sábado, 24 de fevereiro de 2024

Se a pessoa maior de 70 anos se casar ou iniciar união estável, em princípio, o regime de bens será o regime da separação obrigatória, nos termos do art. 1.641, II, do CC; se as partes quiserem, poderão fazer uma escritura pública afastando essa regra e escolhendo outro regime

O julgado trata sobre o regime obrigatório de separação de bens para pessoas maiores de 70 anos.

Antes de explicar o que decidiu o STF, irei fazer uma breve revisão sobre diversos aspectos dessa previsão.

Caso esteja sem tempo, pode ir diretamente para os comentários ao julgado.

 

NOÇÕES GERAIS SOBRE O ART. 1.641, II, DO CC (REGIME OBRIGATÓRIO DE SEPARAÇÃO DE BENS PARA MAIORES DE 70 ANOS)

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, 71 anos de idade, decidiu se casar com Andressa.

Dez anos depois, Andressa pediu o divórcio.

Andressa requereu a partilha dos bens que foram adquiridos onerosamente durante o casamento (o apartamento e o carro que foram comprados durante o casamento e que foram adquiridos unicamente em nome de João).

João contestou alegando que não tinha que dividir o patrimônio considerando que, quando o casamento foi contraído, ele possuía mais de 70 anos de idade, de forma que o regime patrimonial que regulou a relação dos dois foi o regime legal da separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.641, II, do Código Civil de 2002:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento;

II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

III - de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial.

 

Pessoa maior de 70 anos

Ao maior de 70 anos é imposto o regime de separação obrigatória de bens. O objetivo do legislador foi o de proteger o idoso e seus herdeiros de casamentos realizados por interesse estritamente econômico.

Trata-se de “prudência legislativa em favor das pessoas e de suas famílias, considerando a idade dos nubentes. É de lembrar que, conforme os anos passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto, maiores riscos corre aquele que tem mais de setenta anos de sujeitar-se a um casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras, ou seja, em que os atrativos matrimoniais sejam pautados em fortuna e não no afeto” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 295).

 

Nomenclatura

O art. 1.641 trata sobre a separação obrigatória de bens (também chamada de separação legal de bens).

 

Havendo dissolução de casamento que era regulado pelo regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641, II, do CC), como deve ser feita a partilha dos bens?

Deverão ser partilhados apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável ou casamento, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição.

Desse modo, em nosso exemplo, Andressa terá direito à meação dos bens adquiridos durante o casamento, desde que comprovado o esforço comum. Esse é o entendimento pacificado do STJ:

No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. 

STJ. 2ª Seção. EREsp 1.623.858-MG, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), julgado em 23/05/2018 (Info 628).

 

Assim, se Andressa comprovasse que pagou parcelas do apartamento com seu dinheiro, ela poderia argumentar que esse bem foi adquirido com esforço comum e que, portanto, ela tem direito à metade do imóvel (meação). Obs: esse esforço comum não é necessariamente financeiro. Ela poderia demonstrar, por exemplo, que auxiliou na empresa do ex-marido.

 

Esse “esforço comum” pode ser presumido?

NÃO. O esforço comum deve ser comprovado.

Quando o STJ fala “desde que comprovado o esforço comum”, ele está dizendo que não se pode presumir. Deve ser provado pelo cônjuge supostamente prejudicado.

Se fosse adotada a ideia de que o esforço comum deve ser presumido isso levaria à ineficácia do regime da separação obrigatória (ou legal) de bens, pois, para afastar a presunção, o interessado teria que fazer prova negativa, comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro em nada contribuiu para a aquisição onerosa de determinado bem. Isso faria com que fosse praticamente impossível a separação dos aquestos*.

Para o STJ, o entendimento de que a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, é mais consentânea com o sistema legal de regime de bens do casamento, pois prestigia a eficácia do regime de separação legal de bens.

Assim, caberá ao interessado (em nosso exemplo, Andressa) comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira!) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissolução da união (prova positiva).

 

* Aquestos é uma palavra utilizada no Direito Civil que significa os bens onerosamente adquiridos na constância do casamento ou da união estável e que se comunicam, ou seja, tornam-se copropriedade dos cônjuges/companheiros.

 

E a Súmula 377 do STF?

O STF possui uma súmula antiga sobre o tema (editada em 1964, na época em que não havia o STJ e que, portanto, o Supremo também julgava, em recurso extraordinário, matérias de natureza infraconstitucional).

Veja a redação do enunciado:

Súmula 377-STF: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento.

 

O entendimento manifestado na Súmula 377 do STF permanece válido?

SIM. No entanto, ela deve ser interpretada da seguinte forma:

“No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição.

Nesse sentido: STJ. 4ª Turma. REsp 1.689.152/SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 24/10/2017.

 

Essa regra do art. 1.641, II, do CC fala em “casamento”. É possível estendê-la também para a união estável?

SIM. Foi editado, inclusive, um enunciado explicitando essa conclusão:

Súmula 655-STJ: Aplica-se à união estável contraída por septuagenário o regime da separação obrigatória de bens, comunicando-se os adquiridos na constância, quando comprovado o esforço comum.

 

Veja como o tema foi cobrado em prova:

(DPE/MG Fundep 2019) Na união estável de pessoa maior de 70 anos de idade, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. (certo)

 

Separação LEGAL (obrigatória) ≠ Separação ABSOLUTA

Separação LEGAL (OBRIGATÓRIA)

Separação ABSOLUTA

Separação LEGAL (obrigatória) é aquela prevista nas hipóteses do art. 1.641 do Código Civil.

Separação ABSOLUTA é a separação convencional, ou seja, estipulada voluntariamente pelas partes (art. 1.687 do CC).

No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. 

Na separação absoluta (convencional), não há comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento.

Assim, somente haverá separação absoluta (incomunicável) na separação convencional.

Aplica-se a Súmula 377 do STF.

Não se aplica a Súmula 377 do STF.

 

(...) 3. Inaplicabilidade, in casu, da Súmula 377 do STF, pois esta se refere à comunicabilidade dos bens no regime de separação legal de bens (prevista no art. 1.641, CC), que não é caso dos autos.

3.1. O aludido verbete sumular não tem aplicação quando as partes livremente convencionam a separação absoluta dos bens, por meio de contrato antenupcial. (...)

STJ. 4ª Turma. REsp 1481888/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 10/04/2018.

 

Veja como o tema foi cobrado em prova:

ý (Juiz TJDFT 2015 CESPE) No regime de separação obrigatória de bens, é vedada a comunicação de bens adquiridos na constância do casamento. (errado)

ý (Defensor DPE-RN 2015 CESPE) O pacto antenupcial é indispensável na celebração do casamento pelo regime da separação obrigatória de bens. (errado). Obs: a separação obrigatória ocorre por força de lei (e não por causa de pacto antenupcial).

 

ENTENDENDO O QUE O STF DECIDIU SOBRE O ART. 1.641, II, DO CC

Imagine a seguinte situação hipotética:

Pedro, 71 anos, possui dois filhos: Carlos e Ricardo.

Pedro conheceu Regina, de 65 anos. Eles se apaixonaram e decidiram, já no mês seguinte, morar juntos.

Apesar de não serem casados formalmente, mantinham uma relação pública, contínua e duradoura como casal. Viviam, portanto, em indiscutível união estável.

Dez anos depois, Pedro faleceu deixando, como herança, cinco imóveis, sendo que dois deles foram adquiridos depois de iniciada a união estável.

O inventário foi aberto por Carlos e Regina se habilitou pedindo para ter participação nos dois imóveis adquiridos durante a união estável.

Carlos se opôs alegando que ela não teria direito a nada considerando que, quando a união estável foi iniciada, o falecido possuía mais de 70 anos de idade, de forma que o regime patrimonial que regulou a relação dos dois foi o regime legal da separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.641, II, do Código Civil de 2002:

Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento:

(...)

II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos;

(...)

 

Argumentou também que Regina não demonstrou esforço comum para a aquisição dos imóveis.

O juiz declarou inconstitucional o art. 1.641, II, do CC e, em consequência, decidiu que a herança deveria ser dividida entre Regina e os filhos do falecido.

Inconformados, os filhos interpuseram recurso.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo excluiu a companheira da divisão da herança, aplicando o art. 1.641, II, do CC, que, na visão do Tribunal, é constitucional.

Regina interpôs recurso extraordinário pedindo para participar da divisão da herança sob o argumento de que o art. 1.641, II, do CC é inconstitucional.

 

O STF deu provimento ao recurso de Regina? O art. 1.641, II, do CC foi declarado inconstitucional?

NÃO. O STF deu apenas interpretação conforme a Constituição ao art. 1.641, II, do CC.

O STF disse o seguinte:

• Se uma pessoa maior de 70 anos se casar ou iniciar uma união estável, em princípio, o regime de bens que regerá essa relação será o regime da separação obrigatória, nos termos do art. 1.641, II, do CC.

• Vale ressaltar, contudo, que o art. 1.641, II, do CC é uma norma natureza dispositiva/supletiva* (não é imperativa; não é cogente*). Isso significa que é uma regra que admitida que as partes, no caso concreto, estabeleçam tratamento diverso, no exercício de sua autonomia.

• Assim, se quiserem, a pessoa maior de 70 anos e seu(sua) parceiro(a) poderão ir até o cartório do tabelionato de notas e fazer uma escritura pública escolhendo um novo regime de bens que seja da separação obrigatória (art. 1.641, II, do CC).

• Caso não façam essa escritura pública, prevalece a regra geral do art. 1.641, II, do CC, que é a separação obrigatória.

 

Podemos sintetizar dessa maneira:

O regime obrigatório de separação de bens nos casamentos e nas uniões estáveis que envolvam pessoas maiores de 70 anos pode ser alterado pela vontade das partes, mediante escritura pública, firmada em cartório. Caso não se escolha outro regime, prevalecerá a regra disposta em lei (art. 1.641, II, CC/2002).

STF. Plenário. ARE 1.309.642/SP, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 02/02/2024 (Repercussão Geral – Tema 1236) (Info 1122).

 

* As normas cogentes ou de ordem pública são aquelas de observância obrigatória e que não podem ser afastadas por vontade das partes. Por outro lado, as chamadas normas dispositivas são aquelas que valem mas podem ser afastadas por acordo de vontade entre as partes envolvidas

 

Efeitos prospectivos da escritura pública

Vale ressaltar que a escritura pública que estipule ou modifique o regime de bens tem efeitos somente a partir da lavratura do ato, não retroagindo para alcançar patrimônio anterior à sua elaboração.

 

Interpretação conforme à Constituição

O que o STF fez, portanto, foi conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 1.641, II, do CC, dando-lhe o sentido de norma dispositiva. Isso significa que essa regra pode ser afastada por meio de escritura pública. No entanto, prevalece o art. 1.641, II, do CC se não houve convenção das partes em sentido diverso.

Assim, trata-se de regime legal facultativo, que pode ser afastado pela manifestação de vontade dos envolvidos e cuja alteração, quando houver, produzirá efeitos patrimoniais apenas para o futuro.

O art. 1.641, II, do CC, se fosse interpretado de maneira absoluta, como norma cogente, violaria os princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade, sendo, portanto, inconstitucional.

 

Violação ao princípio da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana se dá em três vertentes:

1. O valor intrínseco da pessoa humana: ninguém nessa vida existe como um meio para fins alheios;

2. Autonomia da vontade: pessoas têm o direito de fazer as escolhas;

3. É limitada por valores comunitários: a sociedade pode impor alguns limites à autonomia em nome de alguns valores que deseja preservar.

 

A proibição de que as partes escolham outro regime diferente do art. 1.641, II, do CC viola o princípio da dignidade da pessoa humana em duas vertentes:

• a autonomia individual, porque impede que pessoas capazes para praticar atos da vida civil façam livremente as suas escolhas existenciais;

• o valor intrínseco de toda pessoa por tratar idosos como instrumentos para a satisfação do interesse patrimonial de seus herdeiros.

 

Princípio da igualdade

A interpretação absoluta do art. 1.641, II, do CC também viola o princípio da igualdade por utilizar a idade como um elemento de desequiparação entre as pessoas, o que é vedado pelo art. 3º, IV, da CF/88:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(...)

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

 

Nesse caso, um outro regime deve ser estabelecido em escritura pública, firmada em cartório, ou em manifestação perante o juiz, para as pessoas já casadas. O novo regime de bens valerá dali em diante, não afetando o patrimônio anterior.

Por outro lado, se não for feita a escolha de um outro regime, valerá a regra da separação de bens (art. 1.641, II, do Código Civil).

Modulação dos efeitos

Tendo em vista a segurança jurídica, o STF determinou que a decisão produza efeitos prospectivos.

 

Vale também para o casamento e para as uniões estáveis

O art. 1.641, II, do CC e a possibilidade de escolha do regime de bens diverso do que está ali previsto se aplica tanto para o casamento como para as uniões estáveis em razão da equiparação constitucional das diversas formas de família (art. 226, caput e § 3º, da CF/88).

 

Veja a tese fixada pelo STF:

Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública.

STF. Plenário. ARE 1.309.642/SP, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 02/02/2024 (Repercussão Geral – Tema 1236) (Info 1122).

 

Com base nesses entendimentos, o Plenário do STF, por unanimidade, ao apreciar o Tema 1.236 da repercussão geral, negou provimento ao recurso extraordinário e fixou a tese acima citada.