segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJRJ

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJRJ.

Bons estudos.



sábado, 26 de agosto de 2023

Para que haja a denúncia de um tratado internacional é necessária a aprovação do Congresso Nacional?

Organização Internacional do Trabalho (OIT)

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência das Nações Unidas, criada em 1919, pelo Tratado de Versalhes, da qual o Brasil foi signatário.

“A missão da OIT é promover oportunidades para que homens e mulheres possam ter acesso a um trabalho decente e produtivo, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade.” (https://www.ilo.org/brasilia/conheca-a-oit/lang--pt/index.htm)

A OIT formula normas internacionais do trabalho, que assumem a forma de convenções e recomendações.

As convenções, quando ratificadas por um país membro, são vinculantes (obrigatórias).

As recomendações, por sua vez, servem apenas como diretrizes, não sendo vinculantes (softlaw).

Essas normas tratando sobre uma ampla gama de tópicos relacionados ao trabalho, incluindo condições de trabalho, segurança no trabalho, direito à organização, negociação coletiva, erradicação do trabalho forçado e infantil, entre outros.

 

A Convenção da OIT é considerada um tratado internacional?

SIM.

“As convenções da OIT são tratados multilaterais que não se diferenciam de qualquer outro tratado internacional, consistindo em acordos que adotam a forma escrita e que vinculam juridicamente os Estados que deles façam parte. Encontram-se abertas à ratificação de qualquer Estado membro da Organização.” (PORTELA Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 572)

 

Convenção 158 OIT

A Convenção nº 158 da OIT trata sobre o término da relação de trabalho por iniciativa do empregador, estabelecendo parâmetros de proteção ao trabalhador contra a despedida arbitrária ou sem justa causa. O documento foi aprovado na 68ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em 2 de junho de 1982, em Genebra, entrando em vigor no plano internacional em 23 de novembro de 1985 e vindo a ser ratificada por 36 países, entre eles o Brasil.

 

Denúncia de um tratado

“A denúncia é o ato unilateral pelo qual uma parte em um tratado anuncia sua intenção de se desvincular de um compromisso internacional de que faça parte, desobrigando-se de cumprir as obrigações estabelecidas em seu bojo sem que isso enseje a possibilidade de responsabilização internacional.

Logicamente, a denúncia extingue o tratado bilateral. Nos atos multilaterais, a denúncia implica apenas a retirada da parte do acordo, cujos efeitos cessam para o denunciante, mas permanecem para os demais signatários. Cabe destacar que autores como Ricardo Seitenfus chamam a denúncia de compromissos multilaterais de ‘retirada’.

A denúncia isenta o Estado signatário de cumprir as normas dos tratados. Entretanto, é ato que produz efeitos ex nunc, não excluindo as obrigações estatais relativas a atos ou omissões ocorridas antes da data em que venha a produzir efeitos.” (PORTELA Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 128)

 

Denúncia da Convenção 158 da OIT

Em 1996, o Presidente da República editou o Decreto nº 2.100/96, por meio do qual fez a denúncia da Convenção nº 158, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Veja o que disse o Decreto:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, torna público que deixará de vigorar para o Brasil, a partir de 20 de novembro de 1997, a Convenção da OIT nº 158, relativa ao Término da Relação de Trabalho por Iniciativa do Empregador, adotada em Genebra, em 22 de junho de 1982, visto haver sido denunciada por Nota do Governo brasileiro à Organização Internacional do Trabalho, tendo sido a denúncia registrada, por esta última, a 20 de novembro de 1996.

 

ADC

Surgiram questionamentos a respeito da validade desse Decreto. Entidades de proteção ao trabalhador argumentaram que ele seria inconstitucional, porque para a denúncia de um tratado, seria necessária não apenas a iniciativa do Presidente da República, mas também a aprovação do Congresso Nacional. Como não houve, no caso concreto, a aprovação, essa denúncia teria descumprido o texto constitucional.

Diante desse cenário de controvérsia judicial relevante, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) e a Confederação Nacional do Transporte (CNT) propuseram ADC em face do Decreto nº 2.100/1996.

Argumentaram que o Decreto nº 2.100/96 seria constitucional porque o Presidente da República possui a prerrogativa de denunciar tratados, convenções e atos internacionais, prescindindo, para tanto, de anuência do Congresso Nacional.

 

Para que haja a denúncia de um tratado internacional é necessária a aprovação do Congresso Nacional?

SIM.

A aprovação e a internalização de tratados internacionais estão disciplinadas expressamente na Constituição Federal:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

(...)

VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;

 

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;

(...)

 

Por outro lado, a denúncia e a respectiva exclusão dos tratados internacionais não foram tratadas de forma expressa no texto constitucional.

Mesmo diante desse silêncio do legislador constituinte, o STF concluiu que a exclusão dos tratados internacionais incorporadas ao ordenamento jurídico interno não pode ocorrer por vontade exclusiva do Presidente da República, sob pena de vulnerar o princípio democrático, a separação de Poderes, o sistema de freios e contrapesos e a própria soberania popular. Assim, uma vez ingressado no ordenamento jurídico pátrio mediante referendo do Congresso Nacional, a supressão do tratado internacional pressupõe também a chancela popular por meio de seus representantes eleitos.

Os tratados promulgados se transformam em legislação nacional e, assim sendo, sua revogação deve se dar por norma equivalente e posterior.

É dizer, por paralelismo, a revogação de normas que foram regularmente aprovadas pelos representantes do povo só pode observar o mesmo procedimento, pois, do contrário, o ato careceria de legitimidade e se traduziria em antidemocrático. Aliás, é intrínseco ao Estado Democrático de Direito que não apenas os cidadãos, mas também os titulares do Poder se submetam às leis, as quais não podem ser alteradas ou simplesmente revogadas unilateralmente, sem observância do devido processo legislativo.

Destarte, se é exigível a anuência do Parlamento para que um compromisso internacional assumido pelo chefe do Poder Executivo seja vinculante perante a ordem jurídica interna, o ato de desobrigar-se dessa

avença, de forma a alterar novamente o direito vigente, requer, necessariamente, a chancela congressual.

Também é essa a conclusão de Valerio de Oliveira Mazzuoli , que vislumbra a questão sob a óptica do “comando constitucional (art. 1º, parágrafo único) segundo o qual todo o poder emana do povo, incluindo-se nessa categoria também o poder de denunciar tratados ” (MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público . Rio de Janeiro: Editora Forense, 14. ed., 2021, p. 267).

A importância da participação do Poder Legislativo na denúncia de tratados torna-se ainda mais evidente quanto se tem em perspectiva normas de proteção aos direitos humanos, como é o caso da Convenção nº 158 da OIT, cujo intuito é a proteção dos trabalhadores contra a dispensa arbitrária, o que figura na Constituição Federal como um direito social (art. 7º, inciso I).

 

O STF fixou a seguinte tese a respeito do tema:

 

Isso significa que a denúncia da Convenção 158 da OIT precisava ter sido aprovada pelo Congresso Nacional?

SIM.

 

Isso significa então que, com a decisão do STF, a Convenção 158 da OIT voltou a produzir efeitos no Brasil?

NÃO.

O STF decidiu modular os efeitos da decisão e, desse modo, o entendimento acima explicado deve ser aplicado somente a partir da publicação da ata do presente julgamento, mantendo-se a eficácia das denúncias realizadas até esse marco temporal.

Assim, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, o STF decidiu que deveria ser mantida a validade do Decreto 2.100/1996, por meio do qual o Presidente da República tornou pública a denúncia da Convenção 158 da OIT.

Embora, à luz do ordenamento constitucional, a denúncia de tratados internacionais dependa de anuência do Congresso Nacional para surtir efeitos internamente, a prática institucional resultou em uma aceitação tácita da denúncia unilateral por reiteradas vezes e em períodos variados da história nacional, de modo que se consubstanciou em costume consolidado pelo tempo e que vinha sendo adotado de boa-fé e com justa expectativa de legitimidade, eis que, até então, não foi formalmente invalidado.

 

Em decorrência do próprio Estado Democrático de Direito e de seu corolário, o princípio da legalidade, é necessária a manifestação de vontade do Congresso Nacional para que a denúncia de um tratado internacional produza efeitos no direito doméstico, razão pela qual é inconstitucional a denúncia unilateral pelo Presidente da República. Contudo, esse entendimento deve ser aplicado somente a partir da publicação da ata do presente julgamento, mantendo-se a eficácia das denúncias realizadas até esse marco temporal.

STF. Plenário. ADC 39/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 19/6/2023 (Info 1099).

 

Com base nesses entendimentos, o Plenário, por maioria, julgou procedente a ação para manter a validade do Decreto nº 2.100/1996 e formular apelo ao legislador “para que elabore disciplina acerca da denúncia dos tratados internacionais, a qual preveja a chancela do Congresso Nacional como condição para a produção de efeitos na ordem jurídica interna, por se tratar de um imperativo democrático e de uma exigência do princípio da legalidade”.


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

INFORMATIVO Comentado 1099 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

þ Baixar versão COMPLETA:



 



þ Baixar versão RESUMIDA:



 



Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1099 DO STF


Direito Constitucional

DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

§  Lei estadual pode obrigar as empresas do setor têxtil a colocarem etiquetas em braile ou outro meio acessível nas peças de vestuário para atender a pessoas com deficiência visual.

§  É inconstitucional norma estadual que restringe o conceito de pessoas com deficiência (PcD) e como contraria as regras gerais sobre o tema previstas no Estatuto da Pessoa com Deficiência.

 

DIREITO NOTARIAL E REGISTRAL

REGIME JURÍDICO

§  Apenas os delegatários do serviço notarial e de registro podem concorrer em processo de remoção para serventias extrajudiciais; assim, o titular do Ofício do Distribuidor não pode participar dessa remoção.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

§  É inconstitucional o emprego de verbas do FUNDEF/FUNDEB para pagamento de honorários advocatícios contratuais; é possível utilização dos juros de mora inseridos na condenação relativa a repasses de verba do FUNDEF para pagamento dos honorários contratuais.

 

DIREITO FINANCEIRO

FUNDO DE PARTICIPAÇÃO

§  É inconstitucional norma de lei complementar que distribui os recursos do FPE entre os entes da Federação sem a devida promoção do respectivo equilíbrio socioeconômico.

 

DIREITO INTERNACIONAL

TRATADOS INTERNACIONAIS

§  A denúncia pelo Presidente da República de tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, para que produza efeitos no ordenamento jurídico interno, não prescinde da sua aprovação pelo Congresso


Lei estadual pode obrigar as empresas do setor têxtil a colocarem etiquetas em braile nas peças de vestuário que produzirem?

O caso concreto foi o seguinte:

No Piauí, foi editada a Lei nº 7.465/2021, que obriga as empresas do setor têxtil a colocarem etiquetas em braile nas peças de vestuário com o objetivo de atender as pessoas com deficiência visual

Confira a redação da Lei, no que importa:

Art. 1º Ficam as empresas do setor têxtil obrigadas a identificarem as peças de vestuário pelas mesmas produzidas com etiquetas em braile ou outro meio acessível que atenda as pessoas com deficiência visual.

§ 1º As etiquetas de que trata o caput deste artigo deverão conter, no mínimo, informações quanto a cor e tamanho da peça.

§ 2º Fica vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza pelas empresas do setor têxtil para o cumprimento do disposto nesta Lei.

Art. 2º O descumprimento ao que dispõe a presente Lei acarretará na aplicação de multa no valor de 2.000 (dois mil) UFIR's-PI (Unidade Fiscal de Referência do Estado do Piauí) (...)

 

ADI

A Confederação Nacional da Indústria (CNI) ajuizou ADI contra essa lei.

Defendeu que a norma geraria insegurança jurídica considerando que fala em “empresas do setor têxtil”, sem definir claramente quem está abrangido pela expressão.

Sob o prisma formal, a autora alegou que a lei afrontou a competência privativa da União para legislar sobre o comércio interestadual e exterior, já que, dependendo da interpretação da norma, limitou a participação competitiva das indústrias têxteis do Estado do Piauí no mercado nacional de vestuários ou impôs alteração do processo produtivo às indústrias sediadas em outros Estados da Federação e em outros países que queiram comercializar seus produtos no Estado do Piauí.

Argumentou, ainda, que a previsão violou os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa.

 

O STF concordou com os argumentos da autora? Essa Lei é inconstitucional?

NÃO.

Os princípios da livre concorrência e da livre iniciativa possuem natureza instrumental. Isso significa que são meios para a consecução de outros objetivos.

A lei editada está em harmonia com:

• os objetivos fundamentais da República (art. 3º, I, III e IV, CF/88);

• a garantia da existência digna de todos, conforme os ditames da justiça social (art. 170, caput, CF/88); e

• a promoção da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), especialmente das pessoas com deficiência.

Confira os dispositivos constitucionais:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

(...)

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(...)

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana;

 

Logo, a lei é materialmente constitucional.

Também não há inconstitucionalidade sob o ponto de vista formal.

A competência para legislar sobre comércio interestadual e exterior possui natureza genérica, o que permite que os entes federados, dentro das respectivas esferas, legislem de forma específica e conforme o contexto local.

Na espécie, a norma estadual impugnada está relacionada com a competência concorrente para legislar sobre produção e consumo (art. 24, V, CF/88) e sobre proteção e integração social das pessoas com deficiência (art. 24, XIV, CF/88):

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(...)

V - produção e consumo;

(...)

XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

 

Em suma:

É constitucional lei estadual que obriga empresas do setor têxtil a identificarem as peças de roupa com etiquetas em braile ou outro meio acessível que atenda as pessoas com deficiência visual.

Essa lei não viola os princípios da livre iniciativa (arts. 1º, IV; e 170, “caput”), da livre concorrência (art. 170, IV), da propriedade privada (art. 170, II) e da isonomia (arts. 5º, “caput”; e 19, III).

A norma também não invade a competência privativa da União para legislar sobre comércio interestadual (art. 22, VIII).

STF. Plenário. ADI 6.989/PI, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 19/6/2023 (Info 1099).

 

Vale ressaltar, no entanto, que os efeitos da referida norma devem se exaurir nos limites territoriais do Estado do Piauí, sob pena de afetar, de forma inconstitucional, o mercado interestadual.

Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, julgou parcialmente procedente a ação para declarar a nulidade parcial sem redução de texto da Lei nº 7.465/2021 do Estado do Piauí, a fim de excluir do seu âmbito de aplicabilidade a indústria têxtil não sediada no referido ente federado.


quinta-feira, 24 de agosto de 2023

A previsão legal de manutenção da qualidade de segurado, contida no art. 15, I, da Lei 8.213/91, inclui os benefícios deferidos por decisão de caráter provisório, ainda que seja futuramente revogada

Imagine a seguinte situação hipotética:

No ano de 2010, Regina ajuizou ação contra o INSS pedindo a concessão de aposentadoria por invalidez.

Em 24/01/2011, o juiz deferiu tutela antecipada determinando que, enquanto o processo não terminasse, Regina deveria ficar recebendo auxílio-doença.

Ocorre que, posteriormente, em 22/12/2015, o magistrado proferiu sentença julgando o pedido improcedente e, consequentemente, revogou a tutela provisória anteriormente deferida. Essa decisão transitou em julgado.

Desde a cessação do referido benefício previdenciário, Regina não teve mais condições de trabalhar, tendo havido uma piora em seu estado de saúde, o que foi comprovado por laudo pericial.

Em 2016, Regina ajuizou nova ação na qual pleiteou novamente a concessão da aposentadoria por invalidez ou, subsidiariamente, o auxílio-doença, argumentando o agravamento do seu estado de saúde.

O juiz julgou o pedido parcialmente procedente para conceder apenas o auxílio-doença.

O INSS recorreu sustentando a ausência da qualidade de segurada, uma vez que a última contribuição ocorreu em 2010. Depois dessa data, ela não mais trabalhou e, portanto, não pagou contribuições previdenciárias. A autarquia alegou que a primeira ação foi julgada improcedente. Assim, o auxílio-doença que Regina recebeu de 2011 a 2015 não poderia ser computada para manter a sua qualidade de segurada.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região negou provimento ao recurso do INSS, reconhecendo que, mesmo Regina não tendo trabalhado depois de 2010, ela continuou com a qualidade de segurada já que esteve gozando auxílio-doença entre 02/02/2011 e 22/12/2015, concedido por força de tutela antecipada no feito anteriormente ajuizado, mais tarde julgado improcedente.

Assim, para o TRF, deveria ser aplicado o art. 15, I, da Lei nº 8.213/91:

Art. 15. Mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições:

(...)

I - sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício, exceto do auxílio-acidente;

 

Inconformado, o INSS interpôs recurso especial reiterando, em síntese, os argumentos da apelação.

 

A decisão do TRF foi mantida pelo STJ?

SIM.

A tutela antecipada ou de urgência é um provimento judicial provisório e reversível (art. 273, § 2º, do CPC/1973 e arts. 296 e 300, § 3º, do CPC/2015). Por essa razão, em regra, a revogação da decisão que concede o mandamento provisório produz efeitos imediatos e retroativos, impondo o retorno à situação anterior ao deferimento da medida, cujo ônus deve ser suportado pelo beneficiário da tutela.

Como o cumprimento provisório ocorre por iniciativa e responsabilidade da parte autora, cabe a esta, em regra, suportar o ônus decorrente da reversão da decisão precária, na medida em que, a rigor, pode, de antemão, prever os resultados de eventual cassação da medida, escolher sujeitar-se a tais consequências e até mesmo trabalhar previamente para evitar ou mitigar os impactos negativos no caso de reversão.

Essa regra (de total reversibilidade/restituição ao estado anterior), porém, não pode ser aplicada em relação ao segurado em gozo de benefício previdenciário por incapacidade laborativa, concedido por meio de tutela de urgência posteriormente revogada, na medida em que, nesses casos, o ônus (de perder a condição de segurado) não é completamente previsível, evitável ou mitigável.

Portanto, não é de todo previsível porque o art. 15, I, da Lei nº 8.213/91 assegura que, independentemente de contribuições, quem está em gozo de benefício (qualquer que seja a natureza da concessão, porque o dispositivo não diferenciou), mantém a qualidade de segurado, sem limite de prazo, isto é, não seria razoável exigir do segurado de boa-fé considerar que tal previsão expressa fosse afastada automaticamente na ocasião da revogação da medida de caráter precário.

Ademais, o ônus (de perder a qualidade de segurado) não é mitigável ou evitável, pois enquanto o segurado está em gozo de benefício previdenciário por incapacidade laborativa, concedido por meio de tutela de urgência, não pode recolher contribuições previdenciárias, uma vez que, em tal condição, não se insere na previsão dos arts. 11 ou 13 da Lei nº 8.213/91.

 

Em suma:


quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Diante de recurso de apelação com base no art. 593, III, d, do CPP, é imprescindível que o Tribunal avalie a prova dos autos a fim perquirir se há algum elemento que ampare o decidido pelos jurados

Como funciona a apelação contra a decisão do Tribunal do Júri?

O Júri é uma instituição voltada a assegurar a participação cidadã na Justiça Criminal. Como forma de valorizar essa participação, a Constituição consagrou o princípio da soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF/88).

Em decorrência desse princípio, o recurso contra a decisão de mérito dos jurados é a apelação prevista no art. 593, III, “d”, do CPP (decisão manifestamente contrária à prova dos autos).

Se essa apelação for provida pelo TJ (ou TRF), o réu será submetido – uma única vez – a novo julgamento pelos jurados.

Assim, o Tribunal de 2ª instância (togado) só poderá dar provimento à apelação com base neste fundamento uma única vez.

Explicando melhor: imagine que o réu foi condenado pelo júri. A defesa interpôs apelação. O TJ determinou que seja feito um novo júri. Se os jurados (que serão outros sorteados) decidirem novamente que o réu deverá ser condenado, ainda que a defesa recorra, o Tribunal não mais poderá dar provimento à apelação sob o fundamento de que a decisão do júri foi manifestamente contrária à prova dos autos.

Dito de outro modo, o argumento do Tribunal de que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos só pode ser utilizado uma única vez.

Nesse sentido, veja o que diz o § 3º do art. 593:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

(...)

III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:

(...)

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

(...)

§ 3º Se a apelação se fundar no nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

 

Imagine agora a seguinte situação adaptada:

João e Antônio tiveram um desentendimento dentro de uma casa noturna.

João já saía do estabelecimento quando foi chamado por Antônio para uma briga, em via pública.

João retornou e efetuou um disparo de arma de fogo para o alto, no intuito de intimidar Antônio, que ia em sua direção.

Antônio, contudo, prosseguiu em direção ao seu rival.

João disparou duas vezes contra Antônio, atingindo-lhe a perna e o abdômen, o que o fez cair no chão, ainda com vida.

Ato contínuo, mesmo depois de Antônio estar caído no chão, João efetuou outros dois disparos, os quais atingiram o crânio da vítima, causando-lhe a morte.

Após a regular instrução do feito, o réu foi pronunciado para ser julgado pelo Tribunal do Júri, como incurso nas sanções do art. 121, §2º, incisos II, III e IV, do Código Penal (homicídio qualificado).

O advogado suscitou em plenário as teses da legítima defesa e do eventual excesso culposo.

Após os debates, foram formulados os seguintes quesitos aos jurados:

Quesito: no dia xxx, às yyy, a vítima Antônio foi atingida com disparos de arma de fogo, sofrendo as lesões descritas no auto de necropsia, que causaram sua morte? O júri respondeu SIM com mais de três votos.

Quesito: o réu João efetuou os disparos de arma de fogo que atingiram a vítima? O júri respondeu SIM com mais de três votos.

Quesito: o réu João, ao assim agir, quis matar a vítima? O júri respondeu SIM com mais de três votos.

Quesito: o jurado absolve o réu João? O júri respondeu NÃO com mais de três votos.

Quesito: o réu João, ao repelir injusta agressão, usou moderadamente dos meios necessários para tanto? O júri respondeu SIM com mais de três votos. (obs: isso significa que os jurados reconheceram a legítima defesa)

Quesito: o réu João, ao se exceder, agiu dolosamente? O júri respondeu NÃO com mais de três votos.

 

Ao fim do julgamento pelo Tribunal do Júri, os jurados responderam que o réu agiu em legítima defesa, mas reconheceram que houve excesso (art. 23, parágrafo único, do CP):

Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Excesso punível

Parágrafo único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

 

Conforme se vê pela redação do parágrafo único, o excesso pode ser doloso ou culposo.

No caso concreto, os jurados responderam que o excesso foi culposo.

 

Apelação

O Ministério Público não concordou com o resultado e interpôs apelação, alegando que os jurados reconheceram o excesso culposo em legítima defesa sem qualquer respaldo nos autos, eis que o primeiro disparo contra a vítima já teria sido suficiente para deixá-la estirada ao solo, cessando a agressão. Logo, para o Parquet, os demais disparos foram proferidos com intenção de matar, tendo havido, portanto, excesso doloso.

O Tribunal de Justiça negou provimento ao apelo, argumentando que os “jurados julgam por íntima convicção, sem a necessidade de fundamentar suas decisões. Deste modo, podem utilizar, para seus convencimentos, quaisquer provas contidas nos autos, ainda que não sejam as mais verossímeis”.

 

Recurso especial

O Ministério Público interpôs recurso especial alegando que o Tribunal de Justiça não apontou qualquer prova produzida nos autos que eventualmente amparasse o que foi decidido pelo Conselho de Sentença.

 

A fundamentação utilizada pelo Tribunal de Justiça foi adequada e suficiente para negar provimento ao recurso do Ministério Público?

NÃO.

Não há dúvida de que os jurados atuantes no Tribunal do júri julgam por íntima convicção, pois não precisam justificar as razões pelas quais responderam de um modo ou de outro os quesitos formulados.

Todavia, essa premissa não impede que o Tribunal de Justiça exerça controle sobre a decisão dos jurados, sob pena de tornar letra morta o contido no art. 593, III, “d”, do CPP, que expressamente estipula cabimento de apelação contra decisão de jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Nesse sentido, é indispensável que o Tribunal de Justiça, ao julgar a apelação interposta, avalie a prova dos autos, com fim de perquirir se há algum elemento que ampare o decidido pelos jurados.

Trata-se de providência objetiva de cotejo do veredicto com a prova dos autos, sendo prescindível qualquer ingresso na mente dos jurados.

Vale ressaltar que, havendo duas versões jurídicas sobre os fatos, ambas amparadas no acervo probatório, deve ser preservada a decisão dos jurados, em atenção à soberania dos veredictos. No entanto, se não houver nenhuma prova que ampare a decisão dos jurados, o júri deve ser anulado.

No caso concreto, o apelo da acusação fez referência expressa a elementos do acervo probatório dos autos para concluir que houve excesso doloso, razão pela qual a decisão dos jurados seria manifestamente contrária à prova dos autos. Não é o caso de absolvição por clemência. Os jurados não absolveram o interessado, pois responderam negativamente ao quesito genérico. Houve, sim, reconhecimento de legítima defesa e o reconhecimento de seu excesso. O que se discute é se esse excesso foi culposo ou doloso.

Segundo o MP, os jurados reconheceram o excesso culposo em legítima defesa sem nenhum respaldo nos autos. Considerou-se que o primeiro disparo contra a vítima já teria sido suficiente para deixá-la estirada ao solo na posição decúbito ventral, cessando a agressão. Quanto aos demais disparos, foram justificados pelo animus necandi. Os depoimentos de testemunhas presenciais, bem como fotografias e laudo pericial afastaram cabalmente a tese do réu apresentada aos jurados, segundo a qual apenas efetuou outros disparos porque a vítima caiu segurando suas pernas.

Apesar disso, o Tribunal de Justiça, ao julgar a apelação, não citou nenhuma prova para afastar a alegação do MP de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos. Em outras palavras, o TJ precisava ter demonstrado que o veredicto dos jurados possui algum mínimo embasamento na prova dos autos. Não é suficiente que o TJ diga que os jurados julgam por íntima convicção já que a absolvição não foi por clemência.

Por essa razão, o STJ determinou que o TJ julgue novamente o recurso e, com amparo nas provas produzida nos autos, diga se o a decisão dos jurados é, ou não, manifestamente contrária à prova dos autos.

 

Em suma:


terça-feira, 22 de agosto de 2023

O exercício do direito ao silêncio não pode servir de fundamento para descredibilizar o acusado nem para presumir a veracidade das versões sustentadas por policiais, sendo imprescindível a superação do standard probatório próprio do processo penal a respaldá-las

Imagine a seguinte situação adaptada:

Policiais realizavam patrulhamento de rotina em local conhecido como ponto de venda de drogas, quando avistaram João em atitude suspeita, pois ele se agachou e se escondeu atrás de um veículo estacionado, após notar a presença da viatura policial.

Próximo ao local da abordagem, os policiais encontraram uma sacola plástica que continha entorpecentes destinados à venda.

O suspeito foi conduzido à delegacia e permaneceu em silêncio diante da autoridade policial.

João foi denunciado pelo crime de tráfico de drogas.

Em depoimento, os policiais responsáveis pela prisão não se lembravam com detalhes do que aconteceu, onde a sacola foi encontrada, qual era a droga nem a quantidade apreendida. Relataram que avistaram o acusado descartando as drogas e que ao ser preso, admitiu que, por estar em dificuldades financeiras, resolveu traficar.

Interrogado em juízo, o réu negou o tráfico de drogas, dizendo que se dirigiu ao local para comprar entorpecente para seu uso e, ante a aproximação da viatura policial, se abaixou para não ser visto, enquanto o traficante correu para dentro de uma casa e o entorpecente foi localizado junto ao portão daquela casa.

A magistrada entendeu que os fatos provados no curso do processo eram compatíveis com a hipótese fática trazida pela defesa, de que o réu não traficava, senão que teria acabado de comprar droga para consumo próprio. Ela sinalizou que os testemunhos dos policiais deixaram lacunas que impuseram a absolvição do réu.

O Ministério Público interpôs apelação, pugnando pela condenação do réu nos termos da denúncia.

O Tribunal de Justiça, ao dar provimento ao recurso do MP e estabelecer a condenação do réu, entendeu suficientemente demonstrada a veracidade dos fatos narrados na denúncia e concluiu que a negativa judicial prestada em depoimento era frágil, em razão do silencio do réu perante a autoridade policial.

O trecho do acórdão foi o seguinte: 

“Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria apresentado perante a autoridade policial, quando, entretanto, valeu-se do direito constitucional ao silêncio, comportamento que, se por um lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera tentativa de se livrar da condenação”.

 

A defesa interpôs recurso especial alegando, em síntese, que houve “violação da garantia legal ao silêncio, prevista no 186 do Código de Processo Penal, pois se consignou no acórdão condenatório que o silêncio do réu na fase policial faz prova contra ele e leva a ausência de credibilidade de sua negativa de autoria em juízo”.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM.

O direito ao silêncio, enumerado na Constituição Federal como direito de permanecer calado, é sucedâneo lógico do princípio nemo tenetur se detegere. Nesse sentido, é equivocado qualquer entendimento de que se conclua que seu exercício possa acarretar alguma punição ao acusado. A pessoa não pode ser punida por realizar um comportamento a que tem direito.

O art. 5º, inc. LXIII, da CF/88, não deixa dúvidas quanto à não recepção do art. 198 do CPP, quando diz que o silêncio do acusado, ainda que não importe em confissão, poderá se constituir elemento para a formação do convencimento do juiz:

Art. 5º (...)

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

 

CPP

Art. 198.  O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz. (não recepcionado pela CF/88)

 

Esse reprovável subterfúgio processual foi enfrentado pelo STJ no julgamento do HC 330.559/SC. Consta, na ementa daquela decisão que:

Na verdade, qualquer pessoa ao confrontar-se com o Estado em sua atividade persecutória, deve ter a proteção jurídica contra eventual tentativa de induzir-lhe à produção de prova favorável ao interesse punitivo estatal, especialmente se do silêncio puder decorrer responsabilização penal do próprio depoente.

STJ. 6ª Turma. HC 330559/SC, Rel. Min. Rogerio Schietti, DJe 9/10/2018.

 

No caso, a absolvição em primeira instância foi revista pelo Tribunal que, acolhendo a apelação interposta pela acusação, condenou o réu pela prática do delito incurso no art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006.

Na linha argumentativa desenvolvida a negativa do réu em juízo quanto à comissão do delito seria estratégia para evitar a condenação. As exatas palavras utilizadas no acórdão recorrido foram que: “Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria apresentado perante a autoridade policial, quando entretanto, valeu-se do direito constitucional ao silêncio, comportamento que, se por um lado não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória negativa é mera tentativa de se livrar da condenação”. Houve, portanto, violação direta ao art. 186 do CPP.

O raciocínio enviesado que concedeu inequívoco valor de verdade à palavra dos policiais e que interpretou a negativa do acusado em juízo como mentira, teve o silêncio do réu em sede policial como ponto de partida. A instância de segundo grau erroneamente preencheu o silêncio do réu com palavras que ele pode nunca ter pronunciado, já que, do ponto de vista processual-probatório, tem-se apenas o que os policiais afirmaram haver escutado, em modo informal, ainda no local do fato.

Decidiu o Tribunal estadual, então, que, se de um lado havia razões para crer que o réu mentia em juízo, de outro, estavam os desembargadores julgadores autorizados a acreditar que os policiais é que traziam relatos correspondentes à realidade, ao afirmarem:

1) que avistaram o acusado descartando as drogas que foram encontradas no chão;

2) que a balança de precisão que estava no interior de um carro abandonado seria do acusado e, adicionalmente;

3) que ainda na cena do crime, o recorrente haveria confessado informalmente que, sim, traficava.

 

Essa narrativa toma como verídica uma situação em que o investigado ofereceu àqueles policiais, desembaraçadamente, a verdade dos fatos, em retribuição à empatia com que fora tratado por eles; como se houvesse confidenciado um segredo a novos amigos, e não confessado a prática de um delito a agentes da lei. Se é que de fato o acusado confirmou para os policiais que traficava por passar por dificuldades financeiras, é ingenuidade supor que o tenha feito em cenário totalmente livre da mais mínima injusta pressão.

O Tribunal incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, seja por excesso de credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, seja a injustiça epistêmica cometida contra o réu, ao lhe conferir credibilidade justamente quando menos teve oportunidade de atuar como sujeito de direitos.

Nesse contexto, é preciso reconhecer que, se se pretende aproveitar a palavra do policial, impõe-se a exigência de respaldo probatório que vá além do silêncio do investigado ou réu. O silêncio não descredibiliza o imputado e não autoriza que magistrados concedam automática presunção de veracidade às versões sustentadas por policiais.

Por fim, ante a manifesta escassez probatória que - em violação ao art. 186 do CPP - se extraiu do silêncio do acusado inferências que a lei não autoriza extrair, impõe-se reconhecer que o standard probatório próprio do processo penal, para a condenação, não foi superado.

 

Em suma:

 

DOD Plus – fique atenta (o) para essas expressões mencionadas no acórdão do STJ:

1) Injustiça epistêmica testemunhal

Conforme nos ensinam os seus estudiosos, sociedades marcadas por preconceitos identitários — como, aliás, é o caso da sociedade brasileira — acabam por apresentar trocas comunicativas injustas. Por vezes, a pessoa deixa de ser considerada enquanto sujeito capaz de conhecer o mundo adequadamente pelo simples fato de ser quem é. Sobre essas situações, Miranda Fricker explica que se comete uma injustiça epistêmica testemunhal quando um ouvinte reduz a credibilidade do relato oferecido por um falante por ter, contra ele, ainda que não de forma consciente e deliberada, algum(s) preconceito(s) identitário(s) (FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the ethics of knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007). Negros em sociedades racistas, mulheres e pessoas LGBTQIA+ em sociedades machistas, pessoas com deficiência em sociedades capacitistas são alguns exemplos de vítimas sistemáticas de injustiça epistêmica testemunhal. Indivíduos provenientes de grupos sociais vulnerabilizados têm de enfrentar o peso dessa realidade opressora nos mais diversos contextos, inclusive no contexto da justiça criminal.

 

2) Injustiça epistêmica agencial (múltiplas injustiças epistêmicas contra um mesmo sujeito)

Ademais, analisando o fenômeno das falsas confissões, autores como Jennifer Lackey sinalizam que o sistema de justiça acaba praticando múltiplas injustiças epistêmicas contra um mesmo sujeito: ao confessar (ainda que sob tortura, maus tratos, ameaça, pressão psicológica etc.), o investigado/acusado tem rapidamente reconhecida a sua credibilidade; quando, ao contrário, busca se retratar, já não é considerado merecedor do mais mínimo grau de credibilidade. Trata-se de um paradoxo: acreditam que o relato do sujeito corresponde a uma correta reconstrução dos fatos precisamente quando ele tem menos preservada a sua autonomia cognitiva; de outro lado, quando mais pode trazer declarações confiáveis, porquanto emitidas sem injustas pressões externas, aí é que não se observa mínima disposição para acreditar em suas palavras. Essa falaciosa economia de credibilidades que o sistema de justiça oferece a um único e mesmo sujeito em distintos momentos constitui claro exemplo do que Lackey nomeou de injustiça epistêmica agencial (LACKEY, Jennifer. False confessions and testimonial injustice. In Journal of Criminal Law & Criminology, v. 110, p. 43-68, p. 60, 2020).

 

Veja o que a doutrina fala sobre (palavras-chave: injustiça epistêmica agencial, confissão, valoração da prova):

“Expandindo os trabalhos originais de Fricker, Jennifer Lackey propôs recentemente a ideia de injustiça epistêmica agencial (agential epistemic injustice) ou injustiça testemunhal agencial – para se referir à categoria de injustos caracterizados pelo excesso de credibilidade atribuído à fala de um sujeito nas situações em que sua capacidade de autodeterminação (agência) é diminuída ou suprimida, aliado ao déficit de credibilidade que o mesmo sujeito recebe quando, em um cenário de maior agência, retrata-se da narrativa primeva. O principal fenômeno processual penal que interessa à injustiça epistêmica agencial é a confissão extrajudicial e sua retratação em juízo – especificamente na maior confiabilidade atribuída por Tribunais, promotores e policiais à primeira confissão prestada pelo investigado, ainda no inquérito, quando confrontada com a retratação judicial. Constatou Lackey que, não raro, o único momento em que o réu recebe alguma credibilidade no processo penal é quando confirma o teor da acusação, independentemente do grau de voluntariedade de suas palavras (isto é, do seu nível de agência epistêmica quando da extração da confissão). Se, posteriormente, retrata-se da confissão e passa a afirmar sua inocência, é improvável que essa nova postura encontre a mesma receptividade entre os agentes encarregados da persecução penal.” (DANTAS, Marcelo; MOTTA, Thiago. Injustiça epistêmica agencial no processo penal e o problema das confissões extrajudiciais retratadas. DOI: https://doi.org/10.22197/rbdpp.v9i1.791).

 

3) Racismo estrutural

Nessa perspectiva, e ante a circunstância de que o recorrente é pardo, cabe a lembrança do pensamento de Sueli Carneiro, acerca do racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira: "No caso do negro, a cor opera como metáfora de um crime de origem da qual a cor é uma espécie de prova, marca ou sinal que justifica a presunção de culpa. Para Foucault, 'ninguém é suspeito impunemente', ou seja, a culpa presumida pelo a priori cromático desdobra-se em punição a priori, preventiva e educativa. A suspeição transforma a cena social para os negros em uma espécie de panóptico virtual, 'a vigilância sobre os indivíduos se exerce ao nível não do que se faz, mas do que se é, não do que se faz, mas do que se pode fazer'. Assim, a própria cena social é onde se realiza a vigilância e a punição como tecnologias de controle social". (CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p. 125)


segunda-feira, 21 de agosto de 2023

INFORMATIVO Comentado 780 STJ (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 780 DO STJ


DIREITO ADMINISTRATIVO

LICITAÇÕES

§  A administração pública deverá pagar às empresas pelos serviços executados, bem como pelos subcontratados, mesmo que essas contratações tenham sido feitas de forma verbal, sem licitação e sem observância da lei?

 

DIREITO CIVIL

CONTRATO DE PARCERIA AGRÍCOLA

§  O penhor sobre os frutos outorgado em benefício de terceiro prevalece sobre o direito da parceira outorgante.

 

DIREITO EMPRESARIAL

FALÊNCIA

§  A responsabilidade solidária e a extensão dos efeitos da falência ao sócio diretor da sociedade somente são admitidas se ficar reconhecido, em processo autônomo, que ele praticou atos que tenham resultado na falência.

 

RECUPERAÇÃO JUDICIAL

§  Se o juízo trabalhista não é informado da cláusula negocial de exoneração dos coobrigados, aplica-se a regra geral de preservação do direito dos credores contra os coobrigados.

§  O depósito da indenização (seguro garantia judicial), pela seguradora, no curso de execução trabalhista, somente pode ser exigido na hipótese de o sinistro ter ocorrido em momento anterior ao pedido de recuperação judicial da empresa executada.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

TUTELA PROVISÓRIA

§  Não atendido o prazo legal de 30 dias para formulação do pedido principal em tutela cautelar requerida em caráter antecedente, a medida concedida perderá a sua eficácia e o procedimento de tutela antecedente será extinto sem exame do mérito.

 

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO

§  Os embargos de declaração interrompem o prazo apenas para a interposição de recurso, não sendo possível conferir interpretação extensiva ao art. 1.026 do CPC a fim de estender o significado de recurso a quaisquer defesas apresentadas.

 

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA

§  É possível a oposição de embargos de divergência fundado em acórdão paradigma do mesmo órgão julgador que proferiu a decisão embargada?

 

CUMPRIMENTO DE SENTENÇA

§  É necessária a intimação da parte executada na fase de cumprimento de sentença, mesmo que ela tenha sido citada na fase de conhecimento e não tenha constituído procurador, verificando-se a revelia.

  

EXECUÇÃO

§  É possível, no bojo de cumprimento de sentença, a penhora de valores na conta corrente da esposa do devedor, casada em regime da comunhão universal de bens, observando-se a respectiva meação.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

ANPP

§  O § 14 do art. 28-A do CPP garante a possibilidade de o investigado requerer a remessa dos autos a órgão superior do MP nas hipóteses em que a acusação tenha se recusado a oferecer o ANPP; essa remessa não suspende a tramitação da ação penal.

 

COMPETÊNCIA

§  A inserção de dados falsos em sistema de dados federais não fixa, por si só, a competência da Justiça Federal, a qual somente é atraída quando houver ofensa direta a bens, serviços ou interesses da União ou órgão federal.

 

PROVAS

§  O exercício do direito ao silêncio não pode servir de fundamento para descredibilizar o acusado nem para presumir a veracidade das versões sustentadas por policiais, sendo imprescindível a superação do standard probatório próprio do processo penal a respaldá-las.

 

PRISÃO DOMICILIAR

§  O afastamento da prisão domiciliar para mulher gestante ou mãe de filho menor de 12 anos exige fundamentação idônea e casuística.

 

TRIBUNAL DO JÚRI

§  Diante de recurso de apelação com base no art. 593, III, d, do CPP, é imprescindível que o Tribunal avalie a prova dos autos a fim perquirir se há algum elemento que ampare o decidido pelos jurados.

 

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

BENEFÍCIO POR INCAPACIDADE

§  A previsão legal de manutenção da qualidade de segurado, contida no art. 15, I, da Lei 8.213/91, inclui os benefícios deferidos por decisão de caráter provisório, ainda que seja futuramente revogada.