quinta-feira, 30 de junho de 2022

A prisão civil do devedor de alimentos pode ser excepcionalmente afastada, quando a técnica de coerção não se mostrar a mais adequada e eficaz

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Desde 2017, João não paga a pensão alimentícia que foi fixada judicialmente e que seria devida em favor do seu filho Lucas.

Em 2019, o juiz chegou a decretar a prisão civil de João em razão do inadimplemento, no entanto, a medida não foi cumprida por conta do início da pandemia o que ocasionou a suspensão das custódias dessa natureza.

Em 2021, Lucas voltou a pedir a prisão civil de João porque ele continua inadimplente.

O devedor pediu para que a prisão fosse afastada porque ele não tem condições de trabalhar em razão de estar enfrentando enfermidades crônicas (depressão e disfunção digestiva) que o impedem de manter trabalho e dele exigem muitos gastos com consultas médicas e tratamento.

Além disso, argumentou que o filho é maior de idade, possui formação superior e, portanto, tem condições de trabalhar para se sustentar.

 

A questão chegou até o STJ. O Tribunal concordou com os argumentos do pai?

SIM.

Inicialmente, é importante esclarecer que, em regra, o fato de o credor ser maior de 18 anos e ter, em tese, capacidade de se sustentar não são, por si só, argumentos suficientes para desconstituir a obrigação alimentar, devendo haver prova pré-constituída da ausência de necessidade dos alimentos.

No entanto, no caso concreto, existem outros particularidades que permitem concluir que não existe atualidade e urgência no recebimento dos alimentos, porque:

a) o credor é maior de idade, com formação superior em Psicologia, estando inscrito no respectivo conselho de classe e, portanto, apto a trabalhar;

b) o devedor está com a saúde física e psicológica fragilizada, razão pela qual não consegue manter regularidade no exercício de atividade laborativa; e

c) a dívida se prolongou no tempo e se tornou gravoso exigir todo seu montante para afastar o decreto de prisão.

 

De acordo com o quadro fático delineado, a medida extrema da prisão civil, no caso, não vai conseguir compelir o devedor a cumprir a obrigação alimentar na medida em que, pelo menos desde 2017, nada foi pago ao credor, mesmo com a ameaça concreta de sua constrição, com a expedição do mandado de prisão civil em janeiro de 2019, que só não foi efetivada em virtude da pandemia causada pelo Covid-19.

Portanto, a medida coativa extrema se revela desnecessária e ineficaz, pois o risco alimentar e a própria sobrevivência do credor não se mostram iminentes e insuperáveis, podendo ele, por si só, como vem fazendo, sustentar-se pelo próprio esforço.

 

Em suma:

A prisão civil do devedor de alimentos pode ser excepcionalmente afastada, quando a técnica de coerção não se mostrar a mais adequada e eficaz para obrigá-lo a cumprir suas obrigações.

STJ. 3ª Turma. RHC 160.368-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 05/04/2022 (Info 733).

 

Confira outro julgado do STJ em sentido semelhante:

Na hipótese, o fato de a credora ter atingido a maioridade civil e exercer atividade profissional, bem como o fato de o devedor ser idoso e possuir problemas de saúde incompatíveis com o recolhimento em estabelecimento carcerário, recomenda que o restante da dívida seja executado sem a possibilidade de uso da prisão civil como técnica coercitiva, em virtude da indispensável ponderação entre a efetividade da tutela e a menor onerosidade da execução, somada à dignidade da pessoa humana sob a ótica da credora STJ. 3ª Turma. RHC 91.642/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 6/3/2018.



quarta-feira, 29 de junho de 2022

Reconhecida a responsabilidade estatal por acidente com evento morte em rodovia, é devida a indenização aos filhos menores e ao cônjuge do de cujus

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Walter dirigia seu veículo durante uma noite chuvosa e passou por uma cratera na pista, cheia de água, com aproximadamente 10 metros de largura e 15 metros de profundidade, ocasionada pela erosão.

O carro de Walter caiu no buraco e foi sugado pela correnteza, ocasionando o seu falecimento.

Constatou-se que o desabamento da pista ocorreu algumas horas antes do acidente e que o Departamento Estadual de Estradas de Rodagem de Sergipe (DER/SE), mesmo sabendo do fato, não promoveu qualquer sinalização indicando a obstrução da estrada, que se mostrava imprópria para o tráfego.

O Departamento Estadual de Estradas de Rodagem de Sergipe (DER/SE) é uma entidade da Administração Pública que tem como finalidade principal fiscalizar as estradas estaduais.

Lucas (criança de 5 anos) e Regina, filho e esposa de Walter, ajuizaram ação de indenização por danos morais e materiais contra a DER/SE.

Em contestação, o DER/SE alegou a culpa exclusiva da vítima por imprudência e a configuração de caso fortuito.

O juiz julgou improcedente a ação, pois entendeu que deveria ser aplicada a teoria da responsabilidade objetiva apenas para os casos de comportamento comissivo e a teoria da responsabilidade subjetiva para os casos de comportamento omissivo do Estado. Além disso, concluiu que o período de 5h entre a formação da cratera e o acidente não era suficiente para configurar omissão do Estado. Acolheu a tese do DER/SE sobre a configuração de caso fortuito.

Os autores interpuseram apelação e o Tribunal de Justiça deu parcial provimento ao recurso para:

 

• reconhecer a responsabilidade do DER; e

• condenar o réu ao pagamento de indenização por danos morais.

 

O TJ, contudo, entendeu que os danos materiais não foram devidamente comprovados e negou o pedido neste ponto.

Os autores, então, interpuseram recurso especial, alegando que são dependentes presumidos do falecido.

 

O STJ concordou com os argumentos dos autores?

SIM.

O STJ entende que a responsabilidade civil do Estado por condutas omissivas é subjetiva, sendo necessário, dessa forma, a comprovação:

a) da conduta omissiva e culposa (negligência na atuação estatal - má prestação do serviço);

b) o dano; e

c) o nexo causal entre ambos.

 

No caso concreto, restou comprovado que o acidente ocorreu em razão de falha na manutenção e na fiscalização da via pública, não havendo quaisquer indícios de culpa exclusiva da vítima.

Assim, ficou demonstrada a existência de omissão culposa por parte do ente público, consubstanciada na inobservância ao dever de fiscalização e sinalização da via pública.

Além disso, ficou comprovado o nexo causal entre a referida conduta estatal e o evento danoso, que resultou na morte do pai e marido dos autores, causando-lhes, evidentemente, prejuízos materiais e morais, os quais devem ser indenizados.

 

Danos materiais são devidos considerando que a dependência econômica é presumida

Presentes os elementos necessários para responsabilização do Estado pelo evento morte, a jurisprudência do STJ reconhece devida a indenização por danos materiais, considerando que a dependência econômica dos cônjuges e filhos menores do falecido é presumida, dispensando a demonstração por qualquer outro meio de prova.

O STJ fixou os danos materiais no valor correspondente a 2/3 do salário mínimo, a serem pagos:

• até a expectativa média de vida da vítima, segundo a tabela do IBGE na data do óbito; ou

• até o falecimento da viúva, com a reversão em favor exclusiva desta após o menor completar 24 anos de idade.

Os danos morais foram fixados em R$ 100 mil.

 

Em suma:

Reconhecida a responsabilidade estatal por acidente com evento morte em rodovia, é devida a indenização por danos materiais aos filhos menores e ao cônjuge do de cujus.

STJ. 1ª Turma. REsp 1.709.727-SE, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 05/04/2022 (Info 733).


domingo, 26 de junho de 2022

Revisão - concurso da PGM Teresina

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Procurador do Município de Teresina.

Bons estudos.





domingo, 19 de junho de 2022

INFORMATIVO Comentado 1050 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1050 DO STF


Direito Constitucional

COMPETÊNCIA LEGISLATIVA

§  Compete aos estados-membros a definição do prazo de validade de bilhetes de transporte rodoviário intermunicipal de passageiros.

§  É constitucional lei estadual que concede aos professores das redes públicas estadual e municipais de ensino o benefício da meia-entrada nos estabelecimentos de lazer e entretenimento.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

FATO GERADOR

§  O parágrafo único do art. 116 do CTN, incluído pela LC 104/2001, é constitucional.

 

terça-feira, 14 de junho de 2022

É possível que o Poder Judiciário conceda autorização para que a pessoa faça o cultivo de maconha com objetivos medicinais?

 

Imagine a seguinte situação hipotética

Marta apresenta quadro grave de Epilepsia Refratária. Essa condição a faz ter dezenas de crises epilépticas diárias, além de ter sensibilidade extrema a ruídos, o que a impede de levar uma vida normal.

Diante da ineficiência dos tratamentos convencionais, Marta passou a fazer uso do óleo de canabidiol (CBD Oil – um dos princípios ativos da maconha) para fins terapêuticos, o que resultou em expressiva melhora no seu quadro de saúde, controlando suas crises epilépticas, trazendo avanços significativos em sua qualidade de vida.

Marta faz a importação legalizada do óleo que contém canadibiol, no entanto, o processo é burocrático e caro, o que tem dificultado a continuidade do tratamento prescrito.

 

Habeas corpus preventivo

Diante desse cenário, Marta impetrou habeas corpus preventivo pedindo para obter salvo-conduto para que ela fosse autorizada a realizar o cultivo da maconha e a extração doméstica do óleo, por ser essa a melhor forma de prosseguir com o tratamento.

Desse modo, o pedido foi para que a paciente pudesse cultivar 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, chegando-se a 60 plantas ao ano para fins de produção de canabidiol.

 

A questão chegou até o STJ. O pedido pode ser acolhido?

O STJ está dividido:

É possível que o Poder Judiciário conceda autorização para que

a pessoa faça o cultivo de maconha com objetivos medicinais?

5ª Turma do STJ: NÃO

6ª Turma do STJ: SIM

É incabível salvo-conduto para o cultivo da cannabis visando a extração do óleo medicinal, ainda que na quantidade necessária para o controle da epilepsia, posto que a autorização fica a cargo da análise do caso concreto pela ANVISA.

STJ. 5ª Turma. RHC 123402-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 23/03/2021 (Info 690).

É possível a concessão de salvo-conduto para permitir que pessoas com prescrição médica para o uso do canabidiol cultivem plantas de maconha e dela façam a extração do óleo.

 

STJ. 6ª Turma. RHC 147.169, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 14/06/2022.

STJ. 6ª Turma. REsp 1.972.092, Rel. Min. Rogerio Schietti, julgado em 14/06/2022.

A concessão de autorização para o cultivo de maconha depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise incumbe aos órgãos de vigilância sanitária. Isso porque uma decisão desse tipo depende de estudo de diversos elementos relativos à extensão do cultivo, número de espécimes suficientes para atender à necessidade da recorrente, mecanismos de controle da produção do medicamento, dentre outros fatores, cujo exame escapa ao conjunto de competências técnicas do magistrado.

Essa incumbência está a cargo da ANVISA que, diante das peculiaridades do caso concreto, poderá autorizar ou não o cultivo e colheita de plantas das quais se possam extrair as substâncias necessárias para a produção artesanal dos medicamentos. Aliás, a própria ANVISA já regulamenta esse tipo de atividade no âmbito industrial, por meio da RDC n. 16, de 1º de abril de 2014, podendo aplicar esses critérios, de forma extensiva, ao cultivo doméstico, caso as demais condições técnicas sejam atendidas.

Portanto, a melhor solução é, inicialmente, submeter a questão ao exame da autarquia responsável pela vigilância sanitária e, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, devendo o pleito ser direcionado à jurisdição cível competente.

A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares.

Embora a legislação brasileira possibilite, há anos, a permissão, pelas autoridades competentes, de plantio, cultura e colheita de Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos, fato é que até hoje a matéria não tem regulamentação ou norma específica, o que bem evidencia o descaso, ou mesmo o desprezo – quiçá por razões morais ou políticas – com a situação de uma número incalculável de pessoas que poderiam se beneficiar com tal regulamentação.

O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica, apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade.

A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco à saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina.

O que se pretende com o plantio da Cannabis não é a extração de droga (maconha) com o fim de entorpecimento – potencialmente causador de dependência – próprio ou alheio, mas, tão somente, a extração das substâncias com reconhecidas propriedades medicinais contidas na planta. Não há, portanto, vontade livre e consciente de praticar o fim previsto na norma penal, qual seja, a extração de droga, para entorpecimento pessoal ou de terceiros.

 

 


segunda-feira, 13 de junho de 2022

INFORMATIVO Comentado 732 STJ (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 732 DO STJ


DIREITO CONSTITUCIONAL

INTERVENÇÃO FEDERAL

§  Juiz prolatou sentença determinando a reintegração de posse em imóvel rural ocupado pelo MST; apesar de a decisão ter sido proferida há muitos anos, a ordem nunca foi cumprida; deverá ser deferida a intervenção federal?

 

DIREITO CIVIL

BEM DE FAMÍLIA

§  É impenhorável o bem de família oferecido como caução em contrato de locação comercial.

 

PRESCRIÇÃO

§  O art. 200 do CC/2002 assegura que o prazo prescricional não comece a fluir antes do trânsito em julgado da sentença penal, independentemente do resultado da ação na esfera criminal.

 

RESPONSABILIDADE CIVIL

§  Em tese, é possível que um advogado seja responsabilizado caso cometa algum excesso em sua manifestação profissional.

 

CONTRATOS (LOCAÇÃO DE BENS IMÓVEIS)

§  Termo inicial dos juros de mora incidentes sobre as diferenças entre os valores do aluguel estabelecido no contrato e aquele fixado na ação renovatória.

 

EXECUÇÃO DE ALIMENTOS (PRISÃO CIVIL)

§  Cabe ao magistrado determinar o regime fechado para cumprimento da prisão civil de acordo com o caso específico e a observância do contexto epidemiológico local.

 

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS

§  Na execução de medida socioeducativa, o período de tratamento médico deve ser contabilizado no prazo de 3 anos para a duração máxima da medida de internação, nos termos do art. 121, § 3º, do ECA.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

PROCESSO COLETIVO

§  O estacionamento de veículo em vaga reservada à pessoa com deficiência não configura dano moral coletivo.

 

MANDADO DE SEGURANÇA

§  O Ministério Público possui legitimidade ativa para impetrar Mandado de Segurança a fim de promover a defesa dos interesses transindividuais e do patrimônio público material ou imaterial.


DIREITO PENAL

DESOBEDIÊNCIA

§  Comete o delito de desobediência o condutor do veículo que não cumpre a ordem de parada dada pela autoridade em contexto de policiamento ostensivo para prevenção e repressão de crimes.

 

LEI MARIA DA PENHA

§  A Lei 11.340/2006 (Maria da Penha) é aplicável às mulheres trans em situação de violência doméstica.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

PRISÃO PREVENTIVA

§  A mera circunstância de o agente ter sido denunciado em razão dos delitos descritos na Lei 12.850/2013 não justifica a imposição automática da prisão preventiva, devendo-se avaliar a presença de elementos concretos, previstos no art. 312 do CPP.

 

INCIDENTES E MEDIDAS CAUTELARES

§  Conclusões sobre o sequestro do art. 4º do DL 3.240/1941.

 

PROVAS

§  Policiais não podem fazer a revista pessoal unicamente pelo fato de acharem que o suspeito demonstrou nervosismo ao avistá-los.

§  É ilegal o encerramento do interrogatório do paciente que se nega a responder aos questionamentos do juiz instrutor antes de oportunizar as indagações pela defesa.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

PARCELAMENTO TRIBUTÁRIO

§  O parcelamento tributário requerido por um dos devedores solidários não importa em renúncia à solidariedade em relação aos demais coobrigados.

 

sábado, 11 de junho de 2022

O juiz pode encerrar o interrogatório sem permitir perguntas caso o réu diga que somente irá responder as indagações do seu advogado?

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Vitor era réu em um processo criminal.

Durante o interrogatório, Vitor negou-se a responder as perguntas do magistrado e da acusação.

O acusado ressaltou que só responderia as perguntas formuladas por seu advogado.

O juiz, contudo, disse que isso não seria possível e impediu Vitor de responder aos questionamentos da defesa. Para o juízo, o fato de o acusado ter se negado a responder perguntas feitas pelo magistrado excluiria a possibilidade de outros esclarecimentos de qualquer das partes, inclusive da defesa.

O advogado se insurgiu imediatamente suscitando nulidade do ato por cerceamento de defesa.

 

O caso chegou até o STJ. Agiu corretamente o magistrado?

NÃO.

 

Direito ao silêncio

O direito à não autoincriminação consiste na prerrogativa do investigado ou acusado a negar-se a produzir provas contra si mesmo, e a não ter a negativa interpretada contra si.

O direito ao silêncio é um dos aspectos, talvez o mais conhecido, do direito à não autoincriminação.

O direito ao silêncio consiste na prerrogativa, ou seja, no direito que o investigado possui de se recusar a depor em investigações ou ações penais contra si movimentadas. Esse silêncio não poderá ser interpretado como se este investigado estivesse admitindo a responsabilidade pelo fato.

O direito ao silêncio foi previsto pela CF/88 nos seguintes termos:

Art. 5º (...)

LXIII - o preso será informado de seus direitos entre os quais o de permanecer calado (...)

 

Vale ressaltar que, além da CF/88, o direito ao silêncio foi consagrado também em tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Nesse sentido:

• Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos;

• Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).

 

Três observações importantes relacionados com o direito ao silêncio no interrogatório

Confira o que o art. 186 do CPP fala sobre o interrogatório:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

 

Veja agora três importantes observações sobre o tema:

1) O interrogatório judicial é dividido em duas fases:

• a primeira, relativa à qualificação do réu;

• a segunda, relativa à versão dos fatos.

Quanto à primeira fase do interrogatório (qualificação), prevalece que o acusado não tem o direito ao silêncio. Assim, não pode se negar a responder as perguntas relativas à sua qualificação.

O direito ao silêncio é relativo apenas à segunda parte do interrogatório, ou seja, quanto ao mérito, a autodefesa se exerce de modo livre, desimpedido e voluntário.

Nesse sentido:

A primeira parte do interrogatório não se relaciona com o direito de não produzir prova contra si. O direito a não se autoincriminar diz respeito ao mérito da pretensão punitiva, não à identificação do investigado/acusado.

STJ. 6ª Turma. RHC 126.362/BA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 29/09/2020.

 

2) o silêncio do interrogado não pode ser interpretado como confissão ficta, devendo ser encarado pelo magistrado como mera ausência de resposta.

3) o direito ao silêncio também é conhecido como nemotenetur se detegere.

 

É possível ao acusado optar por responder apenas as perguntas da defesa?

SIM. A ampla defesa assegura isso ao réu. Trata-se do chamado direito ao silêncio seletivo.

Assim, o procedimento adotado pelo juízo violou a ampla defesa, além de não ter amparo legal.

Não há nenhuma previsão legal que determine o encerramento do interrogatório sem possibilidade de indagações pela defesa após a declaração da opção do exercício do direito ao silêncio seletivo pelo acusado.

Na verdade, o art.186 do CPP prevê que, depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. A letra da lei é clara ao dizer que serão formuladas perguntas, às quais o réu pode ou não responder. Significa que o interrogatório, como meio de defesa, permite a possibilidade de responder a todas, nenhuma ou a algumas perguntas direcionadas ao acusado, que tem direito de poder escolher a estratégia que melhor lhe aprouver.

O interrogatório é o dia do réu no Tribunal (seu “day in Court”). Trata-se da única oportunidade, ao longo de todo o processo, em que ele tem voz ativa e livre para, se assim o desejar, dar sua versão dos fatos, rebater os argumentos, as narrativas e as provas do órgão acusador, apresentar álibis, indicar provas, justificar atitudes, dizer, enfim, tudo o que lhe pareça importante para a sua defesa, além, é claro, de responder às perguntas que quiser responder, de modo livre, desimpedido e voluntário (STJ. 6ª Turma. REsp 1825622/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 28/10/2020).

 

Em suma:

É ilegal o encerramento do interrogatório do paciente que se nega a responder aos questionamentos do juiz instrutor antes de oportunizar as indagações pela defesa.

STJ. 6ª Turma. HC 703.978-SC, Rel. Min. Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF 1ª Região), julgado em 05/04/2022 (Info 732).


sexta-feira, 10 de junho de 2022

Comentários à Lei 14.356/2022: como ficam os gastos com publicidade dos órgãos públicos no primeiro semestre do ano de eleição

 

Márcio André Lopes Cavalcante

Juiz Federal integrante do pleno do TRE/AM no biênio 2020/2022

 

Robério Moreira Borges

Analista Judiciário do TRE/AM

 

A Lei 14.356/2022 tratou dos seguintes assuntos:

- Alterou os limites de despesas com propaganda institucional no ano eleitoral

- Introduziu normas relativas à contratação de serviços de comunicação institucional

 

ALTERAÇÃO DOS LIMITES DE DESPESAS COM PROPAGANDA INSTITUCIONAL NO ANO ELEITORAL

 

A Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições) prevê, em seu art. 73, condutas que são vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais.

A Lei nº 14.356/2022 promoveu relevantes alterações nesse dispositivo.

Antes de apreciá-las, vamos rememorar alguns pontos que são importantes para entendermos melhor o assunto.

 

O que são condutas vedadas?

Trata-se de um mecanismo destinado a assegurar a igualdade de oportunidades entre os candidatos, de forma a evitar que algum agente público possa se valer da máquina pública para impulsionar sua candidatura ou a de terceiros.

Para tanto, o legislador enumerou uma série de condutas e as interditou expressamente, cominando sanções diversas, como multa e até mesmo cassação do registro ou diploma.

Esse rol está previsto nos arts. 73 a 77, da Lei das Eleições. Ele é taxativo e não admite interpretação analógica.

Eventual prática das condutas enumeradas nesses artigos é apurada mediante representação por conduta vedada, a ser proposta por candidato, partido político, coligação ou pelo Ministério Público.

 

Quem pode praticá-las?

O agente público, assim considerado como “quem exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos ou entidades da administração pública direta, indireta ou fundacional” (art. 73, §1º, Lei nº 9.504/97).

 

Conduta vedada é sinônimo de abuso de poder político?

NÃO. As principais diferenças entre eles são as seguintes:

 

CONDUTA VEDADA

ABUSO DE PODER

Bem jurídico tutelado

Igualdade de oportunidade entre os candidatos (art. 73, caput, da Lei nº 9.504/97).

Normalidade e legitimidade do pleito (art. 19, parágrafo único, LC 64/90).

Conduta

Rol taxativo.

 

Forma livre.

Legitimidade

A conduta deve obrigatoriamente ser praticada por um agente público.

A conduta lesiva pode ser praticada por qualquer pessoa.

Configuração

Configura-se pela mera prática da conduta

Exige-se prova de que a conduta praticada ostente gravidade suficiente para comprometer a normalidade e legitimidade das eleições (art. 22, inc. XVI, da LC 64/90)

Forma de apuração

Representação por conduta vedada

• Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE); ou

• Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME)

A quem deve ser encami-nhada

Eleições municipais: juiz eleitoral

Eleições estaduais: Juiz Auxiliar (TRE)

Eleições presidenciais: Juiz Auxiliar (TSE)

 

(art. 96, §2º e 3º, da Lei 9.504/97)

 

AIJE:

Eleições municipais: juiz eleitoral

Eleições estaduais: Corregedor-Regional Eleitoral

Eleições presidenciais: Corregedor-Geral Eleitoral

(art. 22, I, e art. 24, da LC 64/90)

 

AIME:

Eleições municipais: juiz eleitoral

Eleições estaduais: TRE (a ser distribuída a um de seus membros)

Eleições presidenciais: TSE (a ser distribuída a um de seus membros)

Sanções

Multa e/ou cassação de registro ou diploma

(em caso de cassação de registro ou diploma, a inelegibilidade pode se dar de forma indireta, a ser aferida por ocasião do registro de candidatura – art. 1º, I, “j”, LC 64/90).

Cassação do registro ou diploma e inelegibilidade pelo prazo de 8 anos

(a inelegibilidade é declarada na sentença, conforme art. 22, XIV, da LC 64/90).

 

Como se observa, cuidam-se de institutos diversos, que tutelam bens jurídicos distintos. No entanto, é possível que uma conduta vedada eventualmente venha a configurar abuso de poder político, desde que tal conduta ostente gravidade suficiente para comprometer a normalidade do pleito.

De igual forma, é possível que o agente público pratique uma conduta que não se amolde a nenhuma daquelas enumeradas no rol de condutas interditadas, porém o ato seja grave o suficiente para caracterizar abuso do poder político.

Essa distinção é muito importante para definir tanto a ação a ser proposta, como também a competência para processá-la.

 

Rol de condutas vedadas

De uma forma bem simplificada, as condutas vedadas aos agentes públicos são as seguintes:

ROL DE CONDUTAS VEDADAS

- Ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária.

 

OBS: Há outras duas exceções: (1) o uso do transporte oficial do Presidente e (2) o uso, em campanha, das residências oficiais por candidatos à reeleição, desde que não tenham caráter de ato público.

 

- Usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram.

 

- Ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado.

 

- Fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público

 

- Nomear, contratar ou de qualquer forma admitir, demitir sem justa causa, suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios dificultar ou impedir o exercício funcional e, ainda, ex officio, remover, transferir ou exonerar servidor público, na circunscrição do pleito, nos três meses que o antecedem e até a posse dos eleitos, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados:

(a) a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança;

(b) a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República; (c) a nomeação dos aprovados em concursos públicos homologados até o início daquele prazo;

(d) a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do Poder Executivo;

(e) a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes penitenciários.

 

- Nos três meses que antecedem o pleito:

a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública;

 

b) com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado, autorizar publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral (Redação dada pela Lei 14.356/2022);

 

c) fazer pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, fora do horário eleitoral gratuito, salvo quando, a critério da Justiça Eleitoral, tratar-se de matéria urgente, relevante e característica das funções de governo.

 

OBS: As vedações contidas nas alíneas b e c, aplicam-se apenas aos agentes públicos das esferas administrativas cujos cargos estejam em disputa na eleição.

 

- Empenhar, no primeiro semestre do ano de eleição, despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, que excedam a 6 (seis) vezes a média mensal dos valores empenhados e não cancelados nos 3 (três) últimos anos que antecedem o pleito (Redação dada pela Lei 14.356/2022);

 

- Fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição, a partir do início do prazo estabelecido no art. 7º desta Lei e até a posse dos eleitos.

 

- Distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

 

OBS: Veda-se, ainda, a execução desses programas por entidade nominalmente vinculada a candidato ou por esse mantida.

 

- Contratação de shows artísticos pagos com recursos públicos para realização de inaugurações nos três meses que antecedem as eleições.

 

- Comparecer, nos 3 (três) meses que precedem o pleito, a inaugurações de obras públicas.

 

 

Como se observa, são diversas as condutas vedadas aos agentes públicos.

Contudo, o presente estudo se limitará às condutas vedadas relacionadas à propaganda institucional, que foram objeto de alteração pela Lei nº 14.356/2022.

 

O que vem a ser propaganda institucional?

A propaganda institucional, segundo José Jairo Gomes, pode ser conceituada como aquela “promovida, autorizada e custeada por ente ou órgão público a fim de divulgar seus atos, programas, obras, serviços, campanhas e políticas públicas”. (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 18ª ed. Barueri/SP: Atlas, 2022, p. 824).

 

Mencionada espécie de propaganda não se confunde com propaganda política.

Confira as principais diferenças:

PROPAGANDA INSTITUCIONAL

PROPAGANDA POLÍTICA

Propaganda promovida, autorizada e custeada por ente público para promover serviços e campanhas públicas.

De acordo com o art. 37, §1º, da CF/88, deve ser impessoal e ostentar caráter educativo, informativo e de orientação social.

A propaganda política é gênero que abrange as seguintes espécies:

Propaganda partidária: A propaganda partidária se presta à difusão dos princípios ideológicos, atividades e programas dos partidos políticos. Sua finalidade é a de angariar eleitores e cidadãos que simpatizem com os ideais do partido. Nessa modalidade, é vedada a divulgação de propaganda de candidatos a cargos eletivos (Art. 50-B, §4º, II, LPP). É veiculada fora do período eleitoral.

 

Propaganda intrapartidária: propaganda dirigida somente a um grupo específico de eleitores, com foco em uma "eleição interna", em âmbito partidário.

 

Propaganda eleitoral: propaganda eleitoral é aquela que se realiza antes de certame eleitoral e objetiva, basicamente, a obtenção de votos, tornando-se instrumento de convencimento do eleitor, que pode, por seu intermédio, ampliar seu conhecimento sobre as convicções de cada candidato ou partido, fazendo a escolha que mais lhe convier. Veiculada após o dia 15 de agosto do ano da eleição (Art. 36, LE)

 

E o que mudou?

Para melhor compreensão, vamos comparar as redações antiga e a nova, destacando-se as principais alterações:

REDAÇÃO ANTERIOR

NOVA REDAÇÃO

 

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

 

VII - realizar, no primeiro semestre do ano de eleição, despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, que excedam a média dos gastos no primeiro semestre dos três últimos anos que antecedem o pleito; (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)

VII - empenhar, no primeiro semestre do ano de eleição, despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, que excedam a 6 (seis) vezes a média mensal dos valores empenhados e não cancelados nos 3 (três) últimos anos que antecedem o pleito; (Redação dada pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

§ 14. Para efeito de cálculo da média prevista no inciso VII do caput deste artigo, os gastos serão reajustados pelo IPCA, aferido pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou outro índice que venha a substituí-lo, a partir da data em que foram empenhados.        (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

Note que há duas alterações principais:

- Alteração do núcleo da conduta vedada (“realizar” para “empenhar”);

- Alteração da forma de cálculo do limite legal.

 

Substituição do verbo “realizar” por “empenhar”

A primeira alteração promovida pela Lei nº 14.356/2022 diz respeito ao núcleo da conduta vedada, substituindo o verbo “realizar” por “empenhar”.

Para compreender essa alteração, é necessário rememorar alguns conceitos de Direito Financeiro contidos na Lei nº 4.320/64:

Empenho

Liquidação

Pagamento

É o ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição (art. 58, da Lei nº 4.320/64).

Consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito (art. 63, da Lei nº 4.320/64).

É o ato pelo qual a Administração reconhece o direito ao crédito e repassa o numerário ao credor, recebendo a devida quitação. Segundo o art. 62, da Lei 4.320/64, “o pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação”.

 

Em palavras mais simples, pode-se dizer que a Administração, antes de efetuar uma despesa, deve fazer uma espécie de reserva do valor correspondente, que ficará bloqueado e vinculado à despesa informada. A essa reserva dá-se o nome de empenho.

Trata-se de uma etapa anterior e, em regra, obrigatória, tanto que o art. 60, da Lei nº 4.320/64 dispõe que “é vedada a realização de despesa sem prévio empenho”.

Em seguida, após prestado o serviço, cabe à Administração realizar a liquidação da despesa, ou seja, confirmar que o objeto do contrato foi efetivamente cumprido.

Após a liquidação, cumpre à Administração realizar o pagamento ao credor.

 

A redação antiga do dispositivo mencionava “realizar despesa”. A qual dessas etapas ela se referia?

O Tribunal Superior Eleitoral, sob a égide da legislação anterior, definiu que o verbo “realizar” corresponderia ao conceito de liquidação previsto na Lei nº 4.320/64, ou seja, a vedação compreendia as despesas que fossem efetivamente liquidadas no período vedado.

Nesse sentido, confira:

O vocábulo “despesas” deve ser entendido como liquidação, isto é, o atesto oficial de que o serviço foi prestado, independentemente da data do respectivo empenho ou pagamento (arts. 62 e 63, § 2º, III, da Lei 4.320/64).

TSE - RESPE - Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 37820 - ITAREMA – CE - Acórdão de 17/10/2019 - Relator(a) Min. Jorge Mussi.

 

A melhor interpretação da regra do art. 73, VII, da Lei das Eleições, no que tange à definição - para fins eleitorais do que sejam despesas com publicidade -, é no sentido de considerar o momento da liquidação, ou seja, do reconhecimento oficial de que o serviço foi prestado - independentemente de se verificar a data do respectivo empenho ou do pagamento, para fins de aferição dos limites indicados na referida disposição legal.

TSE - RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 67994 - GUARUJÁ – SP - Acórdão de 24/10/2013 - Relator(a) Min. Henrique Neves da Silva.

 

A nova redação da Lei nº 14.356/2022, ao menos em princípio, altera essa interpretação feita pelo TSE, ao vedar o empenho de despesa com propaganda institucional acima do limite legal, e não mais sua liquidação.

 

Assim, a partir da vigência da nova lei, o simples fato de empenhar recursos para propaganda institucional em montante superior ao limite legal caracterizará a conduta vedada, independentemente da efetiva veiculação dessa propaganda.

 

A nova redação parece, em um primeiro momento, ser mais restritiva que a anterior. No entanto, é possível imaginar um cenário no qual ela seria mais favorável. Suponhamos que a propaganda institucional está prevista para ser veiculada no primeiro semestre do ano da eleição. Vale ressaltar, contudo, que o empenho foi realizado ano anterior. Nesse caso, essa propaganda seria proibida segundo a nova redação do art. 73, VII?

Pela redação literal do dispositivo, a resposta é não, ou seja, a propaganda poderia ser veiculada normalmente já que o empenho foi feito antes.

 

Importante registrar, contudo, que é possível que a matéria seja levada ao TSE, tendo em vista que aquela Corte, sob a égide da legislação anterior, vinha adotando posicionamento bem restritivo sobre o tema, evitando tentativas de burla da proibição:

A adoção de tese contrária à esposada pelo acórdão regional geraria possibilidade inversa, essa, sim, perniciosa ao processo eleitoral, de se permitir que a publicidade realizada no ano da eleição não fosse considerada, caso a sua efetiva quitação fosse postergada para o ano seguinte ao da eleição, sob o título de restos a pagar, observados os limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

TSE - RESPE - Recurso Especial Eleitoral nº 67994 - GUARUJÁ – SP - Acórdão de 24/10/2013 - Relator(a) Min. Henrique Neves Da Silva.

 

Vamos agora tratar sobre a segunda mudança promovida pela Lei nº 14.356/2022 no dispositivo: qual é a forma de cálculo do limite legal?

A redação anterior previa que o limite seria aferido a partir da média dos primeiros semestres dos três anos anteriores ao pleito.

A nova redação alterou essa fórmula de cálculo, passando a dispor que o limite será aferido a partir da média mensal dos três anos anteriores ao pleito.

A novidade da redação reside no fato de que o cálculo passará a levar em consideração as despesas empenhadas ao longo de todos os meses dos três anos anteriores ao pleito, e não mais as despesas liquidadas apenas no primeiro semestre desse período.

Ficou assim:

ANTES DA LEI 14.356/2022

DEPOIS DA LEI 14.356/2022

O limite é aferido a partir da média de despesas liquidadas no primeiro semestre dos três anos anteriores ao pleito.

 

Inicialmente, calcula-se a média mensal dos empenhos realizados (e não cancelados) nos três últimos anos anteriores ao pleito.

Em seguida, essa média mensal é multiplicada por seis.

O resultado disso é o limite de despesas dessa natureza para o primeiro semestre do ano da eleição.

 

Desse modo, continua existindo a limitação para veiculação de propaganda institucional no primeiro semestre do ano de eleição. No entanto, o limite passa a considerar as despesas empenhadas (e não mais as liquidadas) e o cálculo deverá ser efetivado a partir da média mensal de empenhos dos três anos anteriores (e não mais o primeiro semestre desse mesmo período).

 

Além disso, a Lei nº 14.356/2022 introduziu o §14 ao art. 73, da Lei das Eleições, prevendo, para efeito dos cálculos supracitados, que os gastos com propaganda nos anos anteriores sejam atualizados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA a partir da data em que forem empenhados.

 

E no segundo semestre do ano eleitoral? É possível a veiculação de propaganda institucional?

O art. 73, VI, “b”, afirma que, em regra, é vedada a veiculação de propaganda institucional nos três meses que antecedem o pleito.

 

O mesmo artigo menciona duas exceções a essa regra:

1) propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado;

2) caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral.

 

Na prática, em caso de grave e urgente necessidade pública, o órgão público interessado em veicular propaganda institucional durante esse período ingressa com um pedido junto à Justiça Eleitoral, que poderá liberar ou não a veiculação.

 

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(...)

VI - nos três meses que antecedem o pleito:

(...)

b) com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado, autorizar publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral;

 

E como fica a propaganda institucional relativa ao coronavírus?

A Lei nº 14.356/2022 trouxe uma exceção às vedações e limitações supracitadas na hipótese de propaganda relacionada ao coronavírus, assim conceituada como sendo a propaganda institucional destinada exclusivamente ao enfrentamento da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e à orientação da população quanto aos serviços públicos relacionados ao combate da pandemia.

Confira o art. 4º da Lei nº 14.356/2022:

Art. 4º Não se sujeita às disposições dos incisos VI e VII do caput do art. 73 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, a publicidade institucional de atos e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais e de suas respectivas entidades da administração indireta destinados exclusivamente ao enfrentamento da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e à orientação da população quanto a serviços públicos relacionados ao combate da pandemia, resguardada a possibilidade de apuração de eventual conduta abusiva, nos termos da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.

 

Qual o impacto dessa novidade legislativa na propaganda institucional veiculada no primeiro semestre do ano de eleição?

No que tange à propaganda institucional veiculada no primeiro semestre, disciplina o novo dispositivo que a propaganda relacionada ao coronavírus não se sujeitará às disposições do inciso VII, do caput do art. 73, da Lei nº 9.504/97. 

Dessa forma, a limitação de empenhos relativa ao primeiro semestre do ano da eleição não considerará, em seu cômputo, as despesas relacionadas ao coronavírus.

Assim, em se tratando de propaganda institucional relativa ao coronavírus, o agente público ficará dispensado de observar esse limite legal.

 

E o impacto na vedação à propaganda institucional nos três meses anteriores ao pleito?

De igual forma, o novo dispositivo excluiu a propaganda institucional relativa ao coronavírus da vedação contida no inciso VI, “b” do art. 73, da Lei nº 9.504/97 (vedação de propaganda institucional nos três meses anteriores ao pleito).

Assim, eventual propaganda institucional relativa ao coronavírus poderá ser veiculada pelo ente público dentro dos três meses que antecederem o pleito, sendo dispensada a prévia autorização da Justiça Eleitoral.

 

E se houver abuso? É possível apurá-lo?

SIM. De acordo com o art. 37, §1º, da CF/88, a propaganda institucional deve ser impessoal e ostentar caráter educativo, informativo e de orientação social.

Por essa razão, eventual extrapolação desses limites constitucionais pode caracterizar abuso, o que, segundo o novo dispositivo legal, poderá ser apurado nos termos da Lei nº 9.504/97.

 

Uma última pergunta: as alterações promovidas pela Lei nº 14.356/2022 no art. 73 da Lei nº 9.504/97 podem ser aplicadas nas eleições 2022?

Pensamos que não. Isso porque haveria violação ao princípio da anterioridade da lei eleitoral, previsto no art. 16 da CF/88:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

 

A exigência da anterioridade da lei eleitoral (art. 16 da CF/88) consubstancia marco temporal objetivo que tem por escopo impedir mudanças abruptas na legislação eleitoral, como forma de assegurar o devido processo legal eleitoral, o direito das minorias e a paridade de armas na disputa eleitoral. O princípio da anterioridade – ou da anualidade – da lei eleitoral é um desdobramento do postulado da segurança jurídica (STF. Plenário. ADI 6359 Ref-MC/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 14/5/2020).

Conforme já explicado, as condutas vedadas do art. 73 da Lei nº 9.504/97 têm por objetivo assegurar a igualdade de oportunidades entre os candidatos, de forma a evitar que algum agente público possa se valer da máquina pública para impulsionar sua candidatura ou a de terceiros. Desse modo, a alteração em uma dessas vedações, por implicar potencial desequilíbrio do pleito e afronta à isonomia, precisa respeitar o princípio da anuidade ou anterioridade eleitoral.

Além disso, imaginemos a situação em que um agente público, candidato à reeleição, tenha efetuado despesas significativas com propaganda institucional apenas no primeiro semestre dos três anos anteriores ao pleito. Ao adotar a média mensal dos últimos três anos (todos os meses), a nova fórmula de cálculo reduzirá significativamente esse limite.

Nesse caso, se aplicada a nova lei, o agente público que, no início do ano, empenhou despesas com observância dos limites previstos na lei revogada poderia, em tese, ser responsabilizado por conduta vedada, caso superado o limite imposto pela lei nova (que ele até então sequer conhecia).

 

INTRODUÇÃO DE NORMAS RELATIVAS À CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL

 

A segunda alteração promovida pela Lei 14.356/2022 versa sobre as regras de licitação e contratação de serviços de publicidade pela Administração Pública.

Mas antes de estudá-la, vamos fazer uma breve introdução sobre o tema.

 

Qual é a lei que rege a licitação e contratação de serviços de publicidade?

É a Lei nº 12.232/2010, que dispõe sobre as normas gerais de licitação e contratação de serviços de publicidade prestados por intermédio de agências de propagandas à administração pública.

Trata-se de uma lei de caráter nacional, ou seja, é de observância obrigatória por Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário).

A exceção a essa regra é a contratação desses serviços por empresas públicas e sociedades de economia mista, que possuem regras próprias em seu estatuto (art. 28, da Lei 13.303/2016).

 

Essa lei continua valendo após a entrada em vigor da nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021)?

SIM. A nova Lei de Licitações passou a incidir apenas de forma subsidiária (art. 186, da Lei 14.133/2021).

 

Quais serviços podem ser licitados e contratados por meio desse procedimento?

A Lei nº 12.232/2022 define serviço de publicidade como sendo “o conjunto de atividades realizadas integradamente que tenham por objetivo o estudo, o planejamento, a conceituação, a concepção, a criação, a execução interna, a intermediação e a supervisão da execução externa e a distribuição de publicidade aos veículos e demais meios de divulgação, com o objetivo de promover a venda de bens ou serviços de qualquer natureza, difundir ideias ou informar o público em geral” (art. 2º).

Admite-se, ainda, a inclusão de atividades complementares, a saber:

I - ao planejamento e à execução de pesquisas e de outros instrumentos de avaliação e de geração de conhecimento sobre o mercado, o público-alvo, os meios de divulgação nos quais serão difundidas as peças e ações publicitárias ou sobre os resultados das campanhas realizadas, respeitado o disposto no art. 3o desta Lei;

II - à produção e à execução técnica das peças e projetos publicitários criados;

III - à criação e ao desenvolvimento de formas inovadoras de comunicação publicitária, em consonância com novas tecnologias, visando à expansão dos efeitos das mensagens e das ações publicitárias (art. 2º, §1º).

 

Lado outro, o art. 2º, §2º, veda a inclusão de quaisquer outras atividades, em especial as de assessoria de imprensa, comunicação e relações públicas ou as que tenham por finalidade a realização de eventos festivos de qualquer natureza, as quais serão contratadas por meio de procedimentos licitatórios próprios, respeitado o disposto na legislação em vigor.

 

E o que mudou?

A Lei 14.133/2021 introduziu os artigos 20-A e 20-B na Lei 12.232/2010, passando a dispor que a contratação de serviços de relação com a imprensa e de relações públicas estão compreendidos nos serviços de comunicação institucional e que sua contratação deveria observar o rito licitatório previsto na Lei 12.232/2010.

Os novos dispositivos legais também autorizam a contratação, pelo mesmo rito, dos serviços direcionados ao planejamento, criação, programação e manutenção de páginas eletrônicas da administração pública, ao monitoramento e gestão de suas redes sociais e à otimização de páginas e canais digitais para mecanismos de buscas e produção de mensagens, infográficos, painéis interativos e conteúdo institucional.

 

Mas o que vem a ser serviços de relação com a imprensa e de relações públicas?

De acordo com nova lei, mencionados serviços possuem as seguintes definições:

- Relações com a imprensa: ação que reúne estratégias organizacionais para promover e reforçar a comunicação dos órgãos e das entidades contratantes com seus públicos de interesse, por meio da interação com profissionais da imprensa;

- Relações Públicas: esforço de comunicação planejado, coeso e contínuo que tem por objetivo estabelecer adequada percepção da atuação e dos objetivos institucionais, a partir do estímulo à compreensão mútua e da manutenção de padrões de relacionamento e fluxos de informação entre os órgãos e as entidades contratantes e seus públicos de interesse, no Brasil e no exterior.

 

Confira a redação dos novos dispositivos:

 

Art. 20-A. A contratação de serviços de comunicação institucional, que compreendem os serviços de relação com a imprensa e de relações públicas, deverá observar o disposto no art. 5º desta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

§ 1º Aplica-se o disposto no caput deste artigo à contratação dos serviços direcionados ao planejamento, criação, programação e manutenção de páginas eletrônicas da administração pública, ao monitoramento e gestão de suas redes sociais e à otimização de páginas e canais digitais para mecanismos de buscas e produção de mensagens, infográficos, painéis interativos e conteúdo institucional. (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

§ 2º O disposto no caput e no § 1º deste artigo não abrange a contratação de espaços publicitários e de mídia ou a expansão dos efeitos das mensagens e das ações de comunicação, que observarão o disposto no caput do art. 2º desta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

§ 3º O disposto no caput não exclui a possibilidade de os serviços descritos no caput e no § 1º deste artigo serem prestados pelos servidores dos respectivos órgãos e entidades da administração pública. (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

Art. 20-B. Para fins desta Lei, os serviços de comunicação institucional compreendem os serviços de relações com a imprensa e de relações públicas, assim definidos: (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

I - relações com a imprensa: ação que reúne estratégias organizacionais para promover e reforçar a comunicação dos órgãos e das entidades contratantes com seus públicos de interesse, por meio da interação com profissionais da imprensa; e (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022)

 

II - relações públicas: esforço de comunicação planejado, coeso e contínuo que tem por objetivo estabelecer adequada percepção da atuação e dos objetivos institucionais, a partir do estímulo à compreensão mútua e da manutenção de padrões de relacionamento e fluxos de informação entre os órgãos e as entidades contratantes e seus públicos de interesse, no Brasil e no exterior. (Incluído pela Lei nº 14.356, de 2022).