terça-feira, 30 de junho de 2020

Se um precatório de natureza alimentar é cedido, ele permanece sendo crédito de natureza alimentar?



Regime de precatórios
Se a Fazenda Pública Federal, Estadual, Distrital ou Municipal for condenada, por sentença judicial transitada em julgado, a pagar determinada quantia a alguém, este pagamento será feito sob um regime especial chamado de “precatório” (art. 100 da CF/88).

Caput do art. 100: “fila de precatórios”
O regime de precatórios é tratado pelo art. 100 da CF, assim como pelo art. 78 do ADCT.
No caput do art. 100 da CF/88 consta a regra geral dos precatórios, ou seja, os pagamentos devidos pela Fazenda Pública em decorrência de condenação judicial devem ser realizados na ordem cronológica de apresentação dos precatórios. Existe, então, uma espécie de “fila” para pagamento dos precatórios:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. (Redação dada pela EC 62/09)

§ 1º do art. 100: “fila preferencial de precatórios”
No § 1º do art. 100 há a previsão de que os débitos de natureza alimentícia gozam de preferência no recebimento dos precatórios. É como se existisse uma espécie de “fila preferencial”:
Art. 100 (...)
§ 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo. (Redação dada pela EC 62/09).

§ 2º do art. 100: “fila com superpreferência”
O § 2º do art. 100 prevê que os débitos de natureza alimentícia que tenham como beneficiários:
a) pessoas com 60 anos de idade
b) pessoas portadoras de doenças graves
c) pessoas com deficiência

... terão uma preferência ainda maior.
É como se fosse uma “fila com superpreferência”.

Recapitulando:
Os débitos da Fazenda Pública devem ser pagos por meio do sistema de precatórios.
• Quem é pago em 1º lugar: créditos alimentares de idosos, portadores de doenças graves e pessoas com deficiência (§ 2º).
• Quem é pago em 2º lugar: demais créditos alimentares, ou seja, de pessoas que não sejam idosas, portadoras de doenças graves ou pessoas com deficiência (§ 1º).
• Quem é pago em 3º lugar: créditos não alimentares (caput).

Só tem direito à fila com superpreferência os precatórios até certo limite de valor
A superprioridade para créditos alimentares de idosos e portadores de doenças graves possui um limite de valor previsto no § 2º do art. 100. Veja:
Art. 100 (...)
§ 2º Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 94/2016)

O § 3º do art. 100 trata sobre o “pequeno valor” (valor da RPV: requisição de pequeno valor). Assim, só pode receber na fila de superprioridade do § 2º o precatório que não seja superior a 3x o valor da RPV.

Quanto é “pequeno valor” para os fins do § 3º do art. 100? Qual é o valor da RPV?
Este quantum poderá ser estabelecido por cada ente federado (União, Estado, DF, Município) por meio de leis específicas, conforme prevê o § 4º do art. 100.

União
Para as condenações envolvendo a União, pequeno valor equivale a 60 salários mínimos (art. 17, § 1º, da Lei nº 10.259/2001). Esse é o teto da RPV no âmbito federal.

E se o ente federado não editar a lei prevendo o quatum do “pequeno valor”?
Nesse caso, segundo o art. 87 do ADCT da CF/88, para os entes que não editarem suas leis, serão adotados, como “pequeno valor” os seguintes montantes:
I — 40 salários mínimos para Estados e para o Distrito Federal;
II — 30 salários mínimos para Municípios.

Assim, se o valor a ser recebido pelo idoso ou doente grave for superior a 3x o que é considerado “pequeno valor” para fins de precatório (§ 4º), parte dele será paga com superpreferência e o restante será quitado na ordem cronológica de apresentação do precatório.

Exemplo: João possui 70 anos e tem um precatório para receber da União. Pelo fato de ser maior de 60 anos, João tem direito de receber o precatório antes dos demais. Ele tem direito a uma fila superpreferencial prevista no § 2º do art. 100 da CF/88. Ocorre que o precatório de João é alto (seu valor é equivalente a 200 salários-mínimos). Nestes casos, o § 2º prevê que a pessoa deverá receber parte na “fila superpreferencial” (até 3x o pequeno valor do § 3º) e o restante na fila alimentar apenas preferencial (fila alimentar geral - 2º lugar).

Assim, em nosso exemplo, João irá receber 180 salários-mínimos na fila superpreferencial (3 x 60) e os 20 salários-mínimos restantes serão recebidos por meio da fila comum (fila alimentar geral - 2º lugar).

Imagine agora a seguinte situação hipotética:
Pedro ingressou com uma ação contra o Estado-membro cobrando verbas de natureza salarial.
A sentença foi procedente, condenando o Estado a pagar R$ 120 mil, tendo havido trânsito em julgado.
Como o crédito de Pedro é de natureza salarial, ele é considerado crédito alimentar.
Pedro precisa urgentemente do dinheiro e não pode esperar mais nada. Diante disso, ele cedeu (“vendeu”) o precatório para uma empresa, tendo recebido, à vista, R$ 80 mil.

É possível a cessão do precatório?
SIM. Essa possibilidade encontra-se expressamente prevista na parte final do art. 78 do ADCT, que afirma ser “permitida a cessão dos créditos” do precatório.

A empresa cessionária (que recebeu o crédito) irá cobrar agora do Estado-membro o pagamento do precatório, ou seja, quando o Estado for pagar o precatório, pagará para a empresa (e não mais para Pedro). Indaga-se: qual será a ordem de pagamento? Esse precatório de R$ 120 mil continuará sendo considerado crédito alimentar (§ 1º do art. 100 da CF/88) ou se tornará precatório de crédito comum (pago em 3º lugar na “fila”)?
Continuará sendo crédito alimentar preferencial (§ 1º do art. 100).
Mesmo tendo havido mudança na titularidade do crédito, ocorrida por meio de negócio jurídico (cessão de crédito), não haverá transmudação (mudança) da natureza do precatório alimentar já expedido e pendente de pagamento. Em outras palavras, o precatório, pelo simples fato de ter sido cedido, não perde sua preferência na ordem de pagamentos.
Não existe nenhum dispositivo da Constituição que expressa ou implicitamente conduza à ideia de que, se houver a cessão, ocorrerá a mudança na natureza do crédito.
Nas palavras do Min. Marco Aurélio:
“Independentemente das qualidades normativas do cessionário e da forma como este veio a assumir a condição de titular, o crédito representado no precatório, objeto da cessão, permanece com a natureza possuída, ou seja, revelada quando da cessão.”

Se o STF afirmasse que a cessão do crédito gera a mudança da natureza do precatório, isso iria prejudicar justamente aquelas pessoas a quem a Constituição Federal quis proteger, ou seja, os credores alimentícios. Isso porque, consideradas as condições do mercado, se o crédito perdesse a qualidade alimentar quando fosse cedido, as empresas que “compram” esses precatórios iriam perder o interesse e pagariam ainda menos pelos precatórios cedidos, fazendo com que os cedentes sofressem um grande deságio.

Ao apreciar o tema sob a sistemática da repercussão geral, o STF fixou a seguinte tese:
A cessão de crédito não implica alteração da natureza.
STF. Plenário. RE 631537, Rel. Marco Aurélio, julgado em 22/05/2020 (Repercussão Geral – Tema 361).

Vale ressaltar que esse já era o entendimento constante na Resolução nº 303, de 19/12/2019, do Conselho Nacional de Justiça:
Art. 42. O beneficiário poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos a terceiros, independentemente da concordância da entidade devedora, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e 3º do art. 100 da Constituição Federal, cabendo ao presidente do tribunal providenciar o registro junto ao precatório.
§ 1º A cessão não altera a natureza do precatório, podendo o cessionário gozar da preferência de que trata o § 1º do art. 100 da Constituição Federal, quando a origem do débito assim permitir, mantida a posição na ordem cronológica originária, em qualquer caso.
(...)

Atenção
Vale ressaltar que o julgado acima trata sobre o crédito alimentar preferencial previsto no § 1º do art. 100 da CF/88.
No caso do crédito alimentar superpreferencial (§ 2º), existe previsão expressa na Constituição dizendo que o cessionário não terá direito à superpreferência de que gozava o credor originário. Veja:
Art. 100 (...)
§ 13. O credor poderá ceder, total ou parcialmente, seus créditos em precatórios a terceiros, independentemente da concordância do devedor, não se aplicando ao cessionário o disposto nos §§ 2º e 3º.




segunda-feira, 29 de junho de 2020

INFORMATIVO Comentado 978 STF


Olá amigos do Dizer o Direito,

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ÍNDICE DO INFORMATIVO 978 DO STF

Direito Constitucional
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Lei estadual que modifique os limites geográficos de Município pode ser objeto de ADI.

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS
É inconstitucional lei de iniciativa parlamentar que trate sobre as atribuições dos órgãos da Administração Pública.

CNMP
É constitucional a Resolução 27/2008, do CNMP, que proíbe que os servidores do Ministério Público exerçam advocacia.

DIREITO ADMINISTRATIVO
RESPONSABILIZAÇÃO DE AGENTES PÚBLICOS
Análise da constitucionalidade da MP 966/2020, que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por atos relacionados com a pandemia da covid-19.

CONSELHOS PROFISSIONAIS
É inconstitucional a suspensão do exercício profissional em razão do inadimplemento de anuidades devidas à entidade de classe.

DIREITO PROCESSUAL PENAL
COLABORAÇÃO PREMIADA
Terceiros que tenham sido mencionados pelos colaboradores podem obter acesso integral aos termos dos colaboradores desde que estejam presentes os requisitos positivo e negativo.

DIREITO TRIBUTÁRIO
PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE
A alteração no programa fiscal REINTEGRA, por acarretar indiretamente a majoração de tributos, deve respeitar o princípio da anterioridade.

ICMS
No julgamento da ADO 25 foi reconhecida a omissão do Congresso Nacional em editar a LC de que trata o art. 91 do ADCT; depois do acórdão, União e Estados/DF firmaram acordo e determinaram seu encaminhamento ao Congresso para as providências cabíveis.
O sujeito ativo do ICMS-importação é o Estado-membro no qual está domiciliado ou estabelecido o destinatário legal da operação que deu causa à circulação da mercadoria.
Não cabe ICMS sobre a demanda de potência elétrica porque somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica.












INFORMATIVO Comentado 978 STF - Versão Resumida


Olá amigos do Dizer o Direito,

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Bons estudos.





sexta-feira, 26 de junho de 2020

Se o indivíduo com foro por prerrogativa de função assume novo cargo, ele permanece sendo julgado pelo Tribunal ou o processo deverá ser remetido à primeira instância?



Se a pessoa com foro por prerrogativa de função pratica o crime durante o exercício do cargo e, antes de ser julgada por esse fato, deixa esse cargo, quem será competente para julgá-la? Persiste a competência especial por prerrogativa de função ou, com o fim do exercício do cargo, deverá ser julgada em primeira instância?

É importante fazer um histórico, dividindo a evolução do tema em quatro momentos:

1º MOMENTO (ATÉ AGO/1999):
SÚMULA 394 DO STF
O STF entendia que, cometido o crime durante o exercício funcional, mesmo que cessasse o exercício da função, subsistiria o foro privativo.
Ex: Senador praticou o crime enquanto estava no cargo. Seu foro privativo é o STF. Antes de ser julgado, acabou seu mandato. Mesmo deixando de ser Senador, continuava sendo julgado pelo STF.
O STF editou uma súmula afirmando isso:
Súmula 394-STF (de 03/04/1964): Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício.

2º MOMENTO (AGO/1999 - DEZ/2002):
FIM DA SÚMULA 394 DO STF
O STF, em 25/08/1999, ao julgar o Inq 687 QO, mudou seu entendimento e decidiu que a CF/88 somente garante foro por prerrogativa de função às pessoas que, no momento do julgamento, estejam no exercício do cargo.
Ex: Senador praticou o crime enquanto estava no cargo. Seu foro privativo é o STF. Antes de ser julgado, acabou seu mandato. Como deixou de ser Senador, não poderá mais ser julgado pelo STF, devendo seu processo ser apreciado em 1ª instância, como qualquer outra pessoa.
Com isso, a Súmula 394 foi cancelada.
(...) A tese consubstanciada nessa Súmula não se refletiu na Constituição de 1988, ao menos às expressas, pois, no art. 102, I, “b”, estabeleceu competência originária do Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar “os membros do Congresso Nacional”, nos crimes comuns. (...) Em outras palavras, a Constituição não é explícita em atribuir tal prerrogativa de foro às autoridades e mandatários, que, por qualquer razão, deixaram o exercício do cargo ou do mandato.
STF. Plenário. Inq 687 QO, Rel. Min. Sydney Sanches, julgado em 25/08/1999.

3º MOMENTO (DEZ/2002 - SET/2005):
TENTATIVA DE RETOMAR NO § 1º DO ART. 84 DO CPP O QUE DIZIA A SÚMULA 394
Em 24/12/2002, foi editada a Lei nº 10.628, que tinha como objetivo “ressuscitar” o entendimento exposto na Súmula 394 do STF.
Essa Lei nº 10.628/2002 alterou a redação do art. 84 do CPP, acrescentando os §§ 1º e 2º com a seguinte redação:
Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
§ 1º A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.

4º MOMENTO (SET/2005 - MAI/2018):
STF DECLARA QUE O § 1º DO ART. 84 DO CPP É INCONSTITUCIONAL
Foi proposta a ADI 2797 contra a Lei nº 10.628/2002 e o STF julgou inconstitucionais os §§ 1º e 2º do art. 84 do CPP, decisão proferida em 15/09/2005.
O Supremo entendeu que a lei ordinária não pode pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição.
Ademais, essa interpretação dada pela Lei nº 10.628/2002 contraria o que o STF já havia decidido ao cancelar a Súmula 394. Se fosse admitido que a lei ordinária pudesse inverter a leitura da CF feita pelo STF seria o mesmo que dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador (ADI 2797, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 15/09/2005)

Em outras palavras, quem faz a interpretação da CF/88 é o STF e este já havia decidido que o Texto Constitucional não admite foro por prerrogativa de função após cessar o cargo.
Não pode o legislador ordinário contrariar essa interpretação dada pelo STF e também não pode a lei ordinária prever outras hipóteses de foro por prerrogativa de função que não tenham sido trazidas pela CF.
Ficou decidido o seguinte:
• Crime cometido antes do exercício funcional: tão logo o agente assuma o cargo ou o Parlamentar seja diplomado, o inquérito ou processo deverá ser remetido ao Tribunal competente. Caso deixe o cargo sem que o processo tenha sido julgado, este será remetido para a primeira instância.
• Crime cometido durante o exercício funcional: o agente terá direito ao foro por prerrogativa de função durante o período em que estiver no exercício do cargo. Caso deixe o cargo sem que o processo tenha sido julgado, este será remetido para a primeira instância.

5º MOMENTO (MAI/2018 - ATUALMENTE):
STF RESTRINGE O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO
Em 2018, o STF decidiu restringir o foro por prerrogativa de função:
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018 (Info 900).

Além disso, decidiu que:
Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
STF. Plenário. AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018.

CRIMES COMETIDOS POR DEPUTADO FEDERAL OU SENADOR
Situação
Competência
Crime cometido antes da diplomação como Deputado Federal ou Senador.
Ex: crime cometido na época em que Prefeito, cargo que ocupou antes de ser eleito Deputado Federal.
Juízo de 1ª instância
Crime cometido depois da diplomação (durante o exercício do cargo), mas o delito não tem relação com as funções desempenhadas.
Ex: embriaguez ao volante.
Crime cometido depois da diplomação (durante o exercício do cargo) e o delito está relacionado com as funções desempenhadas.
Ex: corrupção passiva.
STF

Se os fatos criminosos que teriam sido supostamente cometidos pelo Parlamentar federal não se relacionam ao exercício do mandato, a competência para julgá-los não é do STF
Se os fatos criminosos que teriam sido supostamente cometidos pelo Deputado Federal não se relacionam ao exercício do mandato, a competência para julgá-los não é do STF, mas sim do juízo de 1ª instância. Isso porque o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas (STF AP 937 QO/RJ, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 03/05/2018).
STF. 1ª Turma. Inq 4619 AgR-segundo/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 19/2/2019 (Info 931).

O crime de corrupção passiva praticado por Senador da República, se não estiver relacionado com as suas funções, deve ser julgado em 1ª instância (e não pelo STF). Não há foro por prerrogativa de função neste caso.
STF. 1ª Turma. Inq 4624 AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 8/10/2019 (Info 955).

O entendimento que restringe o foro por prerrogativa de função vale para outras hipóteses de foro privilegiado ou apenas para os Deputados Federais e Senadores?
Vale para outros casos de foro por prerrogativa de função. Foi o que decidiu o próprio STF no julgamento do Inq 4703 QO/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 12/06/2018.
O STJ também decidiu que a restrição do foro deve alcançar Governadores e Conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais:
O foro por prerrogativa de função no caso de Governadores e Conselheiros de Tribunais de Contas dos Estados deve ficar restrito aos fatos ocorridos durante o exercício do cargo e em razão deste.
Assim, o STJ é competente para julgar os crimes praticados pelos Governadores e pelos Conselheiros de Tribunais de Contas somente se estes delitos tiverem sido praticados durante o exercício do cargo e em razão deste.
STJ. Corte Especial. APn 857/DF, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 20/06/2018.

Exceção: Desembargadores
A decisão que restringe o foro por prerrogativa de função não se aplica para desembargadores
Mesmo que o crime cometido pelo Desembargador não esteja relacionado com as suas funções, ele será julgado pelo STJ se a remessa para a 1ª instância significar que o réu seria julgado por um juiz de primeiro grau vinculado ao mesmo tribunal que o Desembargador.
É uma espécie de “exceção” ao entendimento do STJ que restringe o foro por prerrogativa de função.
O STJ entendeu que haveria um risco à imparcialidade caso o juiz de 1º instância julgasse um Desembargador (autoridade que, sob o aspecto administrativo, está em uma posição hierarquicamente superior ao juiz).
A manutenção do julgamento no STJ tem por objetivo preservar a isenção (imparcialidade e independência) do órgão julgador.
STJ. Corte Especial. QO na APn 878-DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21/11/2018 (Info 639).

Foro por prerrogativa de função e candidato não reeleito
Pedro, Prefeito, cometeu o crime de corrupção passiva em licitação do Município.
Pedro foi denunciado e passou a responder a ação penal no Tribunal de Justiça.
Os Prefeitos possuem foro por prerrogativa de função no TJ (art. 29, X, da CF/88).
Pedro disputou a campanha eleitoral buscando a reeleição. Contudo, ele perdeu. Com isso, Pedro ficou sem mandato eletivo.
O processo de Pedro será remetido ao juízo de 1ª instância, onde ele será julgado.

Foro por prerrogativa de função e candidato reeleito
João, Prefeito, em seu primeiro mandato, cometeu o crime de corrupção passiva.
João foi denunciado e passou a responder a ação penal no Tribunal de Justiça.
Vale lembrar, no entanto, que o TJ somente julga os crimes cometidos por Prefeitos durante o exercício do cargo e relacionados com a função desempenhada. Essa foi a interpretação restritiva que o STF deu para o foro por prerrogativa de função.
João disputou a campanha eleitoral de 2016 e foi reeleito para o cargo de Prefeito.
Assim, em 01/01/2017, João assumiu seu segundo mandato consecutivo e ininterrupto de Prefeito.
Diante disso, indaga-se: o TJ continuará competente para julgar o delito?
SIM. O STF entende que se o crime praticado pela autoridade foi cometido no mandato anterior, este réu continuará tendo direito ao foro por prerrogativa de função caso ele tenha sido reeleito, de forma sucessiva e ininterrupta, para o mesmo cargo. Nesse sentido:
STF. Plenário. Inq 4435 AgR-quarto/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 13 e 14/3/2019 (Info 933).
STF. 2ª Turma. RE 1223370 AgR, Rel. Gilmar Mendes, julgado em 08/06/2020.

Foro por prerrogativa de função e candidato eleito novamente para o mesmo cargo após passar 4 anos “fora”
Prefeito cometeu o crime durante o exercício do mandato e o delito está relacionado com as suas funções: a competência para julgá-lo será, em regra, do Tribunal de Justiça.
Se esse Prefeito, antes de o processo terminar, for reeleito para um segundo mandato (consecutivo e ininterrupto), neste caso, o Tribunal de Justiça continuará sendo competente para julgá-lo.
Por outro lado, se o agente deixar o cargo de Prefeito e, quatro anos mais tarde, for eleito novamente Prefeito do mesmo Município, nesta situação a competência para julgar o crime será do juízo de 1ª instância. A prorrogação do foro por prerrogativa de função só ocorre se houve reeleição, não se aplicando em caso de eleição para um novo mandato após o agente ter ficado sem ocupar função pública.
Ex: em 2011, Pedro, Prefeito, em seu primeiro mandato, cometeu o crime de corrupção passiva. Pedro foi denunciado e passou a responder um processo penal no TJ. Em 2012, Pedro disputou a campanha eleitoral buscando a reeleição. Contudo, ele perdeu. Com isso, Pedro ficou sem mandato eletivo. Vale esclarecer que o processo continuou tramitando normalmente no TJ. Em 2016, Pedro concorreu novamente ao cargo de Prefeito do mesmo Município, tendo sido eleito. Em 01/01/2017, João assumiu como Prefeito por força dessa nova eleição. O processo de Pedro não será julgado pelo TJ, mas sim pelo juízo de 1ª instância.
STF. 1ª Turma. RE 1185838/SP, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 14/5/2019 (Info 940).

Foro por prerrogativa de função e candidato eleito para outro cargo
Ricardo, Deputado Estadual cometeu o crime de corrupção passiva.
Ele foi denunciado e passou a responder a ação penal no Tribunal de Justiça.
Ricardo disputou o cargo de Senador, tendo sido eleito e diplomado.

O que acontece agora: o processo penal envolvendo Ricardo continuará no Tribunal de Justiça, será remetido ao STF ou enviado para a 1ª instância?
Pelo entendimento atual do STF, penso que o processo deve ser remetido para julgamento em 1ª instância. Isso porque o STF não julga Deputados Federais e Senadores por fatos anteriores ao mandato de parlamentar federal, salvo se a instrução for concluída naquela Corte:
(...) Fatos imputados praticados, em tese, antes do imputado ocupar cargo de parlamentar federal devem ser julgados na instância judicial ordinária. 4. Embargos de Declaração não conhecidos. 5. Remessa imediata dos autos ao juízo da Quarta Vara Criminal da Comarca de São Luís/MA.
STF. 1ª Turma. Inq 3621 ED-segundos, Rel. Rosa Weber, julgado em 14/05/2019.

Considerar que o processo continua no Tribunal de Justiça, seria repristinar o entendimento da Súmula 394 do STF que, como vimos, foi cancelada.

Veja esse recente caso examinado pela Corte:
“HT” praticou, supostamente, o crime de corrupção passiva na condição de Deputado Estadual.
Como Deputado Estadual seria julgado pelo Tribunal de Justiça.
Ocorre que ele foi eleito Deputado Federal antes de o processo ser julgado.
Depois da diplomação, a ação penal foi remetida para o Supremo analisar.
O Ministro Relator Dias Toffoli afirmou que o STF não seria competente para julgar o delito porque foi praticado antes da diplomação como Deputado Federal. Diante disso, determinou a remessa dos autos à 1ª instância. Constou o seguinte na decisão:
“Nesse contexto, tratando-se de crimes que não foram praticados no exercício do mandato de Deputado Federal e diante da inaplicabilidade da regra constitucional de prerrogativa de foro ao presente caso, remetam-se os autos a uma das Varas Criminais da Comarca de Curitiba/PR, para que prossiga no julgamento da ação penal.” (Brasília, 3 de maio de 2018. Ministro Dias Toffoli Relator Documento assinado digitalmente. DJE nº 88, divulgado em 07/05/2018)

Consequências diante do reconhecimento da incompetência absoluta
O foro por prerrogativa de função é regra de competência prevista na Constituição Federal, possuindo natureza de competência absoluta.

Qual é a consequência diante do seu descumprimento? Os atos processuais são anulados?
De acordo com a literalidade do CPP:
• os atos instrutórios seriam válidos;
• os atos decisórios seriam anulados.
                                                                                                                         
Veja a redação do art. 567 do CPP:
Art. 567. A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.

A jurisprudência, contudo, afirma que nem sempre os atos decisórios serão anulados.
Para o STF e o STJ, os atos decisórios que haviam sido proferidos pelo juízo incompetente podem ser posteriormente ratificados (validados) pelo juízo competente, quando este receber os autos.
Veja alguns julgados nesse sentido:

Conforme posicionamento hodierno sobre a matéria, este Supremo Tribunal Federal, nos casos de incompetência absoluta do juízo, admite a ratificação de atos decisórios pelo juízo competente.
STF. 1ª Turma. HC 123465, Rel. Rosa Weber, julgado em 25/11/2014.

A possibilidade de ratificação de atos instrutórios – e até mesmo de atos decisórios – pela autoridade competente encontra-se em harmonia com a jurisprudência deste Supremo Tribunal.
STF. 2ª Turma. RE 730579 AgR, Rel. Ricardo Lewandowski, julgado em 23/06/2017.

Constatada a incompetência absoluta, os autos devem ser remetidos ao Juízo competente, que pode ratificar ou não os atos já praticados. Por outro lado, a ratificação dos atos praticados pelo Juízo incompetente pode ser implícita, ou seja, por meio da prática de atos que impliquem a conclusão de que o Magistrado validou os referidos atos.
STJ. 5ª Turma. AgRg nos EDcl no REsp 1414960/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 20/09/2016.

Esta Corte tem entendimento assente de que, nos casos de incompetência absoluta, há a possibilidade de ratificação dos atos decisórios pelo Juízo competente.
STJ. 5ª Turma. EDcl no AgRg no REsp 1853262/AC, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 13/04/2020.





quinta-feira, 25 de junho de 2020

INFORMATIVO Comentado 977 STF


Olá amigos do Dizer o Direito,

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ÍNDICE DO INFORMATIVO 977 DO STF

Direito Constitucional
PODER LEGISLATIVO
É inconstitucional norma da Constituição Estadual que preveja a possibilidade de a Assembleia Legislativa convocar o Presidente do STJ ou o PGJ para prestar informações, sob pena de crime de responsabilidade.

Direito ADMINISTRATIVO
CONCURSO PÚBLICO
A equiparação de carreira de nível médio a outra de nível superior constitui ascensão funcional, vedada pelo art. 37, II, da CF/88.

SERVIDORES PÚBLICOS
Lei estadual pode exigir que servidor more no Município onde atua, mas não pode exigir que ele peça autorização todas as vezes em que for sair da localidade.

DIREITO ELEITORAL
PRAZOS ELEITORAIS
Mesmo com a covid-19, foram mantidos os prazos para filiação partidária e desincompatibilização nas eleições municipais de 2020.

DIREITO TRIBUTÁRIO
DIREITO FINANCEIRO
As restrições impostas pelos arts. 14, 16, 17 e 24 da LRF não se aplicam durante o estado de calamidade pública decorrente do coronavírus.

DIREITO FINANCEIRO
Lei estadual não pode autorizar que o Estado utilize recursos de depósitos judiciais, em percentuais e para finalidades diferentes daquilo que é previsto na legislação federal

DIREITO PREVIDENCIÁRIO
ACIDENTE DE TRABALHO
O art. 21-A da Lei nº 8.213/91 é constitucional.











INFORMATIVO Comentado 977 STF - Versão Resumida


Olá amigos do Dizer o Direito,

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Bons estudos.





quarta-feira, 24 de junho de 2020

Comentários à Lei 14.016/2020, que autoriza restaurantes e similares a doarem alimentos excedentes a pessoas em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional



O problema das sobras de alimentos nos restaurantes e similares
É muito comum que, em estabelecimentos que trabalhem com fornecimento de comida, tais como restaurantes, lanchonetes, padarias, hotéis e supermercados, sobrem alimentos que estão preparados, mas não foram consumidos e que logo perderão a validade.
Para se ter uma ideia, segundo dados da ABRASEL (RMC), em cada restaurante sobram, em média, 5kg de alimentos por dia. Multiplique isso pela quantidade de restaurantes e bares e se chegará a muitas toneladas de alimentos que sobram constantemente.
Geralmente, esses alimentos são simplesmente descartados, ou seja, jogados fora.
Essa é uma triste realidade, considerando que existem muitas pessoas passando fome.

E por que os donos dos estabelecimentos não doam esses alimentos para pessoas que precisam?
O principal motivo alegado é o de que não havia segurança para isso.
As associações de bares, restaurantes, hotéis etc. não recomendavam que seus associados doassem os alimentos excedentes porque se a pessoa que os recebeu e os consumiu eventualmente tivesse alguma indisposição de saúde, o estabelecimento poderia ser processado e condenado a pagar indenização. Além disso, poderia haver implicações criminais.
Desse modo, tais associações sempre defenderam que houvesse uma legislação que definisse, de forma mais clara, o regime de responsabilidade nesses casos. A Lei precisaria também estabelecer protocolos de segurança alimentar, considerando que depois de doado, o alimento, se não for consumido imediatamente, precisará ser transportado, acondicionado, manipulado e servido ao destinatário final. Em cada uma dessas etapas, é indispensável que se mantenham os cuidados com a conservação e com a higiene a fim de evitar eventual contaminação.

Leis estaduais e municipais
Em alguns Estados e Municípios, foram editadas leis autorizando que restaurantes e similares fizessem essa doação. No entanto, a insegurança jurídica permanecia, considerando que o tema envolve responsabilidade civil e até direito penal, matérias que são de competência legislativa privativa da União (art. 22, I, da CF/88). Assim, tais leis estaduais ou municipais não podiam simplesmente isentar ou mesmo abrandar a responsabilidade dos estabelecimentos que adotassem a boa prática da doação.

Lei nº 14.016/2020
Dentro do contexto acima explicado, foi editada a Lei nº 14.016/2020, que expressamente autoriza a doação de excedentes de alimentos para o consumo humano. São as chamadas “sobras limpas”.

Estabelecimentos ficam expressamente autorizados a fazer a doação dos alimentos
Pela nova Lei, os estabelecimentos que produzem ou forneçam alimentos ficam expressamente autorizados a doar os alimentos excedentes que ainda não foram comercializados, desde que cumpridos alguns critérios. Veja a redação do caput do art. 1º:
Art. 1º Os estabelecimentos dedicados à produção e ao fornecimento de alimentos, incluídos alimentos in natura, produtos industrializados e refeições prontas para o consumo, ficam autorizados a doar os excedentes não comercializados e ainda próprios para o consumo humano que atendam aos seguintes critérios:
I – estejam dentro do prazo de validade e nas condições de conservação especificadas pelo fabricante, quando aplicáveis;
II – não tenham comprometidas sua integridade e a segurança sanitária, mesmo que haja danos à sua embalagem;
III – tenham mantidas suas propriedades nutricionais e a segurança sanitária, ainda que tenham sofrido dano parcial ou apresentem aspecto comercialmente indesejável.

O inciso II trata daqueles produtos que estão com as embalagens amassadas, avariadas, mas sem comprometer o seu conteúdo. Normalmente, os clientes dos supermercados não querem comprar os produtos nessas condições e eles são, atualmente, descartados, mesmo sem ter qualquer vício no conteúdo. A ideia é estimular que essas mercadorias sejam doadas.
O inciso III versa sobre as frutas, vegetais ou outros alimentos esteticamente “feios”, mas que ainda estão em boas condições.

Doação deve ser inteiramente gratuita e desinteressada
A doação será realizada de modo gratuito, sem a incidência de qualquer encargo que a torne onerosa (art. 1º, § 1º).
Assim, não é possível exigir qualquer contraprestação – direta ou indireta – da pessoa beneficiada.
Se houver alguma espécie de contraprestação em favor do estabelecimento, não se aplica o regime jurídico da Lei nº 14.016/2020, incidindo as regras gerais do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor.

Quais estabelecimentos estão autorizados, pela Lei nº 14.016/2020, a doar os alimentos?
A lei prevê um rol exemplificativo:
• empresas;
• hospitais;
• supermercados;
• cooperativas;
• restaurantes;
• lanchonetes
• e todos os demais estabelecimentos que forneçam alimentos preparados prontos para o consumo de trabalhadores, de empregados, de colaboradores, de parceiros, de pacientes e de clientes em geral.

Como é feita essa doação?
A doação poderá ser feita:
1) diretamente;
Ex: ao final da noite, o gerente do restaurante doa alimentos para moradores de rua.

2) em colaboração com o poder público;
Ex: supermercado firma convênio com o Município para doar, gratuitamente, alimentos para creches públicas.

3) com a participação de entidades intermediárias.
Assim, a doação pode ser feita por meio de:
• bancos de alimentos*;
• entidades beneficentes de assistência social certificadas; ou
• entidades religiosas.

* “os bancos alimentares ou bancos de alimentos são organizações sem fins lucrativos baseadas no voluntariado e que têm como objetivo a angariação de donativos de bens alimentares e a recuperação de excedentes alimentares da sociedade para os redistribuir entre pessoas necessitadas, evitando qualquer desperdício ou mau uso.” (https://www.wikiwand.com/pt/Banco_de_Alimentos)

Quem pode ser beneficiado com as doações?
Os beneficiários da doação serão pessoas, famílias ou grupos em situação de vulnerabilidade ou de risco alimentar ou nutricional (art. 2º).

Não há relação de consumo
A doação a que se refere a Lei nº 14.016/2020, em nenhuma hipótese, configurará relação de consumo (art. 2º, parágrafo único).
Trata-se de importante garantia para os estabelecimentos porque, com isso, não se aplica a eles o rigoroso regime de responsabilidade objetiva por fato do produto, previsto no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor:
Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

Com isso, o indivíduo beneficiado com a doação não poderá ser enquadrado no conceito de consumidor (art. 2º do CDC), nem mesmo na figura equiparada de bystander, tratada no art. 17 do CDC.

Qual foi o regime de responsabilidade civil do doador previsto pela Lei nº 14.016/2020?
Veja o que diz o caput do art. 3º:
Art. 3º O doador e o intermediário somente responderão nas esferas civil e administrativa por danos causados pelos alimentos doados se agirem com dolo.

No direito brasileiro, em regra, a responsabilidade civil é subjetiva, de forma que o agente será responsabilizado se agiu com dolo ou culpa (art. 186 c/c art. 927 do Código Civil).
No caso da doação gratuita de alimentos, o legislador abrandou essa regra e determinou que só haverá responsabilidade se o doador ou o intermediário tiverem agido com dolo. Assim, mesmo que tenham atuado com culpa, não serão responsabilizados.
A despeito de reconhecer a boa intenção do legislador diante de um tema tão sensível e socialmente relevante, penso que a previsão foi exacerbada e que ela poderá gerar uma proteção insuficiente às pessoas que recebem as doações. Entendo que a Lei deveria ter previsto que o doador e o intermediário também teriam responsabilidade caso tivessem agido com “culpa grave”, ou seja, quando demonstraram total descaso, mesmo que sem intenção de causar dano.
Mutatis mutandis, seria o caso de se aplicar o mesmo raciocínio que levou o STJ a editar a súmula 145:
Súmula 145-STJ: No transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.

Não foi essa, contudo, a opção legal.

Preocupação com a cadeia de conservação do alimento e previsão de rompimento do nexo causal
Uma das preocupações dos restaurantes e similares está no fato de que, no momento da doação, o alimento está dentro do prazo de validade e em condições de ser consumido. Ocorre que, se for mal conservado ou se passar muito tempo, ele poderá se tornar impróprio para o consumo.
Assim, não há como o doador garantir que aquele alimento doado em perfeitas condições permanecerá dessa forma no exato instante do consumo, caso este não seja imediato.
Pensando nisso, o legislador inseriu uma regra afirmando que o doador somente possui responsabilidade pela higidez do alimento no momento da doação, não sendo responsável por eventuais danos decorrentes da má-conservação, transporte inadequado ou incorreta manipulação. Isso porque são fatos posteriores, supervenientes, sobre os quais o doador não terá mais controle. Há, portanto, ausência de responsabilidade pelo rompimento do nexo causal.
Veja o que diz o § 1º do art. 3º:
Art. 3º (...)
§ 1º A responsabilidade do doador encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao intermediário ou, no caso de doação direta, ao beneficiário final.

Dessa forma, o estabelecimento só responderá se, no momento da doação, o alimento era impróprio para o consumo.

Responsabilidade do intermediário
Os restaurantes e similares muitas vezes não possuem condições de entregar pessoalmente para aqueles que necessitam dos alimentos. É o caso, por exemplo, da doação de alimentos para uma creche, asilo ou para uma entidade de recuperação de dependentes químicos. Essa logística de transporte e entrega pode, portanto, ser feita por um terceiro que, se for também economicamente desinteressado, tem a sua responsabilidade regida pela Lei nº 14.016/2020.
A responsabilidade desse intermediário nos mesmos moldes acima explicados, encerra-se quando ele entrega o alimento, não podendo ser punido caso a entidade recebedora não acondicione corretamente os produtos ou não os manipule em condições adequadas. Confira:
Art. 3º (...)
§ 2º A responsabilidade do intermediário encerra-se no momento da primeira entrega do alimento ao beneficiário final.
§ 3º Entende-se por primeira entrega o primeiro desfazimento do objeto doado pelo doador ao intermediário ou ao beneficiário final, ou pelo intermediário ao beneficiário final.

Responsabilidade penal
Qual é o crime praticado pelo sócio-gerente de um restaurante que doa alimentos que estão estragados?
Em tese, ele pratica o crime do art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90:
Art. 7º Constitui crime contra as relações de consumo:
(...)
IX - vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo;
Pena - detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, ou multa.
Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II, III e IX pune-se a modalidade culposa, reduzindo-se a pena e a detenção de 1/3 (um terço) ou a de multa à quinta parte.

A Lei nº 14.016/2020 inova ao exigir “dolo específico” do agente para que ele seja responsabilizado criminalmente:
Art. 4º Doadores e eventuais intermediários serão responsabilizados na esfera penal somente se comprovado, no momento da primeira entrega, ainda que esta não seja feita ao consumidor final, o dolo específico de causar danos à saúde de outrem.

Dolo específico
O dolo específico ocorre quando “o agente deseja praticar a conduta visando a uma finalidade específica, que é elementar do tipo. Ex.: art. 159 – sequestrar pessoa com o fim de obter vantagem como condição ou preço do resgate.” (ALVES, Jamil Chaim. Manual de Direito Penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 249).
O contrário de dolo específico é o dolo geral, isto é, quando o tipo penal não exige nenhuma finalidade especial.
A expressão “dolo específico” está atualmente em desuso e a doutrina prefere falar em elemento subjetivo do tipo (ou elemento subjetivo do injusto).

Com base no art. 4º podemos chegar a duas conclusões:
1) os doadores e eventuais intermediários disciplinados pela Lei nº 14.016/2020 só responderão pelo crime do art. 7º, IX, da Lei nº 8.137/90 se tiverem o dolo específico (finalidade especial) de causar danos à saúde de outrem;
2) a figura culposa do parágrafo único do art. 7º da Lei nº 8.137/90 não se aplica para os doadores e eventuais intermediários disciplinados pela Lei nº 14.016/2020.

Instituições públicas e privadas como intermediárias
Para que os objetivos da Lei sejam concretizados, o ideal seria a criação de órgãos públicos e de associações privadas que funcionassem como intermediários entre os estabelecimentos e as pessoas que necessitam de doação. Tais órgãos e instituições funcionariam curadores atestando a qualidade dos alimentos doados e os mantendo em condições adequadas para serem entregues às pessoas que mais necessitam.

Vigência
A Lei nº 14.016/2020 entrou em vigor na data de sua publicação (24/06/2020).