os processos que não tenham sido julgados, salvo aqueles cujo julgamento tiver sido expressamente adiado para a primeira sessão seguinte.
§ 1º Às partes será permitida vista dos autos em cartório após a publicação da pauta de julgamento.
§ 2º Afixar-se-á a pauta na entrada da sala em que se realizar a sessão de julgamento.

Ordem de julgamento
Art. 936. Ressalvadas as preferências legais e regimentais, os recursos, a remessa necessária e os processos de competência originária serão julgados na seguinte ordem:
I - aqueles nos quais houver sustentação oral, observada a ordem dos requerimentos;
II - os requerimentos de preferência apresentados até o início da sessão de julgamento;
III - aqueles cujo julgamento tenha iniciado em sessão anterior; e
IV - os demais casos.

Análise do voto do relator na sessão de julgamento
A conclusão exposta no voto do Relator não irá, necessariamente, prevalecer. Isso porque os demais magistrados que compõe o colegiado poderão, durante a sessão de julgamento, discordar e apresentar votos em sentido diferente.
Assim, o Relator irá ler o seu voto e os demais membros do colegiado irão dizer se concordam ou não com as conclusões expostas.
O resultado do julgamento pode ser unânime (quando todos os membros do colegiado concordam entre si) ou por maioria (quando no mínimo um magistrado discorda dos demais).
O que irá prevalecer é a posição da maioria (ou unanimidade).

Resultado do julgamento
Proferidos os votos, o presidente do colegiado anunciará o resultado do julgamento:
Ex1: a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, por unanimidade, nos termos do voto do Desembargador Relator Raimundo Nonato, deu provimento à apelação.
Ex2: a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por maioria, nos termos do voto do Desembargador Federal Júlio Verne, negou provimento ao agravo de instrumento. Ficou vencida a Desembargadora Federal Maria Esther de Bueno, que dava provimento ao agravo de instrumento.
Ex3: a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, por maioria, vencido o Relator, não conheceu da apelação. Lavrará o acórdão o Desembargador Francisco Silva.

Desse modo, o presidente anuncia o resultado do julgamento e informa se:
• o voto do Relator foi acompanhado pela maioria ou unanimidade do colegiado (situação na qual ele redigirá o acórdão); ou
• se o Relator ficou vencido indicando, neste caso, qual será o magistrado que irá redigir o acórdão no lugar do Relator. Talvez você já tenha visto um acórdão com essa situação. Fica registrado assim: “Redator para acórdão Desembargador/Ministro Fulano de Tal”.

Redator para acórdão
Caso o Relator tenha sido vencido (seu voto não foi acompanhado pelos demais), o Redator para o acórdão será o Desembargador/Ministro que, depois de que o Relator apresentou seu voto, foi o primeiro a discordar, apresentando posição divergente.
Veja o que diz o CPC:
Art. 941.  Proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor.

Voto vencido deve constar no acórdão
Como vimos acima, o resultado do julgamento pode ser:
• por unanimidade (quando todos os membros do colegiado concordam entre si); ou
• por maioria (quando no mínimo um magistrado discorda dos demais).

Se for por maioria, o(s) voto(s) vencido(s) deve(m) constar obrigatoriamente no acórdão. É o que determina o § 3º do art. 941 do CPC:
Art. 941 (...)
§ 3º O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento.

Assim, segundo o CPC/2015, o acórdão é composto pela totalidade dos votos, ou seja, não apenas os votos vencedores, mas também os vencidos. (FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Da ordem do processo nos tribunais. In: WAMBIER, Teresa et al. Breves comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015. p. 2.101)

Fundamentação das decisões judiciais
O § 3º do art. 941 do CPC existe para que o Poder Judiciário cumpra o seu dever de fundamentar as decisões judiciais (art. 93, IX, da CF/88), observando o devido processo legal.
Este dispositivo tem uma importância endo e exraprocessual.
• Sob o ponto de vista endoprocessual, o § 3º do art. 941 garante às partes o conhecimento integral do debate prévio ao julgamento, permitindo o exercício pleno da ampla defesa;
• Sob o aspecto extraprocessual, esta norma confere à sociedade o poder de controlar a atividade jurisdicional, assegurando a independência e a imparcialidade do órgão julgador.

A publicação do(s) voto(s) vencido(s) permite que a comunidade jurídica possa conhecer outros fundamentos diversos daquele que prevaleceu. Assim, embora os argumentos do voto vencido não constituam a razão de decidir (ratio decidendi) do colegiado, eles têm o condão de instigar e ampliar a discussão acerca das questões julgadas pelas Cortes brasileiras e pode, inclusive, sinalizar uma forte tendência do tribunal à mudança de posicionamento.

Função atribuída ao voto vencido
Fredie Didier aponta as finalidades do voto vencido:
“a) Ao se incorporar ao acórdão, o voto vencido agrega a argumentação e as teses contrárias àquela que restou vencedora; isso ajuda no desenvolvimento judicial do Direito, ao estabelecer uma pauta a partir da qual se poderá identificar, no futuro, a viabilidade de superação do precedente (art. 489, § 1º, VI, e art. 927, §§ 2º, 3º, e 4º, CPC).
b) O voto vencido, por isso, funciona como uma importante diretriz na interpretação da ratio decidendi vencedora: ao se conhecer qual posição se considerou como vencida fica mais fácil compreender, pelo confronto e pelo contraste, qual tese acabou prevalecendo no tribunal. Por isso, o voto vencido ilumina a compreensão da ratio decidendi.
c) Além disso, o voto vencido demonstra a possibilidade de a tese vencedora ser revista mais rapidamente, antes mesmo de a ela ser agregada qualquer eficácia vinculante, o que pode fragilizar a base da confiança, pressuposto fático indispensável à incidência do princípio da proteção da confiança (...). O voto vencido mantém a questão em debate, estimulando a comunidade jurídica a discuti-la.
d) Note, ainda, que a inclusão do voto vencido no acórdão ratifica regra imprescindível ao microssistema de formação concentrada de precedentes obrigatórios: a necessidade de o acórdão do julgamento de casos repetitivos reproduzir a íntegra de todos os argumentos contrários e favoráveis à tese discutida.” (arts. 984, § 2º, e 1.038, § 3º, CPC). (Curso de Direito Processual Civil. V. 3. 15ª ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 47)

Há nulidade do acórdão e do julgamento caso o § 3º do art. 941 do CPC seja descumprido? Há nulidade se o voto vencido não tiver sido juntado ao acórdão?
• Haverá nulidade do acórdão.
• Não haverá nulidade do julgamento (salvo se o resultado proclamado não refletir a vontade da maioria).

A inobservância da regra do § 3º do art. 941 do CPC constitui vício de atividade ou erro de procedimento (error in procedendo). Isso porque se trata de um vício não relacionado com o teor do julgamento em si, mas sim com a condução do procedimento de lavratura e publicação do acórdão.
O acórdão representa apenas a materialização do julgamento.
Assim, haverá a nulidade do acórdão (por não conter a totalidade dos votos declarados). No entanto, o simples descumprimento do § 3º do art. 941 não gera a nulidade do julgamento, se o resultado proclamado refletir, com exatidão, a conjunção dos votos proferidos pelos membros do colegiado.

O que significa isso, na prática?
Significa que, se o STJ reconhecer que o TJ ou TRF descumpriu o § 3º do art. 941, ele deverá:
• anular o acórdão proferido e
• determinar que o TJ ou TRF promova a republicação do acórdão após a juntada do(s) voto(s) vencido(s).

Por outro lado, não será necessário um novo julgamento, salvo se ficar demonstrado que, além de descumprir o § 3º do art. 941, houve vício no próprio julgamento, ou seja, a tese vencedora não foi aquela que constou como majoritária.


Resumindo:
O § 3º do art. 941 do CPC/2015 prevê que:
§ 3º O voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento.

Há nulidade do acórdão e do julgamento caso o § 3º do art. 941 do CPC seja descumprido? Há nulidade se o voto vencido não tiver sido juntado ao acórdão?
• Haverá nulidade do acórdão.
• Não haverá nulidade do julgamento (salvo se o resultado proclamado não refletir a vontade da maioria).
Em suma: haverá nulidade do acórdão que não contenha a totalidade dos votos declarados; por outro lado, não haverá nulidade do julgamento, se o resultado proclamado refletir, com exatidão, a conjunção dos votos proferidos pelos membros do colegiado.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.729.143-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/02/2019 (Info 642).



sábado, 23 de março de 2019

Somente incidirá correção monetária para atualização do valor da pensão alimentícia combinada no acordo se isso estiver expressamente previsto no pacto



SITUAÇÃO 1
Imagine a seguinte situação hipotética:
Lucas ajuizou ação de alimentos contra seu pai (Pedro).
O juiz proferiu sentença condenando o genitor a pagar R$ 2 mil, mensalmente, ao autor.

Nesta sentença, o magistrado deverá fixar um índice de correção monetária para atualização periódica do valor da pensão alimentícia? Caso o juiz não tenha fixado, Lucas poderá recorrer pedindo que o Tribunal imponha esse índice?
SIM. O STJ assim já decidiu:
(...) 5. Por ser a correção monetária mera recomposição do valor real da pensão alimentícia, é de rigor que conste, expressamente, da decisão concessiva de alimentos – sejam provisórios ou definitivos -, o índice de atualização monetária, conforme determina o art. 1.710 do Código Civil. (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 1.258.824/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 30/5/2014.

Suponhamos que o juiz não fixou nem houve recurso, tendo havido o trânsito em julgado. O que acontece neste caso?
Mesmo que a decisão judicial tenha sido silente (omissa) quanto ao índice de correção monetária, ainda assim a prestação alimentícia deverá ser corrigida, mantendo-se atualizado o valor historicamente fixado.
Em outras palavras, mesmo que o juiz não fixe, deverá incidir correção monetária. Isso porque há uma determinação legal expressa nesse sentido no art. 1.710 do Código Civil:
Art. 1.710. As prestações alimentícias, de qualquer natureza, serão atualizadas segundo índice oficial regularmente estabelecido.

Pode-se mencionar também o art. 1º da Lei nº 6.899/81:
Art. 1º A correção monetária incide sobre qualquer débito resultante de decisão judicial, inclusive sobre custas e honorários advocatícios.

O que isso significa, na prática?
Que Lucas receberá R$ 2 mil no primeiro mês e, nos meses seguintes, terá direito de receber 2 mil + o índice de correção monetária verificado no período. Em outras palavras, esse valor original de R$ 2 mil vai sendo “atualizado” com o passar do tempo.

Mesmo que o pai pague pontualmente (na data do vencimento)?
SIM. Aqui, a correção monetária que estamos tratando não é das parcelas em atraso, mas sim a correção monetária da obrigação original fixada.
Assim, no segundo mês, ainda que João pague na data correta, ele já terá que pagar R$ 2 mil mais o índice de correção monetária.

SITUAÇÃO 2
Imagine agora uma situação diferente:
João e Maria eram casados e decidiram, consensualmente, se divorciar.
Em fevereiro/2017, eles celebram um acordo de divórcio no qual ficou estabelecido que João pagaria a Maria o valor mensal de R$ 2 mil, a partir de março/2017.

Neste acordo, as partes poderiam ter fixado um índice de correção monetária para atualização periódica do valor da pensão alimentícia?
SIM. A legislação prevê que é possível a fixação de correção monetária em caso de obrigações envolvendo prestações de trato sucessivo com prazo superior a 1 ano (arts. 1º e 2º da Lei nº 10.192/2001).

Suponhamos que o acordo não previu índice de correção monetária. O que acontece neste caso? Diante do silêncio do contrato, mesmo assim será devida a incidência de correção monetária?
NÃO.
Somente incidirá correção monetária para atualização do valor da pensão alimentícia combinada no acordo se isso estiver expressamente previsto no pacto.
O acordo que estabelece a obrigação alimentar entre ex-cônjuges possui natureza consensual e, portanto, a incidência de correção monetária para atualização da obrigação ao longo do tempo deve estar expressamente prevista no contrato.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.705.669-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 12/02/2019 (Info 642).

O regime jurídico envolvendo os contratos é notoriamente distinto daquele estabelecido para as obrigações judicialmente fixadas. Assim, há diferenças em caso de obrigação alimentar fixada por contrato ou por decisão judicial.
Além disso, o direito aos alimentos entre ex-cônjuges tem matriz ontológica distinta do dever de alimentos devidos aos descendentes, menores ou incapazes.
Diante dessas peculiaridades, caso o título seja omisso quanto à fixação da correção monetária, a solução será diferente para os casos de obrigações contratuais e judiciais:
• silente o contrato quanto à incidência de correção monetária para a apuração do quantum devido, o valor da obrigação se mantém pelo valor histórico;
• por outro lado, silente a decisão judicial quanto ao índice aplicável, deverá, mesmo assim, a prestação ser corrigida, atualizando-se o valor historicamente fixado.

Não confundir com a correção monetária das parcelas em atraso
Irei insistir novamente em um importante ponto. A correção monetária explicada acima diz respeito à atualização da obrigação original fixada no contrato e paga na data do vencimento.
Não se estava tratando sobre correção monetária de parcelas pagas em atraso.
Mesmo que o contrato não preveja, haverá incidência de correção monetária caso o alimentante pague a pensão alimentícia após a data do vencimento.
Assim, ainda que o contrato entre João e Maria não preveja correção monetária, se ele atrasar 15 dias, por exemplo, terá que pagar R$ 2 mil + o índice de correção monetária referente a esses 15 dias.
Isso porque a atualização monetária do valor atrasado (mora) decorre de imposição legal.
O Código Civil prevê que o devedor responda por todos os danos decorrentes do não adimplemento oportuno da obrigação, inclusive pela correção monetária. Veja:
Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Todavia, esse raciocínio do art. 395 do CC não pode ser meramente transportado para impor a atualização monetária do valor original das obrigações ajustadas.
Assim, a correção monetária da prestação inadimplida a tempo e modo (prestação em atraso) não se confunde com a atualização monetária do valor histórico da prestação de trato sucessivo. São situações diferentes.





quinta-feira, 21 de março de 2019

A Lei 13.491/2017 deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso, respeitando-se os benefícios previstos na legislação penal mais benéfica ao tempo do crime



Competência da Justiça Militar
Compete à Justiça Militar processar e julgar os crimes militares.
A lei deve definir quais são os crimes militares.
Assim, compete à Justiça Militar julgar os crimes militares assim definidos em lei (art. 124 da CF/88).
A lei que prevê os crimes militares é o Código Penal Militar (Decreto-Lei 1.001/1969).
• No art. 9º do CPM são conceituados os crimes militares em tempo de paz.
• No art. 10 do CPM são definidos os crimes militares em tempo de guerra.

Desse modo, para verificar se o fato pode ser considerado crime militar, sendo, portanto, de competência da Justiça Militar, é preciso que ele se amolde em uma das hipóteses previstas nos arts. 9º e 10 do CPM.

Lei nº 13.491/2017
A Lei nº 13.491/2017 alterou o art. 9º do CPM ampliando o conceito de crime militar.
Veja abaixo um resumo das principais mudanças feitas pela Lei nº 13.491/2017 lembrando que estão disponíveis no site do DOD comentários completos a respeito desta novidade legislativa.

Alteração 1
A primeira mudança ocorrida foi no inciso II do art. 9º. Veja:
Código Penal Militar
Redação original
Redação dada pela Lei nº 13.491/2017
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
II - os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:

O que significa essa mudança?
• Antes da Lei: para se enquadrar como crime militar com base no inciso II do art. 9º, a conduta praticada pelo agente deveria ser obrigatoriamente prevista como crime no Código Penal Militar.
• Agora: a conduta praticada pelo agente, para ser crime militar com base no inciso II do art. 9º, pode estar prevista no Código Penal Militar ou na legislação penal “comum”.

Alteração 2
Se um militar, no exercício de sua função, pratica tentativa de homicídio (ou qualquer outro crime doloso contra a vida) contra vítima civil, qual será o juízo competente?
Antes da Lei:
• REGRA: os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil eram julgados pela Justiça comum (Tribunal do Júri). Isso com base na antiga redação do parágrafo único do art. 9º do CPM.
• EXCEÇÃO: se o militar, no exercício de sua função, praticasse tentativa de homicídio ou homicídio contra vítima civil ao abater aeronave hostil (“Lei do Abate”), a competência seria da Justiça Militar. Tratava-se da única exceção.

Depois da Lei:
• REGRA: em regra, os crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil continuam sendo julgados pela Justiça comum (Tribunal do Júri). Isso com base no novo § 1º do art. 9º do CPM:
Art. 9º (...)
§ 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.

Ocorre que a Lei nº 13.491/2017 trouxe um amplo rol de exceções.

• EXCEÇÕES:
Os crimes dolosos contra a vida praticados por militar das Forças Armadas contra civil serão de competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: 
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; 
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou 
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem (GLO) ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da CF/88 e na forma dos seguintes diplomas legais: 
a) Código Brasileiro de Aeronáutica;
b) LC 97/99;
c) Código de Processo Penal Militar; e
d) Código Eleitoral.

Isso está previsto no novo § 2º do art. 9º do CPM.
Obs: as exceções são tão grandes que, na prática, tirando os casos em que o militar não estava no exercício de suas funções, quase todas as demais irão ser julgadas pela Justiça Militar por se enquadrarem em alguma das exceções.

Vigência
A Lei nº 13.491/2017 entrou em vigor na data de sua publicação (16/10/2017).

Feita esta breve revisão sobre o tema, imagine a seguinte situação hipotética na qual se discutiu a aplicação temporal da Lei nº 13.491/2017:
Em agosto/2017, ou seja, antes da Lei nº 13.491/2017, João, militar, no exercício de suas funções, praticou os crimes descritos no art. 3º, “b” e no art. 4º, “b”, da Lei nº 4.898/65 (Lei de abuso de autoridade):
Art. 3º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
(...)
b) à inviolabilidade do domicílio;

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
(...)
b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;

De quem é a competência para julgar o crime de abuso de autoridade praticado por militar no exercício de suas funções?
ABUSO DE AUTORIDADE PRATICADO POR MILITAR EM SERVIÇO
Antes da Lei 13.491/2017:
JUSTIÇA COMUM
Depois da Lei 13.491/2017:
JUSTIÇA MILITAR
Antes da Lei nº 13.491/2017 a competência para julgar este delito era da Justiça comum. Isso porque o art. 9º, II, do CPM afirmava que somente poderia ser considerado como crime militar as condutas que estivessem tipificadas no CPM.
Assim, como o abuso de autoridade não está previsto no CPM), mas sim na Lei nº 4.898/65, este delito não podia ser considerado crime militar.
A Lei nº 13.491/2017 deu nova redação ao CPM e passou a prever que a conduta praticada pelo agente, para ser crime militar com base no inciso II do art. 9º, pode estar prevista no Código Penal Militar ou na legislação penal “comum”.
Dessa forma, o abuso de autoridade, mesmo não estando previsto no CPM pode agora ser considerado crime militar.
Como o abuso de autoridade não podia ser considerado crime militar, a competência para julgá-lo era da Justiça comum.
Como o abuso de autoridade pode agora ser considerado crime militar, ele pode ser julgado pela Justiça Militar com base no art. 9º, II, do CPM.
Súmula 172-STJ: Compete à justiça comum processar e julgar militar por crime de abuso de autoridade, ainda que praticado em serviço.
A Súmula 172 do STJ está SUPERADA e deve ser cancelada futuramente.

Voltando ao nosso exemplo:
Como ainda não existia a Lei nº 13.491/2017, foi instaurado um processo na Justiça comum para apurar a conduta de João.
Ocorre que, logo em seguida, entrou em vigor a nova Lei.
Diante disso, o membro do Ministério Público pediu suscitou a incompetência da Justiça comum para processar a ação penal, em decorrência da mudança operada pela Lei nº 13.491/2017.
Assim, o MP pediu a remessa dos autos à Justiça Militar argumentando que a Lei nº 13.491/2017 trata sobre processo penal e as normas processuais possuem aplicação imediata, nos termos do art. 2º do CPP:
Art. 2º A lei processual penal aplicar se á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

A defesa, por sua vez, manifestou-se contrariamente ao pedido afirmando que essa providência agravaria a situação do réu porque nem todos os benefícios previstos na legislação comum poderão ser aplicados se o processo for para a Justiça Militar.
A defesa citou três exemplos:
1) No caso de crimes militares, haverá cúmulo material das penas, mesmo que os crimes tenham sido praticados em continuidade delitiva (art. 80 do Código Penal Militar).

2) Na Justiça comum são possíveis as medidas despenalizadoras previstas na Lei nº 9.099/95, dentre elas a suspensão condicional do processo. Já na Justiça Militar, tais medidas não seriam permitidas, conforme prevê o art. 90-A da Lei nº 9.099/95:
Art. 90-A. As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar.

3) Na Justiça comum é permitida a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, nos moldes do art. 44 do CP. Essa mesma possibilidade não existe no processo penal militar.
Desse modo, a defesa argumentou que seria pior para o réu.

O que o STJ decidiu?
A Lei nº 13.491/2017 deve ser aplicada imediatamente aos processos em curso, ou seja, é possível a remessa imediata do processo para a Justiça Militar mesmo que o fato tenha ocorrido antes da vigência da nova lei.
No entanto, a Justiça Militar, ao receber esse processo, deverá aplicar a legislação penal mais benéfica que vigorava ao tempo do crime, seja ela militar ou comum.
Em outras palavras, no caso de João, o processo deverá ser remetido para a Justiça Militar, mas chegando lá, poderão ser aplicados os institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 e, em caso de condenação, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, conforme autoriza o art. 44 do Código Penal comum.

Tempus regit actum
O art. 2º do CPP consagra a regra do tempus regit actum. Isso significa que a lei processual penal possui aplicação imediata, de forma que os atos processuais são regidos pela lei vigente no momento da sua prática, não importando a data em que o crime foi praticado.
Ex: João praticou um delito em 2016, sendo instaurado um processo penal para apurá-lo; em 2017, entra em vigor uma nova lei (lei “X”) tratando sobre cartas precatórias; esta nova lei, que tem caráter processual, deve ser aplicada imediatamente; logo, se, em 2018, no processo penal desse réu, for necessária a expedição de uma carta precatória, deverá ser observada a lei “X”, não importante que o crime tenha sido praticado antes de sua vigência. Vale ressaltar, por outro lado, que, se foi expedida uma carta precatória em 2016, este ato foi perfeito, não mudando nada o fato de ter entrado em vigor uma nova lei em 2017.
O ato processual é regido pela lei vigente ao tempo de sua prática (tempus regit actum).

Normas mistas (ou híbridas)
A regra do tempus regit actum vale apenas para as normas exclusivamente processuais.
Existem, no entanto, algumas normas que, ao mesmo tempo, possuem um caráter de direito processual, mas também com fortes reflexos no direito material. São chamadas de normas mistas.
Exemplo de norma mista: a Lei nº 9.271/96 alterou o art. 366 do CPP, que trata sobre a citação por edital. Esta Lei previu que, se o acusado for citado por edital e não comparecer ao processo nem constituir advogado o processo deverá ficar suspenso. Se fosse até aqui, a lei seria meramente processual. Ocorre que ela também determinou que deveria ficar suspenso o curso do prazo prescricional. Ao fazer isso, a norma tratou sobre a perda do direito de punir (prescrição). Logo, disciplinou também direito material. Desse modo, esta lei é mista.

Lei nº 13.491/2017
A Lei nº 13.491/2017 não tratou apenas de ampliar a competência da Justiça Militar, também ampliou o conceito de crime militar, circunstância que, isoladamente, autoriza a conclusão no sentido da existência de um caráter de direito material na norma.
Esse aspecto, embora evidente, não afasta a sua aplicabilidade imediata aos fatos perpetrados antes de seu advento, já que a simples modificação da classificação de um crime como comum para um delito de natureza militar não traduz, por si só, uma situação mais gravosa ao réu, de modo a atrair a incidência do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa (arts. 5º, XL, da Constituição Federal e 2º, I, do Código Penal).
Por outro lado, a modificação da competência, em alguns casos, pode ensejar consequências que repercutem diretamente no jus libertatis, inclusive de forma mais gravosa ao réu. É o caso do exemplo dado envolvendo João.
Logo, é inegável que a Lei nº 13.491/2017 possuiu conteúdo híbrido (lei processual material) e que, em alguns casos, a sua aplicação retroativa pode ensejar efeitos mais gravosos ao réu.

Mesmo assim, a Lei nº 13.491/2017 pode ser aplicada imediatamente
O fato de a Lei nº 13.491/2017 ser híbrida não pode impedir a sua aplicação imediata. É preciso, no entanto, que se concilie a sua aplicação imediata com o princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.
Para isso, deve haver a incidência imediata da Lei nº 13.491/2017 aos fatos praticados antes do seu advento, em observância ao princípio tempus regit actum, mas, por outro lado, deve ser observada a legislação penal (seja ela militar ou comum) mais benéfica ao tempo do crime.
Ao se fazer a declinação da competência, essa ressalva deve ser feita expressamente.

Em suma:

É possível a aplicação imediata da Lei nº 13.491/2017, que amplia a competência da Justiça Militar e possui conteúdo híbrido (lei processual material), aos fatos perpetrados antes do seu advento, mediante observância da legislação penal (seja ela militar ou comum) mais benéfica ao tempo do crime.
STJ. 3ª Seção. CC 161.898-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/02/2019 (Info 642).