terça-feira, 31 de maio de 2022

É possível utilizar a quantidade e natureza da droga apreendida para a modulação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da LD?

 

Situação 1. Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi condenado pela prática de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006) por ter sido flagrado transportando cerca de 5kg de cocaína.

Na primeira fase da dosimetria da pena (circunstâncias judiciais do art. 59 do CP), o juiz aumentou a pena, alegando que as circunstâncias do crime eram desfavoráveis, já que o réu foi preso transportando uma grande quantidade de droga que, pela sua natureza (cocaína), apresenta alto grau de periculosidade.

 

O juiz poderia ter feito isso?

SIM. A natureza e quantidade da droga são fatores preponderantes no momento da dosimetria da pena, conforme previsto no art. 42 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 42. O juiz, na fixação das penas, considerará, com preponderância sobre o previsto no art. 59 do Código Penal, a natureza e a quantidade da substância ou do produto, a personalidade e a conduta social do agente.

 

Privilégio do art. 33, § 4º

A defesa havia pedido que fosse reconhecido o privilégio do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 33 (...)

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

 

O juiz concedeu o benefício. No entanto, ao calcular o percentual de redução da pena, fixou a redução em 1/6 (menor percentual) sob o argumento de que a natureza e a quantidade da droga pesavam contra ele.

 

Agiu corretamente o juiz neste caso concreto? O juiz, ao aplicar o benefício do § 4º do art. 33 pode reduzir a pena no mínimo previsto (1/6) utilizando como argumento o fato de que o réu foi preso com uma grande quantidade de droga mesmo já tendo utilizado essa mesma alegação para aumentar a pena base?

NÃO. Em nosso exemplo, a “quantidade de droga” já havia sido utilizada pelo juiz para agravar a pena na primeira fase da dosimetria da pena. Assim, se essa circunstância for novamente considerada agora na terceira fase (fixação do percentual de diminuição do § 4º do art. 33 da LD) haverá aí um bis in idem, ou seja, uma dupla punição por conta de um mesmo fato (quantidade da droga).

Dessa forma, a natureza e a quantidade da droga não podem ser utilizadas para aumentar a pena no art. 42 (primeira fase da dosimetria) e também para escolher a fração de diminuição do § 4º do art. 33 da LD (terceira fase da dosimetria).

O juiz deverá escolher: ou utiliza essa circunstância para aumentar a pena base ou para valorar a causa de diminuição do traficante privilegiado. Se o mesmo fato for utilizado nas duas fases, haverá bis in dem.

 

Situação 2. Imagine agora uma situação diferente:

Pedro foi condenado pela prática de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006) por ter sido flagrado transportando cerca de 5kg de cocaína.

Na primeira fase da dosimetria da pena (circunstâncias judiciais do art. 59 do CP), o juiz não mencionou nada a respeito da natureza ou da quantidade da droga. Tais elementos não foram utilizados.

 

Privilégio do art. 33, § 4º

A defesa havia pedido que fosse reconhecido o privilégio do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

O juiz concedeu o benefício. No entanto, ao calcular o percentual de redução da pena, fixou a redução em 1/6 (menor percentual) sob o argumento de que a natureza e a quantidade da droga pesavam contra o réu.

 

Agiu corretamente o juiz neste caso concreto? O juiz, ao aplicar o benefício do § 4º do art. 33 pode reduzir a pena no mínimo previsto (1/6) utilizando como argumento o fato de que o réu foi preso com uma grande quantidade de droga sendo que ele não utilizou essa fundamentação para aumentar a pena base?

SIM. Neste segundo exemplo, a “quantidade de droga” não foi utilizada pelo juiz para agravar a pena na primeira fase da dosimetria da pena. Assim, não há qualquer óbice para que o magistrado utilize essa circunstância na terceira fase (fixação do percentual de diminuição do § 4º do art. 33 da LD).

O juiz escolheu utilizar essa circunstância para valorar a causa de diminuição do traficante privilegiado. Como o mesmo fato não foi utilizado nas duas fases, não houve bis in dem.

 

Tema 712

A posição acima explicada foi fixada pelo STF no Tema 712 de repercussão geral:

As circunstâncias da natureza e da quantidade da droga apreendida devem ser levadas em consideração apenas em uma das fases do cálculo da pena, sob pena de bis in idem.

STF. Plenário. ARE 666334 RG, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 03/04/2014 (Repercussão Geral – Tema 712).

 

Houve certa divergência no STJ, no entanto, desde 27/04/2022, o entendimento acima explicado é o que prevalece no Tribunal:

É possível a valoração da quantidade e natureza da droga apreendida, tanto para a fixação da pena-base quanto para a modulação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006, neste último caso ainda que sejam os únicos elementos aferidos, desde que não tenham sidos considerados na primeira fase do cálculo da pena.

STJ. 3ª Seção. HC 725.534-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 27/04/2022 (Info 734).

 

Qual era o entendimento anterior do STJ sobre o assunto?

O STJ dizia que a natureza e a quantidade da droga deveriam ser utilizadas na 1ª fase da dosimetria e, apenas supletivamente, na 3ª fase:

A natureza e a quantidade da droga devem ser valoradas na primeira etapa da dosimetria da pena. Isso porque o art. 42 da LD afirma que esses dois vetores preponderam sobre as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP (que são analisados na primeira fase da dosimetria).

Supletivamente, a natureza e a quantidade da droga podem ser utilizadas na terceira fase da dosimetria da pena, para afastamento da diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2016, apenas quando esse vetor for conjugado com outras circunstâncias do caso concreto que, unidas, caracterizem a dedicação do agente à atividade criminosa ou a integração a organização criminosa.

STJ. 5ª Turma. REsp 1.985.297-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 29/03/2022 (Info 731).

 

 


segunda-feira, 30 de maio de 2022

INFORMATIVO Comentado 1049 STF (completo e resumido)

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1049 DO STF


Direito Constitucional

COMPETÊNCIA LEGISLATIVA

§  Não há vício de iniciativa de lei na edição de norma de origem parlamentar que proíba a substituição de trabalhador privado em greve por servidor público.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

APOSENTADORIA

§  Para a aposentadoria voluntária de servidor público, o prazo mínimo de cinco anos no cargo em que se der a aposentadoria refere-se ao cargo efetivo ocupado pelo servidor e não à classe na carreira alcançada mediante promoção.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

§  Se um Senador, que responde ação penal no STF, foi eleito Deputado Federal, sem solução de continuidade, o STF permanece sendo competente para a causa (mantem-se a competência do STF nos casos de mandatos cruzados de parlamentar federal).

domingo, 29 de maio de 2022

Revisão para o concurso da Defensoria Pública do Ceará

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a revisão para o concurso da Defensoria Pública do Ceará.

Boa prova.






sexta-feira, 27 de maio de 2022

INFORMATIVO Comentado 731 STJ (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 731 DO STJ


DIREITO CONSTITUCIONAL

PODER JUDICIÁRIO

§  Magistrado que está de licença para estudar no exterior não tem direito à retribuição por direção de fórum nem à gratificação pelo exercício cumulado de jurisdição.

 

DIREITO CIVIL

RESPONSABILIDADE CIVIL

§  Montadora convidou jornalista para lançamento de seu novo veículo, tendo se comprometido a pagar a passagem aérea, o transporte terrestre e a hospedagem; no trajeto para o evento, houve um acidente e o jornalista faleceu; a montadora tem responsabilidade objetiva.

 

DOAÇÃO

§  A condição resolutiva de doação verbal estabelecida entre pai e filho e desconhecida por terceiros não produz efeitos jurídicos contra estes.

 

CONTRATO DE SEGURO (SEGURO DE VIDA)

§  O seguro de vida não pode ser instituído por pessoa casada em benefício de parceiro em relação concubinária.

 

DIREITOS REAIS (CONDOMÍNIO)

§  O adquirente de imóvel deve pagar as taxas condominiais desde o recebimento das chaves ou, em caso de recusa ilegítima, a partir do momento no qual as chaves estavam à sua disposição.

 

DIREITOS REAIS

§  O indivíduo beneficiado com um imóvel do PAR (arrendatário do imóvel) pode ceder esse direito para outra pessoa?

 

DIVÓRCIO

§  A atribuição dinâmica do ônus probatório acerca da realização de acessões/benfeitorias em imóvel de propriedade do cônjuge varão, objeto de eventual partilha em ação de divórcio, pode afastar a presunção do art. 1.253 do CC.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

COMPETÊNCIA

§  A parte interpôs recurso especial contra acórdão do TJ; no STJ, a União pede e é admitida como assistente simples da recorrente; o STJ determina o retorno dos autos ao Tribunal de origem para novo julgamento; o processo deverá ser remetido para o TRF (e não para o TJ).

 

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

§  O termo inicial dos juros de mora incidentes sobre os honorários sucumbenciais dá-se no dia seguinte ao transcurso do prazo recursal, ainda que interposto recurso manifestamente intempestivo.

 

PROCESSO COLETIVO

§  O MP não tem legitimidade ativa para ajuizar ACP objetivando a restituição de valores indevidamente recolhidos a título de empréstimo compulsório sobre aquisição de automóveis de passeio e utilitários.

§  A legitimidade ativa na ação civil pública das pessoas jurídicas da administração pública indireta depende da pertinência temática entre suas finalidades institucionais e o interesse tutelado.

 

MANDADO DE SEGURANÇA

§  É incabível a interposição de recurso ordinário contra apelação em mandado de segurança.

 

DIREITO PENAL

DOSIMETRIA DA PENA

§  Ameaçar a vítima na presença de seu filho menor de idade justifica a valoração negativa da culpabilidade do agente.

 

EFEITOS DA CONDENAÇÃO

§  O reconhecimento de que o réu, condenado pelo crime de corrupção de testemunha, praticou ato incompatível com o cargo de policial militar, é fundamento válido para a decretação da perda do cargo público.

 

TRÁFICO DE DROGAS

§  Configura constrangimento ilegal o afastamento do tráfico privilegiado e da redução da fração de diminuição de pena por presunção de que o agente se dedica a atividades criminosas, derivada unicamente da análise da natureza ou da quantidade de drogas apreendidas.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

PRISÃO

§  Não existe o dever de revisão previsto art. 316, parágrafo único, do CPP, caso o acusado esteja foragido.

 

PROVAS

§  Se a polícia entra na residência especificamente para efetuar uma prisão, ela não pode vasculhar indistintamente o interior da casa porque isso seria “pescaria probatória”, com desvio de finalidade.

 

SIGILO BANCÁRIO

§  Não há ilicitude das provas por violação ao sigilo de dados bancários, em razão do compartilhamento de dados de movimentações financeiras da própria instituição bancária ao Ministério Público.

 

INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA

§  A conversão do conteúdo das interceptações telefônicas em formato escolhido pela defesa não é ônus atribuído ao Estado.

 

EXECUÇÃO PENAL

§  O TJ/PE instaurou IRDR para dirimir as divergências na aplicação da Resolução da CIDH de 22/11/2018 (cômputo da pena em dobro para os presos do Complexo do Curado); enquanto não julgado o IRDR, os processos envolvendo o tema estão suspensos.

 

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

AUXÍLIO-ACIDENTE

§  Somente é possível a acumulação do auxílio-acidente com aposentadoria quando a eclosão da doença incapacitante e a concessão da aposentadoria forem anteriores à alteração do art. 86, §§ 2º e 3º, da Lei 8.213/91, promovida pela MP 1.596-14/97.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Se a polícia entra na residência especificamente para efetuar uma prisão, ela não pode vasculhar indistintamente o interior da casa porque isso seria “pescaria probatória”, com desvio de finalidade

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

Policiais militares realizavam policiamento ostensivo em determinado bairro, momento em que avistaram João em atitude por eles considerada suspeita.  

Ao ser abordado, João identificou-se como Pedro da Silva Albuquerque, que é o nome de seu irmão. Ele fez isso porque possuía contra si um mandado de prisão decorrente de uma condenação por tráfico de drogas.

O que João não sabia é que também havia uma mandado de prisão contra seu irmão.

Quando os policiais descobriram e falaram que havia um mandado de prisão contra Pedro, João conseguiu fugir e saiu correndo pelos becos do bairro.

A equipe policial localizou a residência de João e foi atendida pela sua companheira, uma adolescente de 16 anos. Os policiais alegam que a adolescente autorizou que eles entrassem na casa.

Ao fazerem uma minuciosa revista na residência encontraram, no interior de um dos quartos, uma caixa contendo porções de maconha, em tese, preparadas para a venda, além de munições de arma de uso permitido.

Posteriormente, os policiais encontraram João escondido em um cemitério, dentro de uma cripta, tendo sido preso.

 

A defesa argumentou que houve ofensa à garantia da inviolabilidade de domicílio. A questão chegou até o STJ. O tribunal concordou com a alegação?

SIM.

 

Inviolabilidade de domicílio

A CF/88 prevê, em seu art. 5º, a seguinte garantia:

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

 

A inviolabilidade do domicílio é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo.

 

Entendendo o inciso XI:

Só se pode entrar na casa de alguém sem o consentimento do morador nas seguintes hipóteses:

Durante o DIA

Durante a NOITE

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro;

• Para cumprir determinação judicial (ex: busca e apreensão; cumprimento de prisão preventiva).

• Em caso de flagrante delito;

• Em caso de desastre;

• Para prestar socorro.

 

 

Assim, guarde isso: não se pode invadir a casa de alguém durante a noite para cumprir ordem judicial.

Por se tratar de medida invasiva e que restringe sobremaneira o direito fundamental à intimidade, o ingresso em morada alheia deve se circunscrever apenas ao estritamente necessário para cumprir a finalidade da diligência, conforme se extrai da exegese do art. 248 do CPP, segundo o qual, “Em casa habitada, a busca será feita de modo que não moleste os moradores mais do que o indispensável para o êxito da diligência”.

 

Flagrante delito

Vimos acima que, havendo flagrante delito, é possível ingressar na casa mesmo sem consentimento do morador, seja de dia ou de noite.

Um exemplo comum no cotidiano é o caso do tráfico de drogas. Diversos verbos do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 fazem com que este delito seja permanente:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

 

Assim, se a casa do traficante funciona como boca-de-fumo, onde ele armazena e vende drogas, a todo momento estará ocorrendo o crime, considerando que ele está praticando os verbos “ter em depósito” e “guardar”.

 

Diante disso, havendo suspeitas de que existe droga em determinada casa, será possível que os policiais invadam a residência mesmo sem ordem judicial e ainda que contra o consentimento do morador?

SIM. No entanto, no caso concreto, devem existir fundadas razões que indiquem que ali está sendo cometido um crime (flagrante delito). Essas razões que motivaram a invasão forçada deverão ser posteriormente expostas pela autoridade, sob pena de ela responder nos âmbitos disciplinar, civil e penal. Além disso, os atos praticados poderão ser anulados.

O STF possui uma tese fixada sobre o tema:

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas “a posteriori”, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados.

STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 (repercussão geral – Tema 280) (Info 806).

 

O STJ também possui alguns julgados a respeito do assunto:

A existência de denúncia anônima da prática de tráfico de drogas somada à fuga do acusado ao avistar a polícia, por si sós, não configuram fundadas razões a autorizar o ingresso policial no domicílio do acusado sem o seu consentimento ou sem determinação judicial.

STJ. 5ª Turma. RHC 89.853-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/02/2020 (Info 666).

STJ. 6ª Turma. RHC 83.501-SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06/03/2018 (Info 623).

 

O ingresso regular da polícia no domicílio, sem autorização judicial, em caso de flagrante delito, para que seja válido, necessita que haja fundadas razões (justa causa) que sinalizem a ocorrência de crime no interior da residência.

A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo agente, embora pudesse autorizar abordagem policial em via pública para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o seu consentimento e sem determinação judicial.

STJ. 6ª Turma. REsp 1574681-RS, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 20/4/2017 (Info 606).

 

Abuso de autoridade

Veja o novo crime inserido pela Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade):

Art. 22. Invadir ou adentrar, clandestina ou astuciosamente, ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio ou suas dependências, ou nele permanecer nas mesmas condições, sem determinação judicial ou fora das condições estabelecidas em lei:

Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa.

§ 1º Incorre na mesma pena, na forma prevista no caput deste artigo, quem:

I - coage alguém, mediante violência ou grave ameaça, a franquear-lhe o acesso a imóvel ou suas dependências;

II - (VETADO);

III - cumpre mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21h (vinte e uma horas) ou antes das 5h (cinco horas).

§ 2º Não haverá crime se o ingresso for para prestar socorro, ou quando houver fundados indícios que indiquem a necessidade do ingresso em razão de situação de flagrante delito ou de desastre.

 

Vale ressaltar, no entanto, que, para a configuração do delito, é indispensável a presença do dolo acrescido de elemento subjetivo especial, nos termos do art. 1º, § 1º da Lei nº 13.869/2019:

Art. 1º (...)

§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

 

STJ disse que se a polícia entra na residência especificamente para efetuar uma prisão, ela não pode vasculhar indistintamente o interior da casa porque isso seria uma “pescaria probatória”, com desvio de finalidade

Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade.

STJ. 6ª Turma. HC 663.055-MT, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 22/03/2022 (Info 731).

 

Segundo Alexandre Morais da Rosa:

Fishing Expedition ou Pescaria Probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém. [É] a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade” (ROSA, Alexandre Morais da, Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos, 1ª ed., Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390).

 

Sobre o desvio de finalidade no Direito Administrativo, Celso Antonio Bandeira de Mello ensina:

“Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é; ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la;

é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la. Daí por que os atos incursos neste vício — denominado 'desvio de poder' ou 'desvio de finalidade' — são nulos. Quem desatende ao fim legal desatende à própria lei” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio, Curso de Direito Administrativo, 27 ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 106).

 

O agente responsável pela diligência deve sempre se ater aos limites da medida. Assim, a medida deve estar vinculada à justa causa para a qual excepcionalmente se admitiu a restrição do direito fundamental à intimidade. Obviamente, é possível o encontro fortuito de provas. O que não se admite é que o interior da casa seja vasculhado indistintamente.

No caso dos autos, o ingresso em domicílio foi amparado na possível prática de crime de falsa identidade, na existência de mandado de prisão e na suposta autorização da esposa do acusado para a realização das buscas.

A despeito disso, o interior da casa foi indistintamente vasculhado, tendo havido desvio de finalidade.

O STJ apontou também outras irregularidades no ingresso.

 

O crime de falsa identidade não justificava a entrada na residência

O primeiro fundamento - crime de falsa identidade - não justificava a entrada na casa do réu, porque, no momento em que ingressaram no lar, os militares ainda não sabiam que o acusado havia fornecido anteriormente à guarnição os dados pessoais do seu irmão, o que somente depois veio a ser constatado. Não existia, portanto, situação fática, conhecida pelos policiais, a legitimar o ingresso domiciliar para efetuar-se a prisão do paciente por flagrante do crime de falsa identidade, porquanto nem sequer tinham os agentes públicos conhecimento da ocorrência de tal delito na ocasião.

 

O art. 293 do CPP foi descumprido e não se tinha certeza se o foragido estava na casa

No caso concreto, não foi cumprido o art. 293 do CPP, que diz:

Art. 293.  Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.

Parágrafo único.  O morador que se recusar a entregar o réu oculto em sua casa será levado à presença da autoridade, para que se proceda contra ele como for de direito.

 

Além disso, não se sabia - com segurança - se o réu estava na casa, visto que não fugiu da guarnição para dentro do imóvel com acompanhamento imediato em seu encalço; na verdade, o acusado tomou rumo ignorado, com notícia de que provavelmente estaria escondido dentro do cemitério, mas os agentes foram até a residência dele “colher mais informações”.

 

Desvio de finalidade

Mesmo se admitida a possibilidade de ingresso no domicílio para captura do acusado - em cumprimento ao mandado de prisão ou até por eventual flagrante do crime de falsa identidade -, a partir das premissas teóricas acima fundadas, nota-se, com clareza, a ocorrência de desvirtuamento da finalidade no cumprimento do ato. Isso porque os objetos ilícitos foram apreendidos no chão de um dos quartos, dentro de uma caixa de papelão, a evidenciar que não houve mero encontro fortuito enquanto se procurava pelo réu - certamente portador de dimensões físicas muito superiores às do referido recipiente -, mas sim verdadeira pescaria probatória dentro do lar, totalmente desvinculada da finalidade de apenas capturar o paciente.

 

Não é crível que a adolescente tenha autorizado o ingresso

Por fim, quanto ao último fundamento, as regras de experiência e o senso comum, somados às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes policiais de que a esposa do paciente - adolescente de apenas 16 anos de idade - teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso no domicílio do casal, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em desfavor de seu cônjuge.

Ademais, não se demonstrou preocupação em documentar esse suposto consentimento, quer por escrito, quer por testemunhas, quer, ainda e especialmente, por registro de áudio-vídeo.

 

Conclusão

A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação da norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela derivados, porque decorrentes diretamente dessa diligência policial.

É preciso ressalvar, contudo, que a condenação pelo crime do art. 307 do CP (falsa identidade) não é atingida pela declaração de ilicitude das provas colhidas a partir da invasão de domicílio, eis que a prática do delito, ao que consta, foi anterior ao ingresso dos agentes no lar do acusado.

 

Em suma, o que decidiu o STJ:

Reconheceu a ilicitude das provas obtidas a partir da violação do domicílio do acusado, bem como de todas as que delas decorreram, e, por conseguinte, absolvê-lo das imputações relativas aos crimes do art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) e do art. 14 da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento).


quarta-feira, 25 de maio de 2022

O réu tem um mandado de prisão preventiva contra si expedido. Ele está foragido. Mesmo assim o juiz é obrigado a fazer a revisão periódica da necessidade da prisão (art. 316, parágrafo único, do CPP)?

Revisão periódica da necessidade da prisão preventiva: o parágrafo único do art. 316 do CPP

A prisão preventiva é decretada sem prazo determinado. Contudo, a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) alterou o CPP para impor a obrigação de que o juízo que ordenou a custódia, a cada 90 dias, profira uma nova decisão analisando se ainda está presente a necessidade da medida.

Trata-se do novo parágrafo único do art. 316 do CPP:

Art. 316 (...) Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

O juiz decretou a prisão preventiva de João.

O mandado de prisão não foi cumprido porque João fugiu e não foi encontrado.

Depois de 90 dias a defesa impetrou habeas corpus afirmando que a prisão se tornou ilegal porque o magistrado não proferiu nova decisão analisando a necessidade, ou não, de manutenção da custódia cautelar.

A defesa alegou que existe a obrigação do Juízo processante de revisar, ex officio, a cada 90 dias, os fundamentos da prisão preventiva, mesmo no caso em que o acusado encontra-se foragido.

A defesa apontou dois argumentos para fundamentar sua tese:

• o texto do art. 316, parágrafo único, do CPP afirma literalmente que deverá ocorrer a revisão da custódia quando “Decretada” (e não quando efetivamente cumprida) a prisão;

• a simples existência de um mandado de prisão, mesmo que não cumprido, implica constrangimento ao seu destinatário e, como nenhum constrangimento pode durar indefinidamente – notadamente, quando fundamentado em razões acautelatórias –, o decreto preventivo deveria ser revisto periodicamente, enquanto subsistir.

 

Os argumentos da defesa foram acolhidos pelo STJ? Existe a obrigação do Juízo processante de revisar, ex officio, a cada 90 dias, os fundamentos da prisão preventiva, no caso em que o acusado encontra-se foragido?

NÃO. Não existe o dever de revisão previsto art. 316, parágrafo único, do CPP, caso o acusado esteja foragido.

 

No caso concreto, é necessário fazer uma interpretação teleológica de viés objetivo

A finalidade do dispositivo é a de evitar o gravíssimo constrangimento experimentado por quem está com efetiva restrição à sua liberdade, ou seja, por quem está passando pelo constrangimento da efetiva prisão, que é muito maior do que aquele que advém da simples ameaça de prisão.

Somente o gravíssimo constrangimento causado pela efetiva prisão justifica o elevado custo despendido pela máquina pública com a promoção desses numerosos reexames impostos pela lei.

Não seria razoável ou proporcional obrigar todos os Juízos criminais do país a revisar, de ofício, a cada 90 dias, todas as prisões preventivas decretadas e não cumpridas, tendo em vista que, na prática, há réus que permanecem foragidos por anos.

Se, por exemplo, um réu ficasse foragido por 15 anos, o Juízo processante seria obrigado a reexaminar, de ofício, a prisão, quase 60 vezes. E mais: esse mesmo Juízo teria de fazê-lo em um sem número de processos, cujas prisões foram decretadas e não cumpridas.

Como lembra Guilherme de Souza Nucci, “o objetivo principal desse parágrafo [do art. 316 do CPP] se liga ao juízo de primeiro grau, buscando-se garantir que o processo, com réu preso, tenha uma rápida instrução para um término breve” (Código de Processo Penal comentado [e-book]. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021).

Soma-se a isso o fato de que, se o acusado – que tem ciência da investigação ou processo e contra quem foi decretada a prisão preventiva – encontra-se foragido, já se vislumbram, antes mesmo de qualquer reexame da prisão, fundamentos para mantê-la – quais sejam, a necessidade de assegurar a aplicação da lei penal e a garantia da instrução criminal –, os quais, aliás, conservar-se-ão enquanto perdurar a condição de foragido do acusado.

Assim, pragmaticamente, parece pouco efetivo para a proteção do acusado, obrigar o Juízo processante a reexaminar a prisão, de ofício, a cada 90 dias, nada impedindo, contudo, que a defesa protocole pedidos de revogação ou relaxamento da custódia, quando entender necessário.

 

Em suma:

Quando o acusado encontrar-se foragido, não há o dever de revisão ex officio da prisão preventiva, a cada 90 dias, exigida pelo art. 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal.

STJ. 5ª Turma. RHC 153.528-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 29/03/2022 (Info 731).

 

 


terça-feira, 24 de maio de 2022

A conversão do conteúdo das interceptações telefônicas em formato escolhido pela defesa não é ônus atribuído ao Estado

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

A Polícia Federal instaurou inquérito policial para investigar suposta organização criminosa que praticava crimes contra a administração pública.

Durante as investigações foram realizadas, com autorização judicial, interceptações telefônicas.

Depois que a operação foi deflagrada, disponibilizou-se à defesa dos investigados os arquivos digitais com os áudios das interceptações.

A defesa de João, um dos investigados, alegou e requereu o seguinte:

- a Polícia Federal utiliza nas interceptações um software que realiza a organização e indexação dos dados recebidos das operadoras de telefonia. Estas, por sua vez, utilizam para a coordenação e implementação das medidas o software Vigia, que contém os dados originais de como as interceptações telefônicas e telemáticas foram efetivamente realizadas;

- para que se possa realizar uma auditoria (e detectar a necessidade de uma perícia no material) necessário que seja apresentado o material original, diretamente do sistema Vigia, já que o sistema dos órgãos investigativos, por ser uma cópia, é impossível de ser periciado;

- daí é indispensável o acesso ao original - que permita a realização de perícias - a fim de atestar a regularidade das informações;

- portanto, requer o acesso aos arquivos originais no sistema Vigia.

 

O juízo indeferiu o pedido da defesa, que impetrou habeas corpus.

O TRF também negou o pleito, razão pela qual a defesa interpôs recurso ordinário ao STJ.

 

O STJ concordou com o pedido da defesa?

NÃO.

Conforme já explicado acima, a defesa pediu para ter acesso aos arquivos do sistema Vigia, utilizado pelas companhias de telefonia para viabilizar os procedimentos de interceptação telefônica autorizados pela Justiça no curso de investigações criminais.

O pedido se funda em alegada quebra de cadeia de custódia da prova, cuja comprovação, segundo a defesa, depende de acesso aos dados armazenados pelas operadoras de telefonia no mencionado sistema.

A Lei nº 9.296/96, que regulamenta as interceptações telefônicas, não faz qualquer exigência no sentido de que as conversas devam ser integralmente transcritas, bastando que se confira às partes acesso aos diálogos interceptados. Assim, de acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, não há necessidade de degravação dos diálogos objeto de interceptação telefônica em sua integralidade (STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1533480/RR, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 19/11/2015).

Para o STJ, os elementos de prova estão disponíveis para a defesa, de maneira que não se pode falar em vício por ser um formato de arquivo preferível a outro. A disponibilização dos arquivos com os diálogos interceptados supre a demanda da defesa quanto ao acesso do conteúdo das interceptações, em observância às garantias constitucionais no âmbito do processo penal democrático, não sendo viável a imposição de ônus ao Estado quanto à conversão dos arquivos digitais contendo os elementos de prova para o formato mais conveniente para a defesa.

A análise das nulidades no processo penal envolve, por um lado, a observância da regularidade formal, mas também a necessidade de preservação dos atos processuais, ainda que tenham sido realizados de maneira diversa da estabelecida na norma, sob pena de se privilegiar o formalismo em detrimento da substância dos atos.

Por isso, o reconhecimento do vício depende de demonstração concreta do prejuízo suportado pela parte, o que não ocorreu no caso sob exame.

A alegação de quebra de cadeia de custódia é feita de forma genérica e, portanto, não traz elementos que permitam vislumbrar qualquer ocorrência que comprometa a idoneidade das provas. Assim, os argumentos não se mostram suficientes para se concluir pela presença de qualquer mácula nas provas obtidas mediante o procedimento autorizado de interceptação telefônica.

Deve-se registrar, ainda, que a autenticidade das mídias é a regra, uma vez que os agentes investigadores possuem fé pública. Dessa forma, não cabe ao Poder Público demonstrar a autenticidade das interceptações, mas sim à parte impugnar sua veracidade, com fundamento em elementos concretos. Nesse contexto, não tendo o impetrante demonstrado eventual dúvida acerca da autenticidade das mídias em momento oportuno, não há se falar em disponibilização dos Sistemas “Guardião” ou “Vigia”, para tal finalidade.

Por tudo isso, não é viável o reconhecimento do vício indicado, pois, a teor do art. 563 do CPP, mesmo os vícios capazes de ensejar nulidade absoluta não dispensam a demonstração de efetivo prejuízo, em atenção ao princípio do pas de nullité sans grief.

 

Em suma:

A conversão do conteúdo das interceptações telefônicas em formato escolhido pela defesa não é ônus atribuído ao Estado.

STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 155.813-PE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 15/02/2022 (Info 731).


segunda-feira, 23 de maio de 2022

PROCON tem legitimidade para ajuizar ação civil pública questionando a abusividade de reajuste no valor cobrado dos usuários da CABESP (plano de saúde de autogestão)?

 

A situação concreta, com adaptações, foi a seguinte:

A Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor de São Paulo (PROCON/SP) ajuizou ação civil pública contra a Caixa Beneficente dos Funcionários do Banco do Estado de São Paulo (CABESP) questionando o reajuste do valores dos planos de saúde.

Imagine que você seja advogada(o) da CABESP. Qual seria uma interessante tese que você poderia invocar para evitar a condenação?

A ilegitimidade ativa do PROCON para essa causa.

Vou explicar com calma.

 

O que é a pertinência temática na ação civil pública?

A pertinência temática consiste na “harmonização entre as finalidades institucionais das associações civis ou dos órgãos públicos legitimados e o objeto a ser tutelado na ação civil pública. Em outras palavras, mencionadas pessoas somente poderão propor a ação civil pública em defesa de um interesse cuja tutela seja de sua finalidade institucional” (DE SOUZA, Motauri Ciocchetti. Ação Civil Pública e Inquérito Civil. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2013, p. 78).

Assim, o autor de uma ACP deverá, em regra, demonstrar a sua pertinência temática para aquele interesse tutelado.

 

O que acontece caso o juiz entenda que não existe pertinência temática?

Se não houver pertinência temática, a parte deve ser considerada ilegítima para o ajuizamento da ACP, o que ocasionará a extinção do processo sem resolução de mérito (art. 485, VI, CPC).

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

þ (Promotor de Justiça MP/SP 2019) A Associação “X”, constituída em 1999 com a única finalidade de tutela coletiva dos direitos dos consumidores, ingressou com ação civil pública ambiental em face do Município “Y”, pretendendo impedir a continuidade de obras de alargamento de um logradouro, sob alegação de que a ampliação poderia causar dano ao meio ambiente. O magistrado, embora reconhecendo o atendimento do requisito da pré-constituição, considerou ausente a pertinência temática para a propositura da demanda. Nesse caso, o processo deve ser extinto, sem resolução do mérito, por ausência de legitimidade ativa. (certo)

 

Quem são os legitimados para propor ACP?

O rol dos legitimados para a ACP está previsto no art. 5º da Lei nº 7.347/85:

Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I - o Ministério Público;

II - a Defensoria Pública;

III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;

V - a associação que, concomitantemente:

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

 

A pertinência temática é exigida apenas das associações?

NÃO.

Se formos analisar apenas o texto literal, o art. 5º da Lei nº 7.347/85 apenas exige expressamente da associação a comprovação de pertinência temática para propositura de ação civil pública. É a alínea “b” do inciso V do art. 5º acima transcrito.

Assim, em uma interpretação literal, as autarquias, empresas públicas, fundações públicas e sociedades de economia mista não precisariam comprovar a pertinência temática para ajuizarem ações coletivas.

Nessa perspectiva, os integrantes da administração pública indireta passariam a ter amplos poderes, concorrendo, inclusive, com as finalidades institucionais do Ministério Público e da Defensoria Pública, convertendo-se em verdadeiros “procuradores universais”, com legitimidade para ajuizamento das mais variadas demandas coletivas, independentemente de sua área de atuação.

Ocorre que o STJ não adota essa interpretação literal. Isso porque não se pode esquecer que as autarquias, empresas públicas, fundações públicas e sociedades de economia mista possuem competências legais e estatutárias, as quais delimitam o seu campo de atuação.

Justamente por isso, a doutrina defende e o STJ encampou a tese de que as entidades da administração pública indireta somente poderão ingressar com ACP se demonstrarem a pertinência temática:

“Não basta a existência fática de uma pessoa da Administração Pública indireta: necessário se faz o exame de seu regime estatutário (lei, regulamento, contrato ou ato de constituição etc.). Será o seu estatuto que conferirá legitimidade adequada (ou não) à pessoa jurídica, com densidades diferentes: uma coisa é uma autarquia; outra, uma sociedade de economia mista com capital aberto na bolsa de valores” (MOREIRA, Egon Bockmann; BAGATIN, Andreia Cristina; ARENHART, Sérgio Cruz; FERRARO, Marcella Pereira. Comentários à Lei de Ação Civil Pública. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, pp. 371).

 

Em suma:

 

Voltando ao caso concreto:

NÃO. O PROCON/SP possui natureza jurídica de fundação. Logo, trata-se de entidade da administração pública indireta. Desse modo, a sua legitimidade ativa para ACP depende da demonstração da pertinência temática.

 

O PROCON tinha pertinência temática para a defesa desse interesse em juízo?

NÃO.

O objetivo institucional do PROCON é o de elaborar e executar a política estadual de proteção e defesa do consumidor.

A CABESP é um plano de saúde de autogestão criado para assegurar assistência médica, hospitalar, odontológica, psicológica e paramédica aos funcionários do Banco do Estado de São Paulo S/A.

O STJ consagrou o entendimento no sentido de que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor ao contrato de plano de saúde administrado por entidade de autogestão, haja vista a inexistência de relação de consumo:

Súmula 608-STJ: Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.

 

Dessa forma, como o objetivo do PROCON/SP é a defesa dos interesses dos consumidores e tendo em vista que os usuários do CABESP não podem ser considerados como consumidores, fica muito clara a ausência de pertinência temática.