quarta-feira, 30 de maio de 2012

Comentários ao novo art. 135-A do Código Penal



Márcio André Lopes Cavalcante*

Foi publicada ontem (29/05) e já está em vigor a Lei n.° 12.653/2012, que inclui um novo tipo no Código Penal: o crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial.

Vamos conhecer um pouco mais sobre esse novo delito:

Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial

Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.

Posição topográfica
O art. 135-A foi inserido no Capítulo III do Título I do Código Penal.
Esse capítulo trata dos crimes que envolvam “periclitação da vida e da saúde”.
Periclitar significa “correr perigo”.
Este Capítulo III, portanto, traz diversos crimes de perigo.
Desse modo, entendo que o art. 135-A, pelo menos em sua forma simples (caput), é um crime de perigo.
Crime de perigo abstrato
Penso que o art. 135-A é crime de perigo abstrato, presumido ou de simples desobediência.
Assim, para a consumação do delito basta a prática da conduta típica pelo agente, sem ser necessário demonstrar que houve, concretamente, a produção de uma situação de perigo.
Pela simples redação do tipo percebe-se que não se exige a demonstração de perigo, havendo uma presunção absoluta (juris et de jure) de que ocorreu perigo pela simples exigência indevida.

Vale ressaltar que, apesar de haver polêmica na doutrina, o STF entende que:
A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional.”
(HC 104410, Relator Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 06/03/2012)
Bem jurídico protegido
Vida e saúde das pessoas humanas.
Sujeito
ativo
Trata-se de crime próprio considerando que somente pode ser praticado pelos responsáveis (sócios, administradores etc.) ou prepostos (atendentes, seguranças, médicos, enfermeiras etc.) do serviço médico-hospitalar emergencial.

Imaginemos o seguinte exemplo:
O diretor geral do hospital edita uma norma interna determinando que todas as recepcionistas somente podem aceitar a internação, ainda que de emergência, de pessoas que apresentem cheque-caução.
Duas semanas depois, chega um paciente em situação de emergência e a recepcionista do hospital faz a exigência do cheque-caução como condição para que ele receba o atendimento médico-hospitalar emergencial.

Quem cometeu o crime, o diretor geral ou a recepcionista?
Os dois. Pela teoria do domínio do fato, o diretor-geral seria o autor intelectual e a recepcionista a autora executora.

A recepcionista poderia alegar obediência hierárquica?
NÃO. A obediência hierárquica é uma causa excludente da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa (art. 22 do CP).
Ocorre que um dos requisitos para que seja reconhecida a excludente pela obediência hierárquica é que deve haver uma relação de direito público. Não incide essa excludente se a relação for de direito privado, como no caso da relação empregatícia em um hospital privado.
Sujeito passivo
Pessoa destinatária do atendimento médico-hospitalar emergencial.
Atenção: se a exigência de caução foi feita a um parente da pessoa que seria internada, a vítima é apenas a pessoa que seria internada e não o seu parente. Isso porque o bem jurídico protegido é a vida e a saúde da pessoa em estado de emergência. Desse modo, não se trata de crime patrimonial, pouco importando de quem se exigiu a caução.
Tipo objetivo
·         Exigir

·         cheque-caução
É um cheque normal (título de crédito) assinado pela pessoa a ser atendida ou por terceiro (familiar, amigo, etc.) com determinado valor ou mesmo com valor em branco e destinado a servir como garantia de futuro pagamento das despesas que forem realizadas com o tratamento. Se as despesas forem pagas, o cheque é devolvido; se não forem, o cheque é descontado.

·         nota promissória
Consiste em um título de crédito (documento escrito) no qual uma pessoa (sacador) faz a promessa, por escrito, de pagar certa quantia em dinheiro em favor de outra (beneficiário).
A nota promissória, neste caso, também funcionaria como um instrumento de garantia de que as despesas médicas seriam pagas.

·         ou qualquer garantia
Exs: fiança prestada por um parente do paciente; uma joia dada em penhor; a exigência de que se passe o cartão de crédito para desconto futuro, como é feito na locação de veículos.

·         bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos
O preenchimento prévio de formulários administrativos é vedado porque muitas vezes eles escondem um contrato de adesão, com a previsão de cláusulas abusivas. O paciente ou seus familiares, no momento de desespero em virtude da enfermidade, é compelido psicologicamente a assinar sem ter o necessário discernimento quanto ao conteúdo do documento.

·         como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial.
Segundo o Conselho Federal de Medicina, emergência é a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo portanto, tratamento médico imediato (art. 1º, parágrafo 2º, da Resolução CFM n.° 1451/95).
Preenchimento prévio de formulários administrativos
O tipo penal incrimina também a conduta de se exigir o preenchimento prévio de formulários administrativos como condição para que seja prestado o atendimento médico-hospitalar emergencial.
Deve-se alertar, contudo, que é possível imaginar que, em alguns casos, seja lícita a exigência de prévio preenchimento de formulários administrativos, nas hipóteses em que essa imposição for imprescindível para a saúde e a vida do paciente ou para resguardar a equipe médica que faz o atendimento.
É o caso, por exemplo, do fornecimento de informações relacionadas com o tipo sanguíneo da pessoa a ser atendida, caso seja imediatamente constatada a necessidade de uma transfusão de sangue.
Exigência de garantia após o atendimento médico-hospitalar de emergência
Pessoa sofre acidente e é levada para hospital particular, onde é prontamente atendida, sem que seja feita qualquer exigência.
Após cessar o quadro de emergência do paciente, o responsável pelo hospital procura os familiares, apresenta a tabela de valores dos serviços do hospital e exige um cheque-caução para que o paciente continue internado. Esse responsável pelo hospital praticou o delito do art. 135-A?
NÃO, trata-se de conduta atípica. Somente é crime a exigência como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial. Não havendo mais situação de emergência, ainda que o paciente continue necessitando dos serviços médico-hospitalares, é lícita a exigência de garantias para que o paciente continue recebendo o atendimento.
Formas de praticar o delito
O crime somente pode ser praticado de forma comissiva (por ação), não sendo possível ser perpetrado por omissão.

No entanto, trata-se de crime de execução livre, podendo ser realizado de modo verbal, gestual ou escrito.
Tipo subjetivo
O crime somente é punido a título de dolo.
Não há previsão de modalidade culposa.
Consumação
O crime é formal. Logo, consuma-se com a simples exigência.
A consumação ocorre no exato instante em que é exigida a garantia ou o prévio preenchimento do formulário administrativo como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial.
Tentativa
É possível, em tese, a tentativa. Trata-se, contudo, de difícil ocorrência na prática.
Caso hipotético
“A” está sofrendo um ataque cardíaco e é levado por seu irmão “B”, ao hospital. “B” para o veículo na porta do hospital para que “A” desça e dê entrada o mais rápido possível na emergência, enquanto ele vai estacionar o veículo.
Em um período de tempo curtíssimo (5 minutos, p. ex.), “B” consegue estacionar o automóvel e se dirigir à entrada de emergência do hospital. Quando lá chega, descobre que seu irmão ainda não foi internado porque a responsável pelo hospital está exigindo a apresentação de um cheque-caução.
“B”, que é advogado, argumenta fortemente que esta prática é abusiva, ameaçando formular representação contra o hospital na Agência Nacional de Saúde Complementar, momento em que a responsável autoriza a internação mesmo sem a garantia anteriormente exigida.

Nesse exemplo hipotético, haverá o crime do art. 135-A (tentado ou consumado)? Haverá desistência voluntária? Haverá arrependimento eficaz?
Penso que nessa hipótese, haverá o crime do art. 135-A consumado.

Não terá havido desistência voluntária nem arrependimento eficaz.

As razões são as seguintes:

O delito do art. 135-A é formal, logo, consuma-se com a simples exigência.
O fato de logo depois a funcionária do hospital ter permitido a internação não importa para fins de consumação considerando que a exigência já foi feita, completando o tipo penal.

Na desistência voluntária (1ª parte do art. 15, CP), o agente inicia a execução do crime e, antes dele se consumar, desiste de continuar os atos executórios.
Não se trata de desistência voluntária no exemplo dado, considerando que a execução já tinha se encerrado e o crime se consumado com a simples exigência.

No arrependimento eficaz (2ª parte do art. 15, CP), o agente, após ter consumado o crime, resolve adotar providências para que o resultado não se consuma.
Ocorre que o resultado de que trata o art. 15 do CP é o resultado naturalístico. Desse modo, somente existe arrependimento eficaz no caso de crimes materiais, isto é, naqueles que exigem a produção de resultado naturalístico. O delito do art. 135-A é, como disse, formal, portanto, incompatível com o arrependimento eficaz.

O fato de o funcionário do hospital ter permitido a internação, após a exigência inicial da caução, não torna a conduta atípica, servindo apenas como circunstância favorável na primeira fase de dosimetria da pena.
Ação penal
Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada (art. 100, CP).
Pena
Na forma simples (caput do artigo), a pena é de detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa.

Consequências:
·         Trata-se de crime de menor potencial ofensivo, submetido, portanto, ao rito sumaríssimo (juizados especiais);
·         Não cabe prisão em flagrante (art. 69 da Lei n.° 9.099/95);
·         É possível o oferecimento de transação penal (art. 76 da Lei n.° 9.099/95);
·         Cabe a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei n.° 9.099/95);
·         Não cabe prisão preventiva (art. 313, I, do CPP);
·         Em caso de condenação, é possível, em tese, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (art. 44 do CP).
Forma majorada
O parágrafo único do art. 135-A prevê duas causas especiais de aumento de pena (obs: não se trata de qualificadora, mas sim de majorante):

Se da negativa de atendimento resultar ...
Lesão corporal GRAVE
MORTE
A pena é aumentada até o DOBRO.
A pena é aumentada até o TRIPLO.

Este parágrafo único constitui-se em tipo preterdoloso, havendo:
·         dolo no antecedente (na conduta de fazer a exigência indevida); e
·         culpa no consequente (na lesão corporal grave ou morte).

Esta forma majorada não é infração de menor potencial ofensivo.

Dever de afixar aviso
A Lei n.° 12.653/2012 previu ainda que o estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial fica obrigado a afixar, em local visível, cartaz ou equivalente, com a seguinte informação:

“Constitui crime a exigência de cheque-caução, de nota promissória ou de qualquer garantia, bem como do preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial, nos termos do art. 135-A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.
Punição desta conduta por outros ramos do direito
A conduta punida por este novo tipo penal já era sancionada pelos demais ramos do direito.

O Código de Defesa do Consumidor (Lei n.° 8.078/90) prevê que é prática abusiva o fato do fornecedor de serviços se prevalecer da fraqueza do consumidor diante de um problema de saúde. Confira-se:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;

O Código Civil de 2002, por sua vez, prevê o estado de perigo como vício de consentimento, apto a gerar a anulabilidade do negócio jurídico. A doutrina civilista em peso classifica a exigência de cheque-caução para atendimentos emergenciais em hospitais como típico exemplo de estado de perigo.
Art. 156. Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.

Por fim, no âmbito do direito administrativo sancionador, a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, agência reguladora vinculada ao Ministério da Saúde, possui a Resolução Normativa n.° 44, de 24 de julho de 2003, proibindo a prática nos seguintes termos:
Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à prestação do serviço.

* Juiz Federal Substituto (TRF da 1ª Região).

Foi Defensor Público, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.

Como citar este texto em trabalhos científicos:

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários ao novo art. 135-A do Código Penal. Dizer o Direito. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br. Acesso em: dd mm aa

Comentários à Lei 12.654/2012 (coleta de material biológico do investigado ou condenado)



Foi publicada ontem (29/05) a Lei n.° 12.654/2012 que prevê a possibilidade de ser realizada uma nova espécie de identificação criminal, qual seja, a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético.

Espécies de identificação
1) Identificação civil
É a pessoa que possui um dos documentos de identificação civil previstos no art. 2º da Lei n.° 12.037/2009 (exs: carteira de identidade, de trabalho, passaporte etc.).
2) Identificação criminal
Existem três espécies:
a) Identificação fotográfica
b) Identificação dactiloscópica (digitais)
c) Coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético.
Obs: esta última foi acrescentada pela Lei n.° 12.654/2012.
A regra constitucional é a de que a pessoa que for civilmente identificada não será submetida à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei (art. 5º, LVIII). A Lei que traz essas hipóteses é a Lei n.° 12.037/2009.

A Lei n.° 12.654/2012, para permitir a identificação criminal mediante a coleta de material biológico, alterou duas leis:
·         Lei n.° 12.037/09 (Lei de Identificação Criminal);
·         Lei n.° 7.210/84 (Lei de Execuções Penais).

A Lei n.° 12.654/2012 prevê a criação de banco de dados de perfis genéticos com o material coletado dos investigados e condenados. Qual é a finalidade dessa coleta e da formação desse banco de dados?
Existem inúmeros crimes que cuja execução deixa materiais genéticos como vestígios. Ex1: o sêmen do autor no caso de um estupro; Ex2: gotas de sangue do agressor na hipótese de um homicídio consumado, em que a vítima tentou se defender; Ex3: fios de cabelo do agente no caso de um furto.
Em tais situações, será possível a comparação dos vestígios deixados com as informações constantes desse banco de dados para que se possa descobrir o verdadeiro autor do crime.

Em que hipóteses a nova Lei permitiu a coleta de material biológico da pessoa para a obtenção do perfil genético?

Foram previstas duas hipóteses:
·         durante as investigações para apurar a autoria de crime;
·         quando o réu já tiver sido condenado pela prática de determinados crimes.

1ª hipótese: durante as investigações:

Quem determina a coleta de material biológico do investigado para a obtenção do seu perfil genético?
A autoridade judiciária.
Nesse caso, a Lei prevê que essa decisão determinando a coleta do material biológico poderá ser tomada de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do MP ou da defesa.

Qual é o requisito para que seja determinada esta coleta?
Somente será determinada a coleta de material biológico do investigado para a obtenção do seu perfil genético se essa prova for essencial às investigações policiais.

Onde ficarão armazenados esses dados do material biológico coletado?
A Lei n.° 12.654 previu que os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.
As informações genéticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos.
Os dados constantes dos bancos de dados de perfis genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial.
As informações obtidas a partir da coincidência de perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado.

Até quando ficarão armazenados estes dados?
A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito.

Ponto polêmico: mesmo sem que a lei preveja, seria possível a coleta do material biológico do acusado durante o processo penal, ou seja, após as investigações?
Entendo que não, considerando que se trata de norma que, por restringir direitos fundamentais do acusado, não pode ser interpretada de forma ampliativa.
Somente em uma situação seria permitida: quando esta coleta tenha sido requerida pela defesa do réu para fins de prova de sua inocência.


2ª hipótese: após o réu ter sido condenado

A nova Lei acrescentou o art. 9º-A à Lei de Execuções Penais, prevendo o seguinte:
Art. 9º-A.  Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.
§ 1º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.
§ 2º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.

Pontos polêmicos:

Para que seja permitida a coleta de material biológico é necessário que a condenação tenha transitado em julgado?
Sim. A Lei não condiciona expressamente que tenha havido o trânsito em julgado, no entanto, essa exigência decorre do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII).

É permitida a coleta de material biológico em caso de crimes equiparados a hediondo (tráfico de drogas, tortura e terrorismo)?
Não. Não é porque tais delitos são equiparados a hediondo que haverá uma simbiose perfeita entre eles. Em verdade, sempre que a lei quis estabelecer tratamento uniforme entre os crimes hediondos e equiparados, ela o fez expressamente, como é o caso do art. 2º da Lei n.° 8.072/90.


Vejamos um quadro comparativo entre as duas hipóteses de coleta de material biológico:

Situações em que é possível a coleta de material biológico da pessoa
para a obtenção do seu perfil genético
1ª Hipótese:
2ª Hipótese
A coleta somente pode ocorrer durante as investigações (antes de ser ajuizada a ação penal)
A coleta somente pode ocorrer após a condenação do réu.
Não importa o crime pelo qual a pessoa esteja sendo investigada.
A coleta somente é permitida se o réu foi condenado:
·         por crime doloso praticado com violência de natureza grave contra pessoa; ou
·         por qualquer crime hediondo.
Somente ocorre se se essa prova for essencial às investigações policiais.
O objetivo é elucidar o crime específico que está sendo investigado.
É obrigatória por força de lei.
O objetivo é o de armazenar a identificação do perfil genético do condenado em um banco de dados sigiloso.
A coleta é determinada por decisão judicial fundamentada, proferida de ofício, ou mediante representação da autoridade policial, do MP ou da defesa.
Não necessita de autorização judicial.
A coleta é feita como providência automática decorrente da condenação.
Prevista no parágrafo único do art. 5º da Lei n.° 12.037/2009 (inserido pela Lei n.° 12.654/2012).
Prevista no art. 9º-A da LEP (inserido pela Lei n.° 12.654/2012).

Reduzida efetividade da Lei n.° 12.654/2012
Caso o investigado ou o condenado se negue a permitir a coleta de material biológico, qual será a consequência para ele?
Nenhuma. Toda pessoa tem o direito de não produzir prova contra si mesmo. Logo, o indivíduo que se nega a permitir a coleta de material biológico para se autodefender exerce um direito garantido constitucionalmente e, por tal razão, não pode ser responsabilizado criminal ou disciplinarmente por isso.
O Estado não poderá, sob pena de inconstitucionalidade, impor, coativamente, que a pessoa ceda material genético para a coleta, ainda que mínimo, como a saliva.
A Lei n.° 12.654/2012, portanto, prevê mera faculdade para o investigado ou condenado que, se assim quiser, poderá permitir a coleta de seu material biológico.
Forçoso concluir, então, que se trata de Lei de reduzida efetividade.

Vale mencionar que é pacífico o entendimento do STF de que, por conta do princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), o acusado não é obrigado a fornecer padrão vocal ou padrão de escrita para que sejam realizadas perícias que possam prejudicá-lo. Ora, esse mesmo raciocínio será, certamente, aplicado para o fornecimento de material biológico. Vide os precedentes do STF sobre o tema:


HABEAS CORPUS. DENÚNCIA. ART. 14 DA LEI Nº 6.368/76. REQUERIMENTO, PELA DEFESA, DE PERÍCIA DE CONFRONTO DE VOZ EM GRAVAÇÃO DE ESCUTA TELEFÔNICA. DEFERIMENTO PELO JUIZ. FATO SUPERVENIENTE. PEDIDO DE DESISTÊNCIA PELA PRODUÇÃO DA PROVA INDEFERIDO.
1. O privilégio contra a auto-incriminação, garantia constitucional, permite ao paciente o exercício do direito de silêncio, não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser desfavorável.
2. Ordem deferida, em parte, apenas para, confirmando a medida liminar, assegurar ao paciente o exercício do direito de silêncio, do qual deverá ser formalmente advertido e documentado pela autoridade designada para a realização da perícia.
(HC 83096, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 18/11/2003, DJ 12-12-2003 PP-00089 EMENT VOL-02136-02 PP-00289 RTJ VOL-00194-03 PP-00923)

EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME DE DESOBEDIÊNCIA. RECUSA A FORNECER PADRÕES GRÁFICOS DO PRÓPRIO PUNHO, PARA EXAMES PERICIAIS, VISANDO A INSTRUIR PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO DO CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO. NEMO TENETUR SE DETEGERE.
Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo, em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a auto-incriminação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz de levar à caracterização de sua culpa. Assim, pode a autoridade não só fazer requisição a arquivos ou estabelecimentos públicos, onde se encontrem documentos da pessoa a qual é atribuída a letra, ou proceder a exame no próprio lugar onde se encontrar o documento em questão, ou ainda, é certo, proceder à colheita de material, para o que intimará a pessoa, a quem se atribui ou pode ser atribuído o escrito, a escrever o que lhe for ditado, não lhe cabendo, entretanto, ordenar que o faça, sob pena de desobediência, como deixa transparecer, a um apressado exame, o CPP, no inciso IV do art. 174. Habeas corpus concedido.
(HC 77135, Relator(a):  Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 08/09/1998, DJ 06-11-1998 PP-00003 EMENT VOL-01930-01 PP-00170)

Vacatio legis
A Lei n.° 12.654/2012 somente entra em vigor 180 dias após a sua publicação, ou seja, apenas no dia 26 /11/2012.


terça-feira, 29 de maio de 2012

A MP 571/2012, que alterou o novo Código Florestal, violou o art. 62, § 1º, IV, da CF/88?



Olá amigos do Dizer o Direito,

Não sei se vocês estavam acompanhando, mas o Congresso Nacional aprovou o novo Código Florestal.

Durante os debates no Parlamento, a Presidência da República discordava de alguns pontos do projeto que, no entanto, mesmo sem a concordância do Governo, foi aprovado por não ter havido acordo entre a base aliada.

Diante disso, surgiu uma intensa dúvida na mídia se a Presidente Dilma iria vetar ou não o projeto aprovado.

De um lado, os chamados "ambientalistas" fizeram uma campanha para que Dilma vetasse integralmente o projeto aprovado, considerando que entendem que o novo Código protege com menor intensidade o meio ambiente natural. De outro, os denominados "ruralistas", que têm expressiva bancada no Congresso, pediam a sanção integral.

A Presidente Dilma decidiu vetar 12 artigos do novo Código e sancionar os demais.

Assim, foi publicada no Diário Oficial de 28/05/2012, a Lei 12.651/2012, o novo Código Florestal.

Sem adentrar no mérito da decisão da Presidente, até aí, juridicamente, tudo certo.

A questão polêmica é a seguinte: além de vetar estes 12 artigos, sancionando os demais, a Presidente da República, no mesmo dia da sanção parcial da Lei 12.651/2012, editou a Medida Provisória 571/2012, alterando a própria Lei 12.651/2012.

Dessas alterações promovidas pela MP, 14 recuperam o texto do Projeto na forma como a Presidência da República queria que fosse aprovado (e que a Câmara dos Deputados não aceitou), 5 são dispositivos novos e 13 são ajustes ou adequações de conteúdo.

Em outras palavras, o Poder Executivo, tentou, por meio de sua bancada, que o Código Florestal fosse aprovado de determinada forma no Parlamento. Não conseguiu. O projeto aprovado seguiu então para a sanção ou veto presidencial. Quanto às partes que o Poder Executivo não queria que tivessem sido aprovadas, houve veto e, imediatamente, foi editada uma Medida Provisória fixando o Código na forma como o Governo queria que tivesse sido aprovado.

Esta Medida Provisória 571/2012 é constitucional?

Vamos problematizar.

A Constituição Federal prevê, em seu art. 62, § 1º, IV, o seguinte:
Art. 62 (...)
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:        
IV – já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República.
Pela interpretação literal, a MP 571/2012 não teria violado o art. 62, § 1º, IV da CF/88, considerando que, quando ela foi editada, o projeto aprovado não estava mais pendente de sanção ou veto uma vez que, no mesmo dia, já havia sido sancionado em parte.

No entanto, em uma interpretação teleológica, poder-se-ia indagar: houve uma afronta à ratio mens legis) do art. 62, § 1º, IV, da CF/88?

José Levi Mello do Amaral Júnior (in Medida provisória e sua conversão em lei. São Paulo : RT, 2004, p. 218-219), citado pelo Min. Gilmar Mendes (Curso de Direito Constitucional. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 843), entende que não há impedimento a que o Presidente da República vete o projeto, total ou parcialmente, e, em seguida, ou mesmo concomitantemente, edite medida provisória sobre a matéria desenvolvida no projeto de lei.

Amaral Júnior exemplifica com o ocorrido com a Lei 10.303/2001, vetada em certos pontos, por vício de iniciativa, e que foram recuperados pela Medida Provisória n. 8/2001. Assim como no caso em análise, ambos os diplomas foram publicados no mesmo dia (DOU de 01/11/2001).

O Min. Gilmar Mendes, ao analisar essa posição sustentada por Amaral Júnior, afirma que:
"O entendimento parece valer para os casos em que não se opera uma afronta à manifestação de vontade do Congresso; de outra forma, insistir, imediatamente, na normação que o Congresso rejeitou, ao votar uma lei de conversão, configuraria descaso para com o princípio da separação dos Poderes." (ob. cit., p. 843) (negritou-se)
Portanto, de acordo com esta manifestação doutrinária do Min. Gilmar Mendes, poder-se-ia concluir que a MP 571/2012 violou o art. 62, § 1º, IV, da CF/88.

E você, concorda com esta conclusão? Entende que houve violação à CF/88 ou se trata do exercício legítimo de um poder conferido ao Chefe do Executivo?

Trata-se, com certeza, de mais um interessante debate jurídico que, certamente, será apreciado, em breve, pelo Supremo Tribunal Federal. 

Vamos acompanhar. 

Um abraço a todos.

sábado, 26 de maio de 2012

INFORMATIVO Esquematizado 665 STF - Versão Resumida






INFORMATIVO Esquematizado 665 STF



Olá amigos do Dizer o Direito,

Após alguns informativos "mornos", o STF publicou o Informativo 665 repleto de julgados importantes e alguns bem difíceis, com destaque para diversos temas de Processo Penal. Vale a pena o seu estudo.



Não se esqueçam: todo esforço será recompensado. Acreditem nisso!

Bons estudos, bom final de semana.


terça-feira, 22 de maio de 2012

INFORMATIVO Esquematizado 664 STF - Versão Resumida






INFORMATIVO Esquematizado 664 STF



Olá amigos do Dizer o Direito,

Como vão os estudos? Já sabem tudo sobre a nova Lei 12.650/2012? É importante estarem sempre atualizados. Os concursos gostam de novidades.

Publicamos hoje o INFORMATIVO Esquematizado 664 do STF.

Vocês terão um descanso porque este Informativo é muito pequeno e nele são noticiados apenas dois julgamentos, sendo que um deles certamente não será cobrado nos concursos porque envolve a CF/67 (EC 1/69). Então, vocês deverão estudar apenas um julgado. Para vocês que leem até 40 páginas do STJ, não será tarefa difícil, não é mesmo?

Bons estudos!

Fiquem com Deus.


segunda-feira, 21 de maio de 2012

Comentários à Lei 12.650/2012, que acrescentou o inciso V ao art. 111 do Código Penal








Márcio André Lopes Cavalcante*

Foi publicada no último dia 18/05, a Lei n.° 12.650/2012, que versa sobre prescrição penal.

Vamos conhecer um pouco mais sobre o que dispõe esta nova lei.

Sobre o que trata a Lei n.° 12.650/2012
Esta Lei altera o Código Penal, dispondo sobre a prescrição nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes.

Conceito de prescrição
Pode-se conceituar prescrição como
-          a perda do direito do Estado de
-          punir (pretensão punitiva) ou
-          executar uma punição já imposta (pretensão executória)
-          em razão de não ter agido (inércia) nos prazos previstos em lei.

Natureza jurídica
A prescrição é causa de extinção da punibilidade (art. 107, IV do CP).
Embora a prescrição produza efeitos no processo penal, ela possui natureza de direito penal (direito material) tendo em vista que influencia diretamente no direito ou não do Estado de punir. Logo, são aplicados à prescrição os “princípios” do direito penal, dentre eles o da irretroatividade da lei ulterior mais gravosa.

Termo inicial da prescrição da pretensão punitiva
Quando começa a correr o prazo da prescrição? Em outras palavras, a partir de quando começa o prazo para que o Estado-acusação tente punir uma pessoa que, supostamente, cometeu um crime?

Os termos iniciais da prescrição estão previstos nos incisos do art. 111 do Código Penal:
Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
I - do dia em que o crime se consumou;
II - no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa;
III - nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência;
IV - nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido.
Este artigo, em sua redação original, trazia:
  • Uma regra geral para os crimes consumados (ou seja, regra válida para quase todos os crimes consumados); e
  • Uma regra geral para os crimes tentados (ou seja, regra válida para quase todos os crimes tentados);
  • Três exceções (ou seja, três regras específicas para alguns tipos de crimes).

As regras e as exceções são as seguintes:

Regra geral no caso de
crimes consumados
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que o crime se CONSUMOU.
Regra geral no caso de
crimes tentados
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que CESSOU A ATIVIDADE CRIMINOSA.
1ª regra específica:
crimes permanentes
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que CESSOU A PERMANÊNCIA.
2ª regra específica:
crime de bigamia
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que O FATO SE TORNOU CONHECIDO.
3ª regra específica:
crime de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que O FATO SE TORNOU CONHECIDO.
Obs: existem outras regras de termo inicial estabelecidas por leis especiais, como a Lei de Falência (p. ex.), ou por conta de entendimentos jurisprudenciais, como no caso dos crimes habituais. Vamos nos concentrar, no entanto, apenas nas regras previstas no Código Penal.

O que fez a Lei n.° 12.650/2012?
A Lei n.° 12.650/2012 acrescentou o inciso V no art. 111 do Código Penal prevendo uma nova regra específica para o termo inicial da prescrição:

Art. 111 - A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

4ª regra específica:
crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes
O prazo prescricional começa a correr do dia
em que a VÍTIMA COMPLETAR 18 (dezoito) anos,
salvo se a esse tempo já houver sido proposta ação penal.
Exemplo prático de aplicação desta nova regra:
“X”, homem de 30 anos, é vizinho da Sra. Maria, que tem uma filha (“A”) de 12 anos de idade.
“X”, no dia 20 de junho de 2012, aproveitando-se que Maria não estava em casa e que tinha livre acesso à casa da vizinha, pratica ato libidinoso com a pequena “A”. Antes de sair da casa, “X” ainda subtrai um cordão de ouro pertencente à “A” mediante grave ameaça.

Que crimes praticou “X”?
·         Estupro de vulnerável (art. 217-A do CP): pena de 8 a 15 anos.
·         Roubo (art. 157 do CP): pena de 4 a 10 anos.

“A” fica com medo de contar o que aconteceu para sua mãe. Por isso, omite o estupro e afirma que perdeu o cordão de ouro.

Em 2034, ou seja, 22 anos após este fato, “A” reencontra “X” e os fatos que viveu e que procurou esquecer voltam à tona em sua memória. Ela se revolta e fica incomodada diante da impunidade de “X” e da possibilidade de ele estar praticando com outras menores o mesmo que fez com ela. Diante disso, ela decide procurar a polícia e relatar o que aconteceu no dia 20 de junho de 2012.

Do ponto de vista apenas da prescrição, o Delegado de Polícia poderá instaurar inquérito para apurar tais fatos e o Ministério Público poderá oferecer denúncia pelos crimes praticados por “X” contra “A”?
  • No que tange ao crime de roubo: NÃO (está prescrito).
  • No que pertine ao crime de estupro: SIM.

Quando começou a correr o prazo prescricional para estes crimes?
  • No caso do roubo: o prazo prescricional começou a correr do dia em que o crime se consumou (20/06/2012), nos termos do art. 111, I, do CP.
  • No caso do estupro: O prazo prescricional começou a correr não no dia em o crime se consumou, mas sim na data em que a vítima (“A”) completou 18 (dezoito) anos, conforme previsto no novel inciso V do art. 111 do CP.

Logo, no caso do roubo (art. 157, caput), o crime já prescreveu (prescreve em 16 anos), mas o estupro de vulnerável ainda não por conta do inciso V do art. 111, inserido no CP pela Lei n.° 12.650/2012.

Na hipótese narrada, o crime de estupro de vulnerável (que prescreve em 20 anos, nos termos do art. 109, I, do CP), somente irá prescrever 20 anos após a vítima “A” ter completado 18 anos.

Entendendo a parte final do inciso V
O inciso V do art. 111 possui a seguinte redação:
Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
(...)
V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

O que significa esta parte final (destacada) do inciso V?
Se for cometido um crime contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, o prazo prescricional só começa a correr quando a vítima completar 18 anos.
No entanto, o fato de o prazo prescricional estar suspenso não impede que seja, desde logo, instaurado o inquérito policial para apurar este estupro e que o Ministério Público ofereça denúncia.
Assim, em nosso exemplo, se “A”, mesmo antes de completar 18 anos, tivesse contado para sua mãe o que aconteceu, ou se o crime tivesse sido descoberto por qualquer outro meio, seria possível que as investigações fossem iniciadas imediatamente e que o MP propusesse a ação penal em seguida.
Vamos então supor que “A”, no mesmo dia, contou o que aconteceu para sua mãe. Esta procurou o Delegado, que presidiu um IP e remeteu para o MP. O Promotor ofereceu denúncia (propôs a ação penal) contra “X” no dia 12 de agosto de 2012.
Significa dizer que, nesse caso, em 12/08/2012, começou a correr o prazo prescricional. Trata-se da situação prevista na parte final do inciso V do art. 111.

Aprofundando o debate sobre a parte final deste inciso V
Acredito que a interpretação que deveria prevalecer é a exposta acima. No entanto, pode ser que surjam correntes diferentes. Vamos então polemizar um pouco?

Pergunta: no caso da parte final do inciso V do art. 111, tendo sido proposta a ação penal mesmo antes da vítima completar 18 anos, qual é o termo inicial da prescrição?

1ª corrente: é a data da propositura da ação penal. É a interpretação que reputo mais adequada com o espírito protecionista da vítima revelado pelo legislador.

2ª corrente: é a data do recebimento da denúncia, com base em uma interpretação conjugada com o art. 117, I, do CP. É a posição defendida por Rogério Sanches.

3ª corrente: é a data da consumação do delito. Isso porque a parte final do inciso V do art. 111 nega a exceção, sem estabelecer expressamente um novo marco inicial da prescrição. Logo, volta-se à regra geral, que é o art. 111, I, do CP. Trata-se da posição que pode ser adotada por doutrinadores mais “garantistas”, com base em uma interpretação mais benéfica ao réu.

Crítica a esta eventual 3ª corrente:
Vamos demonstrar a impertinência da interpretação baseada nesta 3ª corrente com um exemplo hipotético:
“João” e “Maria”, motorista e babá, praticam, na presença de “Ricardo” (4 anos de idade), conjunção carnal, a fim de satisfazer lascívia própria. Este fato ocorreu em 10/06/2012.
“João” e “Maria” cometeram o delito previsto no art. 218-A do Código Penal. Trata-se de crime contra a dignidade sexual de criança ou adolescente.

Quando começa a correr o prazo prescricional deste delito?
R: No dia em que a “Ricardo” completar 18 anos (em 10/03/2026). Até lá, o prazo prescricional está suspenso por força da parte inicial do inciso V do art. 111 do CP.

Prazo prescricional em abstrato do crime do art. 218-A do CP
A pena máxima do crime do art. 218-A é de 4 anos. Logo, este delito prescreve em 8 anos.
No exemplo dado, no dia em que “Ricardo” completou 18 anos (em 10/03/2026), ele procurou o MP e relatou o ocorrido naquele dia. O Promotor ajuizou a ação penal. Este crime não estava prescrito e somente prescreverá em 2034.

Agora imaginemos que, quando “Ricardo” completou 14 anos, ou seja, 10 anos após o fato, ele decidiu contar aos pais o que aconteceu naquele dia 10/06/2012. Os pais de “Ricardo” procuraram o MP.
Se adotarmos a 3ª corrente, o MP não poderá ajuizar a ação penal porque se o fizer antes de “Ricardo” completar 18 anos, o prazo prescricional será o da regra geral do inciso I do art. 111, ou seja, o prazo prescricional terá iniciado na data em que o crime se consumou (10/06/2012). Como já se passaram mais de 10 anos, o crime estaria prescrito.

Desse modo, chegaríamos à absurda conclusão de que o MP teria que esperar até que a vítima completasse 18 anos para então ajuizar a ação penal e, assim, o prazo prescricional ser contado da data do 18º aniversário.

Vale ressaltar que a referida mudança legislativa atendeu a interesses de vitimologia no sentido de proteger os interesses da vítima.

Por essa razão, a interpretação exposta na 3ª corrente não deve ser adotada.

Analisando a expressão “crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos no CP ou em leis especiais”
Vejamos mais uma vez a redação do inciso V do art. 111:
Art. 111. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
(...)
V - nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

O que é criança e adolescente?
Segundo o critério legal do ECA (art. 2º), criança é a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.

Crime praticado contra a pessoa em seu 18º aniversário:
No dia em que a pessoa completa 18 anos, ela deixa de ser adolescente e passa a ser adulta. Assim, se a pessoa for estuprada no dia do seu 18º aniversário, não se aplica este art. 111, V do CP.

Quais são os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes previstos no Código Penal?
  • Estupro (art. 213, § 1º);
  • Violação sexual mediante fraude (art. 215);
  • Assédio sexual (art. 216-A, § 1º);
  • Estupro de vulnerável (art. 217-A);
  • Corrupção de menores (art. 218);
  • Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A);
  • Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (art. 218-B);
  • Mediação para servir a lascívia de outrem (art. 227, § 1º);
  • Rufianismo (art. 230, § 1º);
  • Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231, § 2º, I);
  • Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (art. 231-A, § 2º, I).

Existem atualmente crimes contra a dignidade sexual praticados contra crianças e adolescentes previstos em leis especiais?

Sobre este tema, certamente surgirão duas correntes:

1ª corrente: NÃO. A única lei que fala literalmente em “crimes contra a dignidade sexual” é o Código Penal. Aplicar esta regra do inciso V do art. 111 do CP a outros crimes sexuais contra crianças e adolescentes que não tem a rubrica de “crimes contra a dignidade sexual” seria analogia in malam partem.

2ª corrente: SIM. Quando o novel inciso V do art. 111 do CP menciona “crimes contra a dignidade sexual” ele está se referindo ao bem jurídico protegido, ou seja, trata-se de um gênero que abrange todas as espécies de “delitos sexuais” envolvendo crianças e adolescentes. A expressão “crimes contra a dignidade sexual” é apenas um eufemismo para “crimes sexuais” ou uma atualização vernacular para “crimes contra a liberdade sexual”. Assim, esta expressão utilizada pela Lei (“crimes contra a dignidade sexual”) abrange todas as infrações penais cuja ofensa ao bem jurídico envolva práticas ligadas à sexualidade. Não se trata de analogia in malam partem, mas tão somente do exercício da interpretação teleológica e histórica. É a minha posição sobre o tema.

Desse modo, a meu sentir, o inciso V do art. 111 do CP é aplicável aos delitos previstos nos arts. 240, 241, 241-A, 241-B, 241-C e 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente considerando que se tratam de crimes praticados contra crianças e adolescentes no contexto da sexualidade. Seria absurdo e excessivo apego ao formalismo dizer que tais delitos não ofendem a dignidade sexual das crianças e dos adolescentes, enquanto bem jurídico tutelado, pelo simples fato de o ECA não utilizar esta expressão.

Observação importante: os crimes de que trata o inciso V do art. 111 não se confundem, necessariamente, com os crimes contra a dignidade sexual praticados contra vulneráveis.
Em outras palavras, “crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes” não é sinônimo de “crimes contra a dignidade sexual praticados contra vulneráveis”. Provemos:
  • Existe crime contra a dignidade sexual de vulnerável que não se enquadra no inciso V do art. 111. Ex: estupro de vulnerável praticado contra pessoa de 20 anos com deficiência mental (art. 217-A, § 1º).
  • Existe crime contra a dignidade sexual de adolescente que não é crime contra a dignidade sexual de vulnerável. Ex: estupro praticado contra pessoa de 16 anos sem enfermidade mental e que, no caso concreto, podia oferecer resistência (art. 213, § 1º).

Conclusão: toda criança é vulnerável para fins de crimes contra a dignidade sexual, mas nem todo adolescente será vulnerável sob este aspecto.

O adolescente só será considerado vulnerável para fins de crime contra a dignidade sexual se:
  • For maior que 12 e menor que 14 anos; ou
  • Não tiver o necessário discernimento para a prática do ato por enfermidade ou deficiência mental; ou
  • Não podia, no caso concreto, por qualquer causa, oferecer resistência.

Os crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes são sempre de ação penal pública incondicionada.

Vigência da Lei n.° 12.650/2012
A Lei n.° 12.650/2012 entrou em vigor na data de sua publicação (18/05/2012), não possuindo vacatio legis.

Lei irretroativa
Conforme já explicado, a prescrição é matéria penal, ou seja, de direito material e não de direito processual. Desse modo, submete-se à regra segundo a qual a nova lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF/88). No caso concreto, a Lei n.° 12.650/2012, ao retardar o início da contagem da prescrição, torna mais gravosa a situação para o réu. Logo, não pode ser aplicada retroativamente aos fatos praticados antes de 18/05/2012, data em que entrou em vigor.


* Juiz Federal Substituto (TRF da 1ª Região).
Foi Defensor Público estadual, Promotor de Justiça e Procurador do Estado.

Como citar este texto em trabalhos científicos:

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.650/2012, que acrescentou o inciso V ao art. 111 do Código Penal. Dizer o Direito. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br/2012/05/comentarios-lei-126502012-que.html. Acesso em: dd mm aa