sexta-feira, 30 de junho de 2023

Um terceiro, que não é réu no processo, pode apresentar reconvenção contra o autor? Neste caso, ele se torna parte na demanda principal?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João decidiu abrir um restaurante da franquia X.

Ele celebrou contrato de franquia com a empresa Alfa Franqueadora Ltda, responsável pela marca.

Após algum tempo, João ajuizou ação contra a franqueadora pedindo para anular o contrato sob o argumento de que a empresa não prestou a assessoria prometida nem cumpriu com as demais obrigações contratuais.

Citada, a franqueadora apresentou contestação na qual também formulou pedido reconvencional.

A franqueadora formulou reconvenção em face do autor pedindo para que ele fosse condenado ao pagamento das seguintes verbas: 1) multa contratual; 2) taxa de royalties; 3) dívidas decorrentes de produtos adquiridos para abastecer a loja.

Até aí tudo bem. O aspecto interessante foi que essa reconvenção foi proposta não apenas pela Alfa Restaurantes Ltda (ré). A reconvenção foi também proposta pela Alfa Distribuidora de Alimentos Ltda., empresa do mesmo grupo, mas responsável pela distribuição dos alimentos para a rede. Os valores decorrentes dos produtos adquiridos para abastecer a loja eram devidos para a Alfa Distribuidora Ltda.

 

Sentença

Ao final da instrução, o juiz proferiu sentença na qual:

a) julgou procedente o pedido do autor;

b) julgou improcedentes os pedidos reconvencionais.

 

Segundo o magistrado, houve má-condução no planejamento do negócio pela franqueadora.

O investimento exigido do franqueado foi bem superior àquele previsto na circular de oferta da franquia.

Além disso, ficou demonstrado que a franqueada não cumpriu as obrigações previstas no contrato de franquia.

Por essas razões, o juiz declarou resolvido o contrato.

Como houve essa inexecução por parte da franqueadora, o juiz decidiu que o autor não precisava pagar nem a multa nem qualquer outro valor para a ré. Por essa razão, julgou improcedentes os pedidos reconvencionais.

 

Recurso da Alfa Distribuidora de Alimentos

A litisconsorte Alfa Distribuidora de Alimentos interpôs recurso.

Argumentou que o seu pedido foi para que o autor fosse condenado a pagar pelos insumos (alimentos) que ela efetivamente lhe entregou e que ele utilizou no restaurante.

Isentar o autor do pagamento por esses insumos caracterizaria enriquecimento ilícito.

A litisconsorte esclareceu que ela (recorrente) não era a franqueadora e que, por essa razão, não participou do contrato de franquia discutido na ação principal.

Desse modo, a decisão, ao estender os efeitos do contrato de franquia à sua pretensão de ser ressarcida, estaria criando uma hipótese de solidariedade não prevista em lei, nem convencionada pelas partes.

 

Os argumentos da Alfa Distribuidora de Alimentos foram acolhidos?

SIM.

 

Franquia

A franquia empresarial pode ser considerada como o sistema “pelo qual um franqueador autoriza por meio de contrato um franqueado a usar marcas e outros objetos de propriedade intelectual, sempre associados ao direito de produção ou distribuição exclusiva ou não exclusiva de produtos ou serviços e também ao direito de uso de métodos e sistemas de implantação e  administração de negócio ou sistema operacional desenvolvido ou detido pelo franqueador, mediante remuneração direta ou indireta, sem caracterizar relação de consumo ou vínculo empregatício em relação ao franqueado ou a seus empregados, ainda que durante o período de treinamento” (art. 1º da Lei nº 13.966/2019).

Os contratos de franquia têm natureza de contrato de adesão porque essa espécie negocial é celebrada por adesão do franqueado às cláusulas preestabelecidas pelo franqueador.

A franquia não consubstancia relação de consumo (STJ. 3ª Turma. REsp 1803752/SP, DJe 24/04/2020). Cuida-se, em verdade, de relação de fomento econômico, porquanto visa ao estímulo da atividade empresarial pelo franqueado.

 

Reconvenção

O CPC/2015 inovou no procedimento relativo à reconvenção ao prever que ela deve ser apresentada na própria contestação e não mais de forma autônoma:

Art. 343. Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa.

 

Apesar disso, a doutrina anota que “a reconvenção continua a ser uma ação autônoma e não um simples meio de defesa” (THEODORO JR., Humberto. Novo Código de Processo Civil Anotado. E-book.  20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016).

A independência entre a ação principal e a reconvenção é corroborada pelo disposto no art. 343, §2º, do CPC/2015, o qual estabelece que:

Art. 343 (...)

§ 2º A desistência da ação ou a ocorrência de causa extintiva que impeça o exame de seu mérito não obsta ao prosseguimento do processo quanto à reconvenção.

 

O CPC permite que uma parte que não integrava originalmente a lide (ex: Alfa Distribuidora Ltda) possa também apresentar reconvenção?

SIM. Além da ampliação objetiva (ampliação do que está sendo pedido ao Estado-juiz), a reconvenção também pode ocasionar a ampliação subjetiva, por meio da inclusão de um sujeito que até então não participava do processo.

O art. 343, §§ 3º e  4º, do CPC/2015 autoriza que:

• a reconvenção seja proposta contra o autor e um terceiro; ou

• que a reconvenção seja proposta pelo réu em litisconsórcio com terceiro (como foi no caso concreto; a Alfa Distribuidora não era ré e, portanto, era considerado terceiro).

Veja a redação legal:

Art. 343 (...)

§ 3º A reconvenção pode ser proposta contra o autor e terceiro.

§ 4º A reconvenção pode ser proposta pelo réu em litisconsórcio com terceiro.

 

Nessa hipótese em que os polos da ação e da reconvenção não são idênticos, a independência da reconvenção em relação à ação principal ganha ainda mais relevo. Isso significa que o juiz deve examinar cada um dos pleitos (o pedido formulado na inicial e o pedido deduzido na reconvenção), de forma autônoma, sem que haja a indevida atribuição de obrigações à parte que não compõe a relação processual.

Nessa linha, o STJ já decidiu que “cada pedido e cada relação jurídica deve ser analisada separadamente” (STJ. 3ª Turma. REsp 1.490.073/MG, DJe 28/5/2018).

 

Isso significa que a reconvenção, neste caso, modificou o polo passivo da ação principal? A partir do momento em que a Alfa Distribuidora apresentou reconvenção, podemos dizer que ela também foi incluída como ré no polo passivo da ação principal?

NÃO. Como a reconvenção é autônoma e independente, a ampliação subjetiva do processo promovida pela reconvenção não modifica os polos da ação principal. Assim, as questões debatidas na ação principal continuam restritas às partes que já integravam os polos ativo e passivo da demanda, não se estendendo ao terceiro, que apenas é parte da demanda reconvencional. Em uma simples frase: o terceiro que apresentou reconvenção não se torna parte da ação principal. Em relação à ação principal, ele continua sendo terceiro.

 

Mas... no caso concreto, a Alfa Distribuidora é do mesmo grupo econômico da Alfa Franqueadora. Diante disso, não podemos também dizer que ela faz parte do polo passivo da ação principal?

NÃO. A reunião em um grupo econômico não retira a personalidade jurídica de cada sociedade que o compõe. As sociedades integrantes do grupo mantêm a sua autonomia patrimonial, a qual somente poderá ser desconsiderada quando presentes os pressupostos para a desconsideração indireta da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil). Tanto é assim que o art. 50, § 4º, do CC, introduzido pela Lei nº 13.874/2019, prescreve que a mera existência de grupo econômico não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica:

Art. 50 (...)

§ 4º  A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

 

Sendo assim, não é possível atribuir responsabilidade solidária a sociedades empresárias pelo simples fato de integrarem o mesmo grupo econômico.

 

Voltando ao caso concreto:

No caso concreto, não há dúvidas que a recorrente Alfa Distribuidora Ltda não era parte do contrato de franquia, o qual foi celebrado entre João e a Alfa Franqueadora Ltda. Em verdade, a relação da distribuidora com João era de fornecimento de insumos, que, embora imprescindível ao bom desempenho da franquia, não se confunde com a relação negocial de franquia.

O magistrado dispensou João de pagar à distribuidora o valor devido pela compra dos insumos. Dito de outra forma, o juiz estendeu os efeitos da resolução do contrato de franquia à reconvinte (distribuidora), que, reitera-se, não figurava como litisconsorte passiva na ação principal, mas tão somente como litisconsorte ativa na reconvenção.

Ao proceder dessa forma, o magistrado desconsiderou a independência entre as relações jurídicas convencionadas entre franqueadora e franqueado e entre fornecedora de insumos e franqueado, tratando-as como se fossem uma só. Também não foi levado em conta o fato de que a recorrente (distribuidora) não ocupava o polo passivo da ação principal.

Como mencionado anteriormente, a mera alegação de que as empresas compõem o mesmo grupo econômico não sustenta a conclusão do juiz, pois este fato, por si só, não induz solidariedade entre seus integrantes.

 

Em suma:

A reconvenção promovida em litisconsórcio com terceiro não acarreta a inclusão deste no polo passivo da ação principal.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.046.666-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 16/5/2023 (Info 775).

 

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Se o réu falecer antes do ajuizamento da ação, não havendo citação válida, deve ser facultada ao autor a emenda à petição inicial ou o processo deve ser imediatamente extinto sem resolução do mérito?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 27/06/2011, o banco ajuizou ação monitória contra João.

O juiz recebeu a petição inicial e determinou a citação.

O Oficial de Justiça deixou de citar o requerido porque, segundo informações da viúva, ele teria falecido em 16/02/2001.

À vista dessa certidão, o autor requereu a substituição do polo passivo da demanda para espólio de João.

O juiz não aceitou o requerimento do banco e extinguiu o feito sem resolução do mérito.

Segundo argumentou o magistrado, a sucessão processual não pode ocorrer quando o falecimento do réu se deu antes do ajuizamento da ação, a qual deverá ser extinto, sem resolução do mérito, ante a ausência de capacidade do de cujus de ser parte.

A parte autora foi condenada no pagamento das custas processuais e honorários de 10% sobre o valor da causa.

Inconformado, o banco recorreu. Alegou que, tendo ocorrido a morte do devedor antes do ajuizamento da ação e tendo sido tal informação conhecida somente no decorrer do processo, a jurisprudência pátria tem entendido não se tratar de caso de extinção do feito já ajuizado, mas sim de ilegitimidade passiva do de cujus, devendo-se facultar ao autor a emenda da inicial com a substituição do devedor por seu espólio ou pelos herdeiros.

 

Os argumentos do banco foram acolhidos pelo STJ?

SIM.

É possível facultar ao autor o aditamento da inicial para regularização do polo passivo, na circunstância de falecimento do réu ser anterior à propositura da ação.

No caso concreto, o autor não possuía conhecimento da morte do devedor quando do ajuizamento da ação monitória. Desse modo, não se trata de hipótese de sucessão processual pelos herdeiros (art. 110 do CPC/2015), a qual ocorre apenas quando a parte falece no curso do processo:

Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º .

 

Por outro lado, o aditamento da inicial deve ser permitido porque a ação judicial foi proposta contra parte incapaz de figurar no polo passivo. De fato, não havendo citação válida do réu, pois previamente falecido à época do ajuizamento da ação, deve ser facultada ao autor a emenda à petição inicial para incluir o espólio ou os herdeiros, nos termos do art. 329, I, do CPC/2015:

Art. 329. O autor poderá:

I - até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;

(...)

 

Nesse mesmo sentido:

O correto enquadramento jurídico da situação em que uma ação judicial é ajuizada em face de réu falecido previamente à propositura da demanda é a de ilegitimidade passiva do de cujus, devendo ser facultado ao autor, diante da ausência de ato citatório válido, emendar a petição inicial para regularizar o polo passivo, dirigindo a sua pretensão ao espólio.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.559.791/PB, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/8/2018.

 

Em suma:

 

DOD Plus – julgado correlato

É admissível a emenda à inicial para a substituição de executado pelo seu espólio, em execução ajuizada em face de devedor falecido antes do ajuizamento da ação

Se a ação é proposta contra indivíduo que já estava morto, o juiz não deverá determinar a habilitação, a sucessão ou a substituição processual. De igual modo, o processo não deve ser suspenso para habilitação de sucessores. Isso porque tais institutos são aplicáveis apenas para as hipóteses em que há o falecimento da parte no curso do processo judicial.

O correto enquadramento jurídico desta situação é de ilegitimidade passiva, devendo ser facultado ao autor, diante da ausência de ato citatório válido, emendar a petição inicial para regularizar o polo passivo, dirigindo a sua pretensão ao espólio.

Ex: em 04/04/2018, o Banco ajuizou execução de título extrajudicial contra João. A tentativa de citação, todavia, foi infrutífera, tendo em vista que João havia falecido em 04/03/2018, ou seja, um mês antes. Diante disso, o juiz deverá permitir que o exequente faça a emenda da petição inicial para a substituição do executado falecido pelo seu espólio.

STJ. 3ª Turma REsp 1559791-PB, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 28/08/2018 (Info 632).

quarta-feira, 28 de junho de 2023

O Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora quando mero executor de decisão do Conselho Nacional de Justiça

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento nº 77/2018 tratando sobre a designação de um responsável interino quando o cartório extrajudicial ficar vago.

O art. 2º do Provimento previu que:

Art. 2º Declarada a vacância de serventia extrajudicial, as corregedorias de justiça dos Estados e do Distrito Federal designarão o substituto mais antigo para responder interinamente pelo expediente.

 

O § 2º do art. 2º proíbe que o substituto designado seja cônjuge, companheiro ou parente até o terceiro grau do antigo delegatário ou de magistrado do tribunal local.

Francisco era titular do cartório de registro de imóveis. Ele faleceu. João, filho de Francisco, assumiu como interino.

A Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado, por meio do Aviso n. 4/CGJ/2019, determinou que todos os oficiais interinos (inclusive João) preenchessem uma declaração, com posterior remessa à Direção do Foro da Comarca e à Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, informando se as restrições contidas no § 2º do art. 2º do Provimento CNJ n. 77/2018 seriam ou não aplicáveis a eles.

Assim, João teria que declarar que era filho de Francisco e que, portanto, não poderia permanecer na interinidade.

Diante disso, João impetrou mandado de segurança preventivo contra o ato do Corregedor-Geral do TJ pedindo para que fosse mantido como interino até a realização de um concurso público.

 

João escolheu corretamente a autoridade coatora neste caso?

NÃO.

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, ao editar o Aviso n. 4/CGJ/2019, assim o fez como mero executor da determinação emanada pelo Conselho Nacional de Justiça.

É firme o entendimento do STJ de que o Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora quando é mero executor de decisão do Conselho Nacional de Justiça.

Desse modo, deve ser reconhecida a ilegitimidade do Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça do Estado para figurar como autoridade coatora.

 

Em suma:

O Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora quando mero executor de decisão do Conselho Nacional de Justiça.

STJ. 2ª Turma. AgInt no RMS 64.215-MG, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 17/4/2023 (Info 775).

 

No mesmo sentido:

Compete ao STF julgar mandado de segurança contra ato do Presidente de Tribunal de Justiça que, na condição de mero executor, apenas dá cumprimento à resolução do CNJ. Isso porque a competência para julgar MS contra atos do CNJ é do STF.

STF. 2ª Turma. Rcl 4731/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 5/8/2014 (Info 753).


segunda-feira, 26 de junho de 2023

Revisão para o concurso de Procurador do Estado de Roraima

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Procurador do Estado de Roraima.

Bons estudos.



 

domingo, 25 de junho de 2023

O simples fato de o cão farejador ter sinalizado que haveria drogas na residência não é suficiente para se autorizar o ingresso na casa do suspeito

Inviolabilidade de domicílio

A CF/88 prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

 

A inviolabilidade do domicílio é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo.

 

Entendendo o inciso XI:

Só se pode entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes hipóteses:

Durante o DIA

Durante a NOITE

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro;

• Para cumprir determinação judicial (ex: busca e apreensão; cumprimento de prisão preventiva).

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro.

 

 

Assim, guarde isso: não se pode invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.

 

Flagrante delito

Vimos acima que, havendo flagrante delito, é possível ingressar na casa mesmo sem consentimento do morador, seja de dia ou de noite.

Um exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

 

Assim, se a casa do traficante funciona como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende drogas, a todo momento estará ocorrendo o crime, considerando que ele está praticando os verbos “ter em depósito” e “guardar”.

 

Diante disso, havendo suspeitas de que existe droga em determinada casa, será possível que os policiais invadam a residência mesmo sem ordem judicial e ainda que contra o consentimento do morador?

SIM. No entanto, no caso concreto, devem existir fundadas razões que indiquem que ali está sendo cometido um crime (flagrante delito). Essas razões que motivaram a invasão forçada deverão ser posteriormente expostas pela autoridade, sob pena de ela responder nos âmbitos disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos praticados poderão ser anulados.

O STF possui uma tese fixada sobre o tema:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info 806).

 

O STJ também possui alguns julgados a respeito do assunto:

O ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior da residência.

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o seu consentimento e sem determinação judicial.

STJ. 6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 20/4/2017 (Info 606).

 

Assim, para legitimar-se o ingresso em domicílio alheio, é necessário tenha a autoridade policial fundadas razões para acreditar, com lastro em circunstâncias objetivas, no atual ou iminente cometimento de crime no local onde a diligência vai ser cumprida.

 

Feita essa revisão, imagine a seguinte situação hipotética:

Os policiais estavam fazendo uma ronda de rotina no bairro.

O cão farejador que acompanhava os policiais sinalizou que havia droga na entrada de uma das casas.

Além disso, neste mesmo instante, conforme narraram os policiais, um indivíduo saiu da casa e, ao ser indagado pela polícia, teria confessado que comprou e consumiu drogas no local.

Os policiais tocaram a campainha e foram atendidos por Pedro, morador da residência.

Segundo o depoimento policial, Pedro permitiu voluntariamente que os agentes entrassem na casa, com o cão farejador, a fim de procurar drogas.

Dentro da residência, a polícia encontrou maconha e cocaína, além de uma balança de precisão.

Pedro foi denunciado por tráfico de drogas.

Não houve comprovação documental de que ocorreu autorização voluntária para o ingresso no domicílio.

O réu foi condenado.

A defesa impetrou habeas corpus alegando que todas as provas obtidas foram ilegais porque obtidas mediante ofensa à garantia constitucional de inviolabilidade de domicílio.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

SIM.

Em uma caso semelhante a esse, a 6ª Turma do STJ anulou as provas obtidas mediante busca e apreensão domiciliar, bem como as provas delas decorrentes, e, em consequência, absolveu o réu.

 

Prova do consentimento

O STJ tem decidido que:

Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.

O tráfico ilícito de entorpecentes, em que pese ser classificado como crime de natureza permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de urgência, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa objetiva e concretamente inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.

O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.

A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo.

A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

STJ. 5ª Turma. HC 616584/RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 30/03/2021.

STJ. 6ª Turma. HC 598051/SP, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 02/03/2021 (Info 687).

 

Nesse mesmo sentido:

Para que os policiais façam o ingresso forçado em domicílio, resultando na apreensão de material apto a configurar o crime de tráfico de drogas, isso deve estar justificado com base em elementos prévios que indiquem que havia um estado de flagrância ocorrendo no local.

No caso em tela, a violação de domicílio teve como justificativa o comportamento suspeito do acusado – que empreendeu fuga ao ver a viatura policial –, circunstância fática que não autoriza a dispensa de investigações prévias ou do mandado judicial para a entrada dos agentes públicos na residência, acarretando a nulidade da diligência policial.

Além disso, a alegação de que a entrada dos policiais teria sido autorizada pelo agente não merece acolhimento. Isso, porque não há outro elemento probatório no mesmo sentido, salvo o depoimento dos policiais que realizaram o flagrante, tendo tal autorização sido negada em juízo pelo réu.

Segundo entende o STJ, é do estado acusador o ônus de comprovar que houve consentimento válido do morador para que os policiais entrem na casa. Assim, o estado acusador é quem deve provar que o morador autorizou a entrada, não sendo suficiente a mera palavra dos policiais.

STJ. 6ª Turma. HC 695980-GO, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 22/03/2022 (Info 730).

 

No caso, não houve comprovação documental de que ocorreu a autorização voluntária e livre de coação para o ingresso no domicílio. Além disso, a palavra dos agentes policiais acerca da suposta autorização não encontrou respaldo em nenhum outro elemento probatório, sendo certo que no depoimento extrajudicial do acusado não houve registro sobre o seu consentimento.

 

Mera sinalização do cão farejador não é suficiente para confirmar que havia flagrante delito

A mera sinalização do cão de faro, seguida da abordagem de um suposto usuário – que não foi ouvido em juízo – saindo do local, desacompanhada de qualquer outra diligência investigativa ou outro elemento concreto indicando a necessidade de imediata ação policial naquele momento, não justifica, por si só, a dispensa do mandado judicial para o ingresso em domicílio.

 

Em suma:

A mera sinalização do cão de faro, seguida de abordagem a suposto usuário saindo do local, desacompanhada de qualquer outra diligência investigativa ou outro elemento concreto indicando a necessidade de imediata ação policial, não justifica a dispensa do mandado judicial para o ingresso em domicílio.

STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 729.836-MS, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 27/4/2023 (Info 774).

 

sábado, 24 de junho de 2023

Não há violação ao foro por prerrogativa de função se o membro do MP de 1ª instância instaura inquérito civil para apurar eventual ato de improbidade administrativa, ainda que posteriormente ofereça denúncia criminal pelos mesmos fatos

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, prefeito de um Município do interior do Estado, assinou contrato irregular com uma empresa.

As irregularidades foram levadas ao conhecimento do Ministério Público.

Em 02/02/2018, o Promotor de Justiça que oficiava na comarca instaurou inquérito civil para apurar a regularidade do contrato e a possível prática de improbidade administrativa.

Em 31/12/2018 terminou o mandato de João como prefeito.

Em 22/07/2019, com base nos elementos informativos colhidos no inquérito civil, o Promotor de Justiça:

• ajuizou ação de improbidade administrativa; e

• ofereceu denúncia criminal contra João, imputando-lhe a prática de crime em licitação.

 

A defesa impetrou habeas corpus argumentando que, na época em que as investigações iniciaram, João era Prefeito e, portanto, detinha foro por prerrogativa de função no Tribunal de Justiça, conforme previsto no art. 29, X, da CF/88:

Art. 29 (...)

X - julgamento do Prefeito perante o Tribunal de Justiça;

 

Desse modo, o Ministério Público somente poderia ter iniciado a apuração caso tivesse pedido autorização para o Tribunal de Justiça, que iria fazer a supervisão da investigação.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

O acusado reafirma que a denúncia criminal foi oferecida sem prévia instauração de inquérito policial (IP) ou de procedimento investigatório criminal (PIC), tendo sido instruída com a cópia do Inquérito Civil Público, em uma manobra processual para se usurpar a competência do Tribunal de Justiça local na supervisão das investigações, em violação ao princípio do juiz natural.

De fato, a inicial acusatória, que deu origem à ação penal, não foi precedida de prévia instauração de IP ou de PIC. Apoiou-se em elementos extraídos no Inquérito Civil Público.

Vale ressaltar, contudo, que, segundo jurisprudência consolidada, é plenamente legítimo “o oferecimento de denúncia com escólio em inquérito civil público” (APn 527/MT, relatora Ministra Eliana Calmon, Corte Especial, julgado em 6/3/2013), não sendo o inquérito policial ou o procedimento investigativo criminal pressuposto necessário à propositura da ação penal.

Portanto, embora o investigado exercesse cargo com foro por prerrogativa de função, não havia nenhum ato de investigação criminal iniciado na origem, mas apenas o inquérito de natureza civil. Não havendo que se falar, até aquele momento, em usurpação da competência do Tribunal de Justiça local quanto à supervisão da investigação, uma vez que “não existe foro privilegiado por prerrogativa de função para o processamento e julgamento da ação civil pública de improbidade administrativa” (AgRg na AIA 32/AM, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, DJe 13/5/2016).

Não havia investigação para apurar ilícito penal, mas improbidade administrativa supostamente praticada pelo paciente.

Importante ressaltar que o simples fato de ele exercer, na época, cargo com foro privilegiado, na ocasião das investigações promovidas pela Promotoria de justiça, não demandava autorização do Tribunal de Justiça. Isso porque não se tratava de Inquérito Policial ou Procedimento Investigatório Criminal, mas tão somente de Procedimento Preparatório, que foi convertido em Inquérito Civil Público, os quais investigavam possíveis irregularidades praticadas pelo gestor público no âmbito de sua administração. Posteriormente, após terminar o mandato, é que o Ministério Público deflagrou a ação penal, não utilizando-se de prova ilícita para chegar a opinio delicti.

 

Em suma:

 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Em ação de cobrança de valores pretéritos ao ajuizamento de anterior mandado de segurança, os juros de mora devem ser contados a partir da citação da ação de cobrança ou a partir da notificação da autoridade coatora no writ?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Pedro, aposentado no cargo de analista administrativo, recebe aposentadoria no valor de R$ 10 mil.

Em 10/02/2020, o Estado passou a pagar uma gratificação a todos os analistas administrativos no valor de R$ 3 mil. Ocorre que essa gratificação é devida apenas aos servidores da ativa, não sendo paga aos analistas aposentados. Assim, Pedro não recebia essa gratificação.

Pedro não conformou com isso considerando que se aposentou com integralidade e paridade. Logo, teria sim direito ao valor devido aos servidores da ativa.

Diante disso, em 10/01/2021, ele impetrou mandado de segurança contra o ato do Secretário de Estado (autoridade coatora).

Em 10/02/2021, o Secretário de Estado foi notificado do mandado de segurança.

O juízo negou a liminar, mas ao final a decisão foi favorável.

Em 10/02/2022, a decisão favorável ao impetrante transitou em julgado e a partir desta data a aposentadoria do autor passou a ser de R$ 13 mil.

 

Examine novamente as datas:

• Em 10/02/2020, iniciou-se o pagamento de uma gratificação de R$ 3 mil que deveria também ter sido paga ao autor. Em outras palavras, a partir dessa data, Pedro passou a ter um dano mensal de R$ 3 mil.

• Em 10/01/2021, Pedro impetrou mandado de segurança.

• Em 10/02/2021, a autoridade coatora foi notificada.

• Em 10/02/2022, os R$ 3 mil passaram a ser pagos mensalmente ao autor.

 

Pedro precisará propor ação judicial cobrando os valores atrasados que correspondem ao período entre o dia da impetração do MS (10/01/2021) e a data da efetiva implementação da verba (10/02/2022)?

NÃO. É pacífico o entendimento de que não é necessário ajuizar ação autônoma cobrando valores que venceram durante processo do mandado de segurança. Neste caso, a própria decisão concessiva do mandado de segurança poderá ser executada e o autor receberá a quantia atrasada por meio de precatório ou RPV (caso esteja dentro do limite considerado com de pequeno valor).

 

Pedro precisará propor ação judicial cobrando os valores atrasados que correspondem ao período entre o início do prejuízo (10/02/2020) e a data da propositura do mandado de segurança (10/01/2021)?

SIM.

Os valores anteriores à propositura (impetração) não podem ser exigidos no mandado de segurança.

Existem duas súmulas do STF que espelham este entendimento:

Súmula 269-STF: O mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança.

 

Súmula 271-STF: Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais, em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria.

 

Vale ressaltar que se trata também de texto expresso da Lei nº 12.016/2009 (Lei do MS):

Art. 14 (...)

§ 4º O pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias assegurados em sentença concessiva de mandado de segurança a servidor público da administração direta ou autárquica federal, estadual e municipal somente será efetuado relativamente às prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial.

 

Assim, o pagamento de verbas atrasadas, em sede de mandado de segurança, restringe-se às parcelas existentes entre a data da impetração e a concessão da ordem.

 

Mas e os valores anteriores à impetração, como a parte poderá obtê-los?

Cabe à parte impetrante, após o trânsito em julgado da sentença mandamental concessiva, ajuizar nova demanda de natureza condenatória para reivindicar os valores vencidos em data anterior à impetração do mandado de segurança. Nesse sentido:

(...) 1. Cinge-se a controvérsia a definir o termo inicial de produção de efeitos financeiros de sentença concessiva de Segurança.

(...)

4. O legislador fez clara opção por manter a sistemática consolidada nas Súmulas 269/STF ("O mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança") e 271/STF ("Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria").

5. Em que pese a existência de corrente contrária, merece prevalecer a jurisprudência amplamente dominante, em consonância com as Súmulas 269/STF e 271/STF, por se tratar da única forma de preservar a vigência do art. 14, § 4°, da Lei 12.016/2009. (...)

STJ. Corte Especial. EREsp 1087232/ES, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 07/12/2016.

 

Os efeitos financeiros, por ocasião da concessão da segurança, devem retroagir à data de sua impetração, devendo os valores pretéritos ser cobrados em ação própria.

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1481406/GO, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 17/04/2018.

 

Voltando ao nosso exemplo hipotético:

Em 10/02/2023, Pedro ajuizou ação de cobrança exigindo os valores pretéritos ao ajuizamento  do mandado de segurança, ou seja, exigindo os 11 meses atrasados (10/02/2020 a 10/01/2021).

Em 10/03/2023, o Estado-membro foi citado para responder a essa ação de cobrança.

 

Indaga-se: Pedro terá direito de receber os valores atrasados com juros de mora?

SIM, obviamente. Não há motivo algum para se negar os juros de mora considerando que ele foi privado indevidamente de valores que tinha direito.

 

Qual é o termo inicial dos juros de mora? Em ação de cobrança de valores pretéritos ao ajuizamento de anterior mandado de segurança, os juros de mora devem ser contados:

a) a partir da citação da ação de cobrança (10/03/2023); ou

b) a partir da notificação da autoridade coatora no processo de mandado de segurança (10/02/2021)?

Letra b: a partir da notificação da autoridade coatora no processo de mandado de segurança (10/02/2021).

 

O termo inicial dos juros de mora, em ação de cobrança de valores pretéritos ao ajuizamento de anterior mandado de segurança que reconheceu o direito, é a data da notificação da autoridade coatora no mandado de segurança. Isso porque nesse momento considera-se que o devedor foi constituído em em mora, nos termos do art. 405 do Código Civil e do art. 240 do CPC:

Art. 405. Contam-se os juros de mora desde a citação inicial.

 

Art. 240. A citação válida, ainda quando ordenada por juízo incompetente, induz litispendência, torna litigiosa a coisa e constitui em mora o devedor, ressalvado o disposto nos arts. 397 e 398 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) .

 

A impetração de mandado de segurança repercute na ação de cobrança sob os seguintes aspectos:

1) interrompe o prazo prescricional para ajuizamento da ação de cobrança;

2) delimita o pedido formulado, a partir do quinquênio que antecedeu à propositura do writ; e

3) constitui em mora o devedor.

 

A partir do regramento previsto para a constituição em mora do devedor, nas obrigações ilíquidas (art. 405 do Código Civil c/c art. 240 do CPC/2015), extrai-se que a notificação da autoridade coatora em mandado de segurança cientifica formalmente o Poder Público do não cumprimento da obrigação (mora ex persona). É, portanto, irrelevante, para fins de constituição em mora, a via processual eleita, pelo titular do direito, para pleitear a consecução da obrigação.

Desse modo, em se tratando de ação mandamental, cujos efeitos patrimoniais pretéritos deverão ser reclamados administrativamente, ou pela via judicial própria (Súmula 271/STF), a mora é formalizada pelo ato de notificação da autoridade coatora, sem prejuízo da posterior liquidação do quantum debeatur da prestação.

No ponto, cumpre esclarecer que a aludida limitação sumular apenas tem por escopo obstar o manejo do writ of mandamus como substitutivo da ação de cobrança (Súmula 269/STF), em nada interferindo na aplicação da regra de direito material referente à constituição em mora, a qual ocorre uma única vez, no âmbito da mesma relação obrigacional.

A citação válida da Fazenda Pública, entre outros efeitos, tem o condão de constituí-la em atraso no tocante ao direito que a parte autora entende titularizar (art. 405 do Código Civil), sendo desimportantes as eventuais limitações impostas pelo meio processual eleito para fazer valer, concretamente, o bem jurídico em discussão. Entender de modo contrário implicaria admitir que o instrumento processual manejado (no caso, ação de cobrança) é o parâmetro adequado para a fixação do termo inicial dos respectivos juros de mora, em detrimento do arcabouço normativo previsto pelo Código Civil, o qual, via de regra, considera a natureza da obrigação para a constituição formal do devedor em mora.

Portanto, em relação às parcelas pretéritas, cujo direito foi reconhecido, na via mandamental, o termo inicial dos juros de mora, na ação de cobrança, deve ser fixado na data da notificação da autoridade coatora, pois é o momento em que, nos termos do art. 405 do Código Civil c/c art. 240 do CPC, houve a interrupção do prazo prescricional e a constituição em mora do devedor.

 

Em suma:

O termo inicial dos juros de mora, em ação de cobrança de valores pretéritos ao ajuizamento de anterior mandado de segurança que reconheceu o direito, é a data da notificação da autoridade coatora no mandado de segurança, quando o devedor é constituído em mora (arts. 405 do Código Civil e 240 do CPC).

STJ. 1ª Seção. REsp 1.925.235-SP, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 10/5/2023 (Recurso Repetitivo – Tema 1133) (Info 774).


quinta-feira, 22 de junho de 2023

INFORMATIVO Comentado 1094 STF (completo e resumido)

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1094 DO STF


Direito Constitucional

PODER EXECUTIVO

§  É inconstitucional norma de Constituição estadual (ou de Lei orgânica do DF) que atribui à Assembleia Legislativa (ou à Câmara Distrital) o julgamento do Governador por crime de responsabilidade.

 

PODER JUDICIÁRIO

§  São constitucionais os dispositivos incluídos pela EC 20/98 e pela EC 41/2003, que submeteram os magistrados ao Regime de Previdência Social comum aos servidores públicos.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

§  É inconstitucional lei municipal que autoriza a celebração de PPP para a execução de obra pública desvinculada de qualquer serviço público ou social.

 

DIREITO PENAL

INDULTO

§  O decreto de indulto pode ser julgado inconstitucional caso fique demonstrado que tinha por finalidade atingir objetivos de interesse pessoal ao invés do interesse público.


O imóvel penhorado para pagamento da dívida deve ser avaliado necessariamente por perícia, não sendo possível que seu valor seja fixado pelo próprio julgador com base nas regras de experiência comum previstas no art. 375 do CPC

Imagine a seguinte situação hipotética:

O banco ajuizou execução de título extrajudicial (confissão de dívida) contra uma faculdade privada cobrando um débito de R$ 10 milhões.

Citada, a faculdade não pagou nem ofereceu bens à penhora.

A penhora eletrônica de ativos financeiros restou infrutífera.

No curso do processo, a exequente indicou para penhora um imóvel, qual seja, um dos prédios onde funciona a faculdade.

O juízo determinou a penhora do imóvel.

Determinou-se, então, a avaliação do bem.

O Oficial de Justiça responsável pelo cumprimento do mandado avaliou o imóvel em R$ 12 milhões.

O exequente discordou da avaliação e afirmou que o imóvel valeria R$ 8 milhões.

Novamente ouvido, o Oficial de Justiça ressaltou que a avaliação era complexa porque envolve imóvel que funciona como polo universitário, com várias salas de aula, auditórios, áreas comuns etc. Sugeriu, por essa razão, a indicação de um perito para realização da avalição.

O exequente também formulou pedido de designação de perito para que procedesse a avaliação.

A executada afirmou que, em uma execução trabalhista, o imóvel foi avaliado em R$ 15 milhões.

O juiz indeferiu o pedido de realização de perícia, afirmando que determinar uma perícia somente retardar ainda mais a execução, mesmo porque certamente haveria nova impugnação.

O magistrado disse que conhece bem a região e, com fundamento nas regras de experiência comum (art. 375 do CPC), fixou o valor do imóvel penhorado em R$ 11 milhões. Confira o que diz o art. 375 do CPC:

Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

 

Agiu corretamente o magistrado neste caso hipotético? O imóvel penhorado para pagamento da dívida deve ser avaliado necessariamente por perícia ou pode seu valor ser fixado pelo próprio julgador com base nas máximas da experiência de que trata o art. 375 do CPC?

Não agiu corretamente. É necessária perícia neste caso.

De acordo com José Carlos Barbosa Moreira:

“As regras (ou máximas) da experiência são noções que refletem um conhecimento reiterado, acumulado a partir de uma série de acontecimentos semelhantes, com base na qual se pode afirmar, a partir de um raciocínio indutivo, que determinada coisa acontecerá de determinada forma no futuro ou que se passa, provavelmente, de determinada forma” (Regras da experiência e conceitos juridicamente indeterminados. Temas de direito processual - segunda série. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 62).

 

Tradicionalmente, as regras da experiência exercem diversas funções no processo. Auxiliam, por exemplo, o juiz a entender e interpretar as alegações e o depoimento das partes para melhor compreender certas palavras e expressões em ambientes e circunstâncias específicos ou o significado peculiar de determinados termos segundo o lugar ou o dialeto do entrevistado.

Sob a mesma perspectiva, também se pode afirmar que elas auxiliam na aplicação de enunciados normativos abertos, informando e esclarecendo conceitos jurídicos indeterminados como “perigo de dano” ou “animal perigoso”.

Ainda auxiliam na formação do juízo de verossimilhança essencial ao convencimento do julgador.

Dentro do sistema de persuasão racional, as regras de experiência pavimentam a construção do raciocínio lógico e estruturado que põe limites à atividade jurisdicional e permite prolação de uma decisão verdadeiramente fundamentada.

No entanto, as regras da experiência, muito embora constituam um conhecimento próprio do juiz, não se confundem com o conhecimento pessoal que ele tem a respeito de algum fato concreto. Elas designam um conhecimento já cristalizado na cultura do homem médio, um patrimônio comum da coletividade que, precisamente em razão disso (a exemplo do que ocorre com os fatos notórios) dispensa produção probatória.

O juiz pode valer-se de um conhecimento empírico ou científico que já caiu em domínio público para julgar as causas que se lhe apresentam, porque em relação a essas questões, não há necessidade de produzir prova. Não está autorizado, porém, a julgar com base no conhecimento pessoal que possui a respeito de algum fato específico, obtido sem o crivo do contraditório. E é justamente porque conhecimentos técnicos não universalizados demandam prova específica, mesmo constituindo um “saber privado do juiz”, que a parte final do art. 375 do CPC adverte sobre a necessidade de perícia em alguns casos:

Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

 

No caso dos autos, não há como afirmar que o valor do bem penhorado, considerando suas dimensões, localização e conformação específica, constitui matéria de conhecimento público.

O homem médio não tem condições de afirmar se o imóvel em questão vale R$ 12 milhões, como indicado pelo Oficial de Justiça, R$ 15 milhões, como apurado na Justiça do Trabalho, ou R$ 8 milhões, como sustentado pelo exequente.

A mera utilização, em reforço de argumentação, de que o valor atribuído correspondia com aquele considerado pela Prefeitura como valor venal do bem é insuficiente para dispensar a realização de perícia. Só se autoriza a utilização do conhecimento técnico ou científico pelo juiz, com dispensa da perícia, quando o fato se fundar em máxima de experiência de aceitação geral, o que não é o caso.

Conquanto se possa admitir que o julgador, por conhecer o mercado imobiliário de determinada região e também o imóvel penhorado, pudesse saber o seu real valor, não há como afirmar que essa seja uma informação de conhecimento público.

Impossível sustentar, nesses termos, que bem imóvel possa ser avaliado sem produção de prova pericial, pelo próprio julgador, com base no art. 375 do CPC.

 

Em suma:


INFORMATIVO Comentado 774 STJ (completo e resumido)

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 774 DO STJ


DIREITO CONSTITUCIONAL

MINISTÉRIO PÚBLICO

§  A norma do art. 36, III, “b”, da Lei 8.112/90 (remoção por motivo de doença em pessoa da família) não pode ser aplicada de maneira subsidiária aos membros do MPU.

 

DIREITO CIVIL

DIREITOS REAIS

§  O direito de tapagem disposto do art. 1.297 do Código Civil prevê o direito ao compartilhamento de gastos decorrentes da construção de muro comum aos proprietários lindeiros, não sendo necessário prévio acordo para se exigir a divisão das despesas.

 

LOCAÇÃO DE IMÓVEIS URBANOS

§  A via processual adequada para a retomada, pelo proprietário, da posse direta de imóvel locado é a ação de despejo, não servindo para esse propósito o ajuizamento de ação possessória.

 

DIREITO DO CONSUMIDOR

CONSUMIDOR

§  É possível o reconhecimento da figura do consumidor por equiparação na hipótese de danos individuais decorrentes do exercício de atividade de exploração de potencial hidroenergético causadora de impacto ambiental, em virtude da caracterização do acidente de consumo.

 

DIREITO EMPRESARIAL

CÉDULA DE CRÉDITO RURAL

§  A existência de cláusula/contrato de seguro relacionado à cédula de crédito rural não retira os atributos de exequibilidade próprios do título.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

COMPETÊNCIA

§  A competência para julgamento de ação de indenização por danos morais, decorrente de ofensas proferidas em rede social, é do foro do domicílio da vítima, em razão da ampla divulgação do ato ilícito.

 

PROVAS

§  O imóvel penhorado para pagamento da dívida deve ser avaliado necessariamente por perícia, não sendo possível que seu valor seja fixado pelo próprio julgador com base nas regras de experiência comum previstas no art. 375 do CPC.

 

PROCESSO COLETIVO

§  Não é cabível promover a liquidação da sentença coletiva no foro do domicílio do substituto processual se este não for o domicílio dos beneficiários ou o foro em que o título foi proferido.

 

 

MANDADO DE SEGURANÇA

§  Em ação de cobrança de valores pretéritos ao ajuizamento de anterior mandado de segurança, os juros de mora devem ser contados a partir da citação da ação de cobrança ou a partir da notificação da autoridade coatora no writ?

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

§  Não há violação ao foro por prerrogativa de função se o membro do MP de 1ª instância instaura inquérito civil para apurar eventual ato de improbidade administrativa, ainda que posteriormente ofereça denúncia criminal pelos mesmos fatos.

 

PROVAS

§  O simples fato de o cão farejador ter sinalizado que haveria drogas na residência não é suficiente para se autorizar o ingresso na casa do suspeito.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

CRÉDITO TRIBUTÁRIO

§  A entrega da DCTF representa constituição do crédito tributário.

 

ICMS

§  O ICMS compõe a base de cálculo do IRPJ e da CSLL, quando apurados na sistemática do lucro presumido.