domingo, 30 de abril de 2023

A Súmula 593 do STJ prevê que o consentimento da vítima menor de 14 anos e o seu namoro com o acusado não afastam a existência do delito de estupro de vulnerável. O STJ possui exceções a esse entendimento?

 

PRATICAR SEXO COM MENOR DE 14 ANOS É CRIME

A Lei nº 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

Antes do art. 217-A, ou seja, antes da Lei nº 12.015/2009, as condutas de praticar conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos já eram consideradas crimes?

SIM. Tais condutas poderiam se enquadrar nos crimes previstos no art. 213 c/c art. 224, “a” (estupro com violência presumida por ser menor de 14 anos) ou art. 214 c/c art. 224, “a” (atentado violento ao pudor com violência presumida por ser menor de 14 anos), todos do Código Penal, com redação anterior à Lei n.° 12.015/2009.

Desse modo, apesar de os arts. 213, 214 e 224 do CP terem sido revogados pela Lei nº 12.015/2009, não houve abolitio criminis dessas condutas, ou seja, continua sendo crime praticar estupro ou ato libidinoso com menor de 14 anos. No entanto, essas condutas, agora, são punidas pelo art. 217-A do CP. O que houve, portanto, foi a continuidade normativa típica, que ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.

 

Antes da Lei nº 12.015/2009, se o agente praticasse atentado violento ao pudor (ex: coito anal) com um adolescente de 13 anos, haveria crime mesmo que a vítima consentisse (concordasse) com o ato sexual? Haveria crime mesmo que a vítima já tivesse tido outras relações sexuais com outros parceiros anteriormente? Essa presunção de violência era absoluta?

SIM. A presunção de violência nos crimes contra os costumes cometidos contra menores de 14 anos, prevista na antiga redação do art. 224, alínea “a”, do CP (antes da Lei nº 12.015/2009), possuía caráter absoluto, pois constituía critério objetivo para se verificar a ausência de condições de anuir com o ato sexual.

Assim, essa presunção absoluta não podia ser afastada (relativizada) mesmo que a vítima tivesse dado seu “consentimento” porque nesta idade este consentimento seria viciado (inválido). Logo, mesmo que a vítima tivesse experiência sexual anterior, mesmo que fosse namorado do autor do fato, ainda assim haveria o crime.

A presunção de violência era absoluta nos casos de estupro/atentado violento ao pudor contra menor de 14 anos. Nesse sentido: STJ. 3ª Seção. EREsp 1152864/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/02/2014.

 

E, atualmente, ou seja, após a Lei n.° 12.015/2009?

Continua sendo crime praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso contra menor de 14 anos. Isso está expresso no art. 217-A do CP e não interessa se a vítima deu consentimento, se namorava o autor do fato etc. A discussão sobre presunção de violência perdeu sentido porque agora a lei incluiu a idade (menor de 14 anos) no próprio tipo penal. Manteve relação sexual com menor de 14 anos: estupro de vulnerável.

A Lei nº 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

A fim de que não houvesse mais dúvidas sobre o tema, o STJ pacificou a questão editando a Súmula 593.

O Congresso Nacional decidiu incorporar na legislação esse entendimento e acrescentou o § 5º ao art. 217-A do CP repetindo, em parte, a conclusão da súmula e estendendo o mesmo raciocínio para outras espécies de pessoa vulnerável. Veja:

Art. 217-A. (...)

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (Inserido pela Lei nº 13.718/2018)

 

Em algumas localidades do país (ex: determinadas comunidades do interior), seria possível dizer que não há crime, considerando que é costume a prática de atos sexuais com crianças? É possível excluir o crime de estupro de vulnerável com base no princípio da adequação social?

NÃO. Segundo afirmou o Min. Rogério Schietti, a prática sexual envolvendo menores de 14 anos não pode ser considerada como algo dentro da "normalidade social". Não é correto imaginar que o Direito Penal deva se adaptar a todos os inúmeros costumes de cada uma das microrregiões do país, sob pena de se criar um verdadeiro caos normativo, com reflexos danosos à ordem e à paz públicas.

Ademais, o afastamento do princípio da adequação social aos casos de estupro de vulnerável busca evitar a carga de subjetivismo que acabaria marcando a atuação do julgador nesses casos, com danos relevantes ao bem jurídico tutelado, que é o saudável crescimento físico, psíquico e emocional de crianças e adolescentes. Esse bem jurídico goza de proteção constitucional e legal, não estando sujeito a relativizações.

 

Na sentença, durante a dosimetria, o juiz pode reduzir a pena-base do réu alegando que a vítima (menor de 14 anos) já tinha experiência sexual anterior ou argumentando que a vítima era homossexual?

Claro que NÃO.

Em se tratando de crime sexual praticado contra menor de 14 anos, a experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido não servem para justificar a diminuição da pena-base a título de comportamento da vítima.

A experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido, assim como não desnaturam (descaracterizam) o crime sexual praticado contra menor de 14 anos, não servem também para justificar a diminuição da pena-base, a título de comportamento da vítima.

STJ. 6ª Turma. REsp 897.734-PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 3/2/2015 (Info 555).

 

As conclusões acima expostas foram consolidadas pelo STJ no julgamento do Recurso Especial n. 1.480.881/PI (Tema 918) e na Súmula 593:

Súmula 593-STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

 

O que acontece se um garoto de 13 anos praticar sexo consensual com a sua namorada de 12 anos?

Haverá o que a doutrina denomina de estupro bilateral. Assim, ocorre o “estupro bilateral” quando dois menores de 14 anos praticam conjunção carnal ou outro ato libidinoso entre si. Em outras palavras, tanto o garoto como a garota, neste exemplo, serão autores e vítimas, ao mesmo tempo, de ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável.

 

Em que consiste a chamada “exceção de Romeu e Julieta”?

Trata-se de uma tese defensiva segundo a qual se o agente praticasse sexo consensual (conjunção carnal ou ato libidinoso) com uma pessoa menor de 14 anos, não deveria ser condenado se a diferença entre o agente e a vítima não fosse superior a 5 anos. Ex: Lucas, 18 anos e 1 dia, pratica sexo com sua namorada de 13 anos e 8 meses. Pela “exceção de Romeu e Julieta” Lucas não deveria ser condenado por estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

A teoria recebe esse nome por inspiração da peça de Willian Shakespeare na qual Julieta, com 13 anos, mantém relação sexual com Romeu. Assim, Romeu, em tese, teria praticado estupro de vulnerável.

A “exceção de Romeu e Julieta”, em regra, não é aceita pela jurisprudência, ou seja, mesmo que a diferença entre autor e vítima seja menor que 5 anos, mesmo que o sexo seja consensual e mesmo que eles sejam namorados, em regra, há crime.

 

CASO CONCRETO JULGADO PELO STJ NO AGRG NO RESP 1.919.722/SP (RELATIVIZAÇÃO DO QUE FOI EXPLICADO ACIMA)

O caso concreto, com adaptações e nomes fictícios, foi o seguinte:

Tiago, na época com 18 anos de idade, conheceu Larissa, que tinha 12 anos e alguns meses.

Depois de conversarem por algum tempo, Tiago foi até a casa de Larissa e pediu aos seus pais permissão para namorá-la.

A permissão foi dada, apesar da idade da declarante (12 anos).

Cerca de quatro meses após o início do namoro, Tiago e Larissa mantiveram a primeira relação sexual.

Os pais da menina não sabiam que ela estava mantendo relação sexual com Tiago.

Larissa só contou para a mãe que estava mantendo relação sexual quando desconfiou que estava grávida.

Após a confirmação da gravidez, os pais de Larissa conversaram com Tiago e decidiram que o melhor para a menina e para o bebê era que fossem “morar juntos”.

Depois que o bebê nasceu e já tinha alguns dias, a polícia instaurou inquérito para apurar o crime de estupro de vulnerável praticado por Tiago.

No inquérito, Larissa declarou que todas as relações sexuais foram consensuais, que mora com Tiago e que deseja viver com ele para criarem o filho juntos.

Tiago foi denunciado e condenado em 1ª instância como incurso no art. 217-A c/c art. 234-A, III, do Código Penal, em continuidade delitiva, à pena de 14 anos de reclusão, em regime fechado. A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Inconformada, a defesa recorreu ao STJ que absolveu o réu:

(...) 1. A hipótese trazida nos presentes autos apresenta particularidades que impedem a simples subsunção da conduta narrada ao tipo penal incriminador, motivo pelo qual não incide igualmente a orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial Repetitivo n. 1.480.881/PI e no enunciado sumular n. 593/STJ.

2. Atualmente, o estupro de vulnerável não traz em sua descrição qualquer tipo de ameaça ou violência, ainda que presumida, mas apenas a presunção de que o menor de 14 anos não tem capacidade para consentir com o ato sexual. Assim, para tipificar o delito em tela, basta ser menor de 14 anos. Diante do referido contexto legal, se faz imperativo, sob pena de violação da responsabilidade penal subjetiva, analisar detidamente as particularidades do caso concreto, pela perspectiva não apenas do autor mas também da vítima.

3. Um exame acurado das nuances do caso concreto revela que a conduta imputada, embora formalmente típica, não constitui infração penal, haja vista a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado. De fato, trata-se de dois jovens namorados, cujo relacionamento foi aprovado pelos pais da vítima, sobrevindo um filho e a efetiva constituição de núcleo familiar. Verifica-se, portanto, particularidades que impedem o julgamento uniforme no caso concreto, sendo necessário proceder ao distinguishing ou distinção.

4. A condenação de um jovem de 20 anos, que não oferece nenhum risco à sociedade, ao cumprimento de uma pena de 14 anos de reclusão, revela uma completa subversão do direito penal, em afronta aos princípios fundamentais mais basilares, em rota de colisão direta com o princípio da dignidade humana. Dessa forma, estando a aplicação literal da lei na contramão da justiça, imperativa a prevalência do que é justo, utilizando-se as outras técnicas e formas legítimas de interpretação (hermenêutica constitucional).

(...)

6. Ademais, a incidência da norma penal, na presente hipótese, não se revela adequada nem necessária, além de não ser justa, porquanto sua incidência trará violação muito mais gravosa de direitos que a conduta que se busca apenar. Dessa forma, a aplicação da norma penal na situação dos autos não ultrapassa nenhum dos crivos dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

(...)

9. Há outros aspectos, na situação em foco, que afastam a ocorrência da objetividade jurídica do art. 217-A do CP. Refiro-me não só à continuidade da união estável mas também ao nascimento do filho do casal. E a partir disso, um novo bem jurídico também merece atenção: a absoluta proteção da criança e do adolescente (no caso um bebê). Submeter a conduta do recorrente à censura penal levará ao esfacelamento da união estável, ocasionando na vítima e em seu filho traumas muito mais danosos que se imagina que eles teriam em razão da conduta imputada ao impugnante. No jogo de pesos e contrapesos jurídicos não há, neste caso, outra medida a ser tomada: a opção absolutória na perspectiva da atipicidade material. - Essa particular forma de parametrar a interpretação das normas jurídicas (internas ou internacionais) é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos, bem como tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I, II e III do art.3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo da respectiva Carta Magna caracteriza como "fraterna" (HC n. 94163, Relator Min. Carlos Britto, julgado em 2/12/2008, DJe 22/10/2009). (AgRg no RHC 136.961/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/06/2021, DJe 21/06/2021). (...)

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.919.722/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/8/2021.

 

Existem alguns outros julgados no mesmo sentido, como é o caso do STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.019.664/CE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/12/2022.

 

NO CASO ENVOLVENDO O AGRG NO HC 804.741/MS, O STJ ENTENDEU QUE DEVERIA SEGUIR A REGRA GERAL (TEMA 918 e SÚMULA 593) E MANTEVE A CONDENAÇÃO DO RÉU

O caso concreto, com adaptações e nomes fictícios, foi o seguinte:

Antônio, 49 anos de idade, era professor em um Município do interior, e participava de um projeto escolar.

No projeto, ele conheceu Aline, então com 13 anos de idade, e iniciou um relacionamento amoroso.

Após algum tempo, a menina manteve sua primeira relação sexual com Antônio.

Esse relacionamento foi mantido em segredo dos pais de Aline. Inclusive, frequentemente a menina mentia para a mãe para poder se encontrar com Antônio.

A genitora de Aline finalmente tomou conhecimento do relacionamento amoroso por meio de um guarda do parque, ocasião em que relatou os fatos à polícia e ao Conselho Tutelar.

Naquela oportunidade, Antônio chegou a ir até a residência de Aline para pedir autorização para namorá-la, o que foi negado pela mãe em razão da diferença de idade entre eles.

Em razão desses fatos, Antônio foi denunciado pelo Ministério Público pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

Ao final da instrução, Antônio foi condenado à pena privativa de liberdade de 10 anos e 8 meses de reclusão, em regime inicial fechado.

Após o trânsito em jugado, a defesa ingressou com revisão criminal alegando que o seu caso é semelhante ao que o STJ decidiu no AgRg no REsp 1.919.722/SP, acima explicado, razão pela qual deveria ser aplicado o mesmo entendimento.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

De início, reitera-se que, nos termos da Súmula 593 do STJ, o consentimento da vítima menor de 14 anos e o seu namoro com o acusado não afastam a existência do delito de estupro de vulnerável.

Nessa linha de intelecção, a jurisprudência do STJ tem sistematicamente rejeitado a tese de que a presunção de violência - termo que nem é mais utilizado na atual redação do CP - no estupro de vulnerável pode ser relativizada à luz do caso concreto (STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.934.812-TO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 14/9/2021).

No caso concreto, conforme fundamentadamente apontado pelo Tribunal de Justiça, o caso não se amolda ao distinguishing realizado no julgamento do AgRg no REsp 1.919.722/SP.

No AgRg no REsp 1.919.722/SP, a situação envolvia dois jovens namorados, cujo relacionamento foi aprovado pelos pais da vítima, sobrevindo um filho e a efetiva constituição de núcleo familiar.

No AgRg no HC 804.741/MS, a situação envolve uma relação amorosa que não foi consentida pela genitora da vítima, tanto que, ao tomar conhecimento de que sua filha estava se relacionando com o homem, acionou o Conselho Tutelar e registrou os fatos na Delegacia de Polícia. Ademais, a genitora da menor relatou que sua filha, após se relacionar com o acusado, apresentou comportamento agressivo, além de reprovar de ano na escola, tendo de ser submetida a tratamento psicológico. Somado a isso, conforme foi consignado pelo magistrado de primeiro grau, que se encontra mais próximo dos fatos, a vítima e o acusado tinham a gritante diferença de 36 anos.

A própria vítima e a sua genitora mencionaram espontaneamente que as relações aconteciam na chácara do acusado, localizada em área rural. Assim, mesmo ciente da tenra idade da vítima e do não consentimento de sua responsável legal, o acusado manteve relação sexual com a menor.

Logo, no presente caso (AgRg no HC 804.741/MS) são plenamente válidas a Súmula 593 do STJ e a tese do REsp repetitivo 1.480.881/PI (Tema 918) sobre a impossibilidade de relativização da presunção de vulnerabilidade da vítima.

 

Em suma:

 

 

 


sábado, 29 de abril de 2023

O raciocínio do art. 5º, XL, da CF, que prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal benéfica, também se aplica para o Direito Sancionatório

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

No dia 07 de junho de 2016, um veículo da Transportadora Alfa Ltda. foi autuado por ter dificultado a fiscalização que seria exercida na carga. Trata-se de infração administrativa que, na época, era prevista no art. 36, I, da Resolução nº 4.799/2015*, da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT):

Art. 36. Constituem infrações, quando:

I - o transportador, inscrito ou não no RNTRC, evadir, obstruir ou, de qualquer forma, dificultar a fiscalização durante o transporte rodoviário de cargas: multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais);

 

A Transportadora ingressou com ação anulatória em face da ANTT pedindo a anulação do auto de infração em virtude de vícios formais.

Durante o curso do processo judicial, já depois do despacho de saneamento, a autora peticionou nos autos informando que que havia entrado em vigor a Resolução ANTT nº 5.847/2019, que tinha alterado a redação do art. 36, I, da Resolução 4.799/2015, reduzindo o valor da multa para R$ 550,00.

Diante disso, a autora defendeu que, se fosse mantida a autuação, o valor da multa deveria ser reduzido para R$ 550,00, em atenção ao princípio da retroatividade da lei mais benéfica.

O juiz julgou os pedidos improcedentes. O magistrado assim fundamentou a sentença:

“(...) no que se refere à tese de aplicação retroativa da Resolução ANTT nº 5.847, que alterou a redação do artigo 36, inciso I da Resolução 4.799/2015, estipulando a multa no valor de R$ 550,00, ressalto que ela também não merece acolhida.

E isso porque, em se tratando de matéria de natureza administrativa, ou seja, que não diz respeito à aplicação de penalidades no âmbito penal, tributário, ou, ainda, a outras matérias em relação às quais exista previsão específica de retroatividade das normas ulteriores mais benéficas, deve imperar o princípio da imutabilidade do ato jurídico perfeito, consoante dispõe o art. 6º, I, c/c § 1º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) (...)”

 

Para o STJ, agiu corretamente o magistrado?

NÃO.

O art. 5º, XL, da CF/88 prevê que:

Art. 5º (...)

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

 

Para o STJ, é possível extrair do art. 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

Assim, a norma mais benéfica retroage para beneficiar o infrator, mesmo nos casos em que a sanção aplicada tenha natureza administrativa.

Por este motivo, afigura-se possível a redução do valor da multa administrativa aplicada quando houver a superveniência de norma que comine penalidade mais benéfica para a infração em questão.

 

Seria possível reconhecer essa alteração mais benéfica mesmo já tendo ocorrido o saneamento do processo?

SIM.

O pedido de redução da multa pode ser conhecido mesmo tendo sido formulado após o saneamento dos autos. Isso porque, o art. 322, §2º, do CPC, determina que o pedido deve ser interpretado de acordo com o conjunto da postulação e com o princípio da boa-fé:

Art. 322. (...)

§ 2º A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-fé.

 

A autora, em sua petição inicial, pleiteou a anulação do auto de infração e do processo administrativo, pedido este claramente mais amplo e que contém, ainda que implicitamente, o de redução da multa aplicada. Se, com base no pedido feito pela parte autora, o órgão jurisdicional está autorizado a declarar a nulidade do ato administrativo sancionatório, poderá também reduzir a multa aplicada, já que quem pode o mais, pode o menos.

O fato de tal alegação ter sido apresentada após a estabilização da demanda também não é um óbice para o seu conhecimento, pois o art. 493, do CPC, permite que ocorra a ampliação superveniente da causa de pedir em caso de fato novo constitutivo, modificativo ou extintivo do direito da parte:

Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.

Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir.

 

Em suma:

 

* apenas a título de informação, a Resolução nº 4.799/2015 não está, atualmente, em vigor, tendo sido revogada pela Resolução DC/ANTT nº 5982, de 23/06/2022.

 

Márcio André Lopes Cavalcante

 

sexta-feira, 28 de abril de 2023

O art. 268 do CP veicula norma penal em branco que pode ser complementada por atos normativos infralegais editados não apenas pela União, mas também pelos Estados, Distrito Federal e Municípios

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João era o proprietário de um bar.

Durante a pandemia da Covid-19, o Prefeito expediu decreto determinando que somente poderiam funcionar os estabelecimentos comerciais classificados como essenciais. Os bares não estavam nesse rol de atividades essenciais.

Mesmo com a proibição, o bar de João continuou funcionando normalmente até que houve uma fiscalização e o estabelecimento foi fechado.

João foi denunciado pelo Ministério Público do Estado pela prática do crime de infração de medida sanitária, prevista no art. 268 do Código Penal:

Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

 

A juíza rejeitou a denúncia entendendo que a conduta atribuída ao acusado seria atípica considerando que não haveria norma reguladora do art. 268 do Código Penal apta a ensejar a persecução penal.

A magistrada apresentou, dentre outros, os seguintes argumentos:

“De fato, o artigo 268 do Código Penal é norma penal em branco e exige outra norma jurídica a complementar o tipo e tal deve advir de fonte legislativa Federal, visto que é competência privativa da União legislar sobre direito penal.

(...)

Durante a vigência do período de restrição sanitária decorrente da pandemia ocasionada pela disseminação da COVID-19 coube a Lei Federal 13.979/2020 estabelecer as medidas de enfrentamento à pandemia e nela não há sanções penais a serem aplicadas em caso de inobservância das normas, cujo descumprimento poderia ocasionar a aplicação de multa pecuniária no âmbito do direito administrativo.

Assim, não há norma Federal emanada pelo Poder Executivo ou Legislativo a complementar o tipo penal incriminador e, portanto, eventual inobservância das regras não configura infração penal.

Neste raciocínio, inarredável o reconhecimento da atipicidade da conduta atribuída ao acusado.

De fato, a inobservância das normas estaduais e municipais emanadas pelo Poder Público podem vir a caracterizar infração administrativa, mas não ilícito penal. Concluir de modo diverso é admitir que o Poder Público Estadual ou Municipal passe a legislar sobre direito penal usurpando da competência privativa da União.”

 

A sentença foi mantida pela Turma Recursal.

Ainda inconformado, o Ministério Público interpôs recurso extraordinário.

 

O STF deu provimento ao recurso do Ministério Público? A conduta praticada, em tese, configura o crime do art. 268 do CP?

SIM.

O art. 268 do Código Penal é norma penal em branco considerando que o tipo fala em “infringir determinação do poder público”. Assim, o tipo deve ser complementado por ato normativo que imponha regras para impedir a introdução ou a propagação de doença contagiosa.

A controvérsia residia em saber quem deveria editar esse complemento.

A discussão aqui travada foi, portanto, definir se seria possível que a complementação dessa norma penal em branco fosse feita por meio de um ato normativo estadual ou municipal.

O STF entendeu que sim.

Assim, se o Estado, o Distrito Federal ou o Município editou ato normativo para combater a propagação do vírus SARS-CoV-2, causador da Covid-19, e essa determinação foi descumprida, essa conduta se mostra apta a se enquadrar, abstratamente, no crime do art. 268 do Código Penal.

Em outras palavras, o complemento normativo do art. 268 do CP não precisa, necessariamente, ser editado pela União.

 

Mas se esse complemento é fixado por Estado, DF ou Município, não estaria havendo uma violação à competência privativa da União para legislar sobre direito penal?

NÃO. O art. 268 do Código Penal veicula, em sua redação, o preceito primário incriminador, isto é, o núcleo essencial da conduta punível. Isso significa que a União exerceu, de forma legítima e com objetivo de salvaguardar a incolumidade da saúde pública, sua competência privativa de legislar sobre direito penal, na forma do art. 22, I, da CF/88.

No entanto, o referido tipo penal configura norma penal em branco heterogênea, razão pela qual necessita de complementação por atos normativos infralegais, tais como decretos, portarias e resoluções, de modo a se tornar possível a aferição da conduta nuclear tipificada, qual seja, infringir normas estabelecidas pelo Poder Público para evitar a introdução ou disseminação de doença contagiosa.

Na espécie, essa complementação se faz mediante ato do poder público, compreendida a competência de quaisquer dos entes federados.

Ademais, essa complementação não se reveste de natureza criminal. Trata-se, via de regra, de norma administrativa e técnico-científica, o que justifica a possibilidade de edição do ato normativo suplementador pelo ente federado com competência administrativa para tanto.

Adotar entendimento contrário restringiria a competência concorrente e outorgar-se-ia, ao Poder Executivo federal, competência exclusiva na matéria, legitimando o afastamento das deliberações levadas a efeito pelos entes estaduais, municipais ou distrital, em absoluta contrariedade à jurisprudência do STF.

De acordo com o entendimento do STF, a competência para proteção da saúde, no plano administrativo e no legislativo, é compartilhada entre a União, o Distrito Federal, os estados e os municípios, inclusive para impor medidas restritivas destinadas a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.

Conforme decidiu o STF:

Além da União, os Estados/DF e Municípios também podem adotar medidas de combate à Covid-19 considerando que a proteção da saúde é de competência concorrente.

Assim, as providências adotadas pelo Governo Federal não afastam atos a serem praticados por Estado, o Distrito Federal e Município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior.

STF. Plenário. ADI 6341 MC-Ref/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 15/4/2020 (Info 973).

 

Vale destacar que a determinação do poder público, editada com a finalidade de impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, precisa ser clara, baseada em evidências científicas, cogente – não bastando a mera recomendação ou protocolos de conduta – e em conformidade com o princípio da proporcionalidade. Desse modo, mostra-se possível o exame de constitucionalidade e de legalidade das normas complementadoras a ser realizado a cada ato normativo e a cada fato imputado.

Diante do exposto, podemos concluir que o descumprimento das medidas e dos atos normativos de controle epidemiológico previstos na Lei nº 13.979/2020, editados pelos entes federados em prol da incolumidade pública, enseja consequências no campo do direito penal.

 

Em resumo:

A complementação de norma penal em branco por ato normativo estadual, distrital ou municipal, para aplicação do tipo de infração de medida sanitária preventiva (Código Penal, art. 268), não viola a competência privativa da União para legislar sobre direito penal (art. 22, I, CF/88).

STF. Plenário. ARE 1.418.846/RS, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 25/3/2023 (Repercussão Geral – Tema 1246) (Info 1088).

 

Veja a tese fixada pelo STF:

O art. 268 do Código Penal veicula norma penal em branco que pode ser complementada por atos normativos infralegais editados pelos entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), respeitadas as respectivas esferas de atuação, sem que isso implique ofensa à competência privativa da União para legislar sobre direito penal (art. 22, I, CF/88).

STF. Plenário. ARE 1.418.846/RS, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 25/3/2023 (Repercussão Geral – Tema 1246) (Info 1088).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, reconheceu a existência da repercussão geral da questão constitucional suscitada (Tema 1.246 da repercussão geral) e, no mérito, por maioria, reafirmou a jurisprudência dominante sobre a matéria para dar provimento ao recurso extraordinário e, consequentemente, determinar o prosseguimento da ação penal ao afastar a alegação de atipicidade da conduta por ausência de norma complementadora do art. 268 do Código Penal.

 

 


quinta-feira, 27 de abril de 2023

Lei estadual (ou distrital) não pode autorizar o pagamento parcelado, ou com cartão de crédito, das multas de trânsito

                                                                                

A situação concreta foi a seguinte:

No Distrito Federal foi editada a Lei distrital nº 5.551/2015, que possibilitou o parcelamento das multas aplicadas aos condutores de veículos automotores, em até 12 vezes. Além disso, permitiu o pagamento com cartão de crédito dos débitos junto ao DETRAN. Confira:

Art. 1º As multas aplicadas aos veículos automotores, emitidas por órgão ou entidade executiva de trânsito e executiva rodoviária do Distrito Federal, podem ser parceladas em até 12 vezes.

Parágrafo único. A solicitação do parcelamento previsto no caput e o pagamento da primeira parcela garantem ao proprietário do veículo a emissão do Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo.

Art. 2º Os débitos junto ao Departamento de Trânsito do Distrito Federal – DETRAN-DF podem ser pagos com cartão de crédito, ficando a cargo dos usuários todas as taxas cobradas pela respectiva operadora do cartão de crédito.

Art. 3º O Poder Executivo regulamentará esta Lei no prazo de 90 dias, contados da data de sua publicação.

 

ADI

O Procurador-Geral da República ajuizou ADI contra a Lei argumentando que ela tratou sobre trânsito, assunto que é de competência privativa da União (art. 22, XI, da Constituição Federal).

 

O argumento invocado pelo PGR foi acolhido pelo STF?

SIM.

A lei distrital teve boa intenção ao criar mecanismos para facilitar a quitação dos débitos pelos motoristas multados, auxiliando principalmente aqueles que utilizam os seus veículos como instrumento de trabalho.

A despeito disso, a norma impugnada padece de vício de inconstitucionalidade formal.

Conforme prevê o art. 22, XI, da CF, compete privativamente à União legislar sobre trânsito:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(...)

 XI - trânsito e transporte;

 

Com base nesse comando constitucional, o STF possui entendimento consolidado no sentido da inconstitucionalidade de normas estaduais que disponham sobre as formas de pagamento das multas aplicadas pelos órgãos de fiscalização de trânsito, bem como daquelas que, de algum modo, inovem em matéria pertinente à disciplina normativa do trânsito.

Vale ressaltar, inclusive, que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.450/2020 destinado a alterar o Código de Trânsito Brasileiro, a fim de permitir o parcelamento de multas decorrentes de infrações de trânsito.

 

Em suma:

É inconstitucional — por violar a competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, XI, CF/88) — lei distrital que prevê a possibilidade de parcelamento de multas decorrentes de infrações de trânsito e o pagamento de débitos com cartão de crédito.

STF. Plenário. ADI 6578/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 27/3/2023 (Info 1088).

 

Com base nesse entendimento, o Plenário, por unanimidade, julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 5.551/2015 do Distrito Federal.

 


quarta-feira, 26 de abril de 2023

A mudança total do nome registral não é possível por falta de previsão legal e respeito à segurança jurídica

 

Imagine a seguinte situação adaptada:

Carla Santos possui origem indígena.

Apesar de não ter sido criada na cultura indígena, os genitores preservaram diversos costumes de seu povo, como uso de redes, bonecas de palha, miçangas, tratamento com ervas, rezas etc.

Quando tinha 20 anos, Carla começou a participar de reuniões na Aldeia Maracanã, buscando resgatar suas origens. Descobriu então que pertencia a etnia Puri. Passou a adotar no dia a dia os costumes e tradições indígenas.

Alguns anos depois, ela fundou a Aldeia Uchô Puri e passou a ser reconhecida como líder da comunidade.

Carla deixou de se identificar com seu nome registral, que não condiz com a atual escolha de vida nem com a sua ancestralidade.

Diante de todo esse contexto, Carla ingressou com ação pedindo a alteração de seu registro civil de nascimento. A autora requereu a completa supressão e substituição total do nome registral. Pediu para agora seu nome ser Opetahra Nhâmarúri Puri Coroado.

 

A discussão quanto a essa controvérsia chegou até o STJ. É possível atender o pedido de Carla?

O STJ entendeu que não.

A legislação pátria adota o princípio da definitividade do registro civil da pessoa natural, consolidada na recente alteração promovida pela Lei nº 14.382/2022, de modo que o prenome e nome são, em regra, definitivos a fim de garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações jurídicas.

A doutrina e a jurisprudência, no entanto, tem atribuído interpretação mais flexível e ampla às normas e consentânea com os fins sociais a que se destinam, permitindo o abrandamento da regra geral, para permitir a alteração do nome em casos específicos.

A presente hipótese, no entanto, trata de situação bem diversa das já julgadas pelo STJ. Isso porque a autora pretendia a completa supressão do nome registrar e a sua total substituição total para adotar outros prenome e sobrenomes completos.

O art. 56 da Lei nº 6.015/73, com redação dada pela Lei nº 14.382/2022, estabelece que:

Art. 56. A pessoa registrada poderá, após ter atingido a maioridade civil, requerer pessoalmente e imotivadamente a alteração de seu prenome, independentemente de decisão judicial, e a alteração será averbada e publicada em meio eletrônico.

§ 1º A alteração imotivada de prenome poderá ser feita na via extrajudicial apenas 1 (uma) vez, e sua desconstituição dependerá de sentença judicial.

§ 2º A averbação de alteração de prenome conterá, obrigatoriamente, o prenome anterior, os números de documento de identidade, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, de passaporte e de título de eleitor do registrado, dados esses que deverão constar expressamente de todas as certidões solicitadas.

§ 3º Finalizado o procedimento de alteração no assento, o ofício de registro civil de pessoas naturais no qual se processou a alteração, a expensas do requerente, comunicará o ato oficialmente aos órgãos expedidores do documento de identidade, do CPF e do passaporte, bem como ao Tribunal Superior Eleitoral, preferencialmente por meio eletrônico.

§ 4º Se suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade ou simulação quanto à real intenção da pessoa requerente, o oficial de registro civil fundamentadamente recusará a retificação.

 

A partir da análise desse dispositivo, podemos chegar a algumas conclusões:

a) é possível uma única alteração imotivada de prenome;

b) mesmo em caso de alteração do nome, deve-se preservar os apelidos de família;

c) é obrigatória a observância de cautelas formais, relativas à preservação das anotações inerentes às alterações, tanto junto ao próprio registro público, como em relação às demais repartições publicadas incumbidas da emissão de documentos de identificação da pessoa física.

 

Na presente hipótese, verifica-se que a autora não quer apenas substituir seu prenome por outro. Ela também pretendia excluir de seu nome os patronímicos materno e paterno, apagando, assim, completamente, qualquer menção a sua estirpe familiar.

Existem várias hipóteses previstas na Lei de Registros Públicos que relativizam o princípio da definitividade do nome. Vale ressaltar, contudo, que nenhuma delas contempla a possibilidade de exclusão total dos patronímicos materno e paterno registrados, com substituição por outros de livre escolha e criação do titular e sem qualquer comprovação ou mínima relação com as linhas ascendentes, com concomitante alteração voluntária também do prenome registrado.

A Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 3/2012, admite a retificação do assento de nascimento de pessoa indígena, para inclusão das informações constantes do art. 2º, caput e § 1º, relativas a nome indígena e à respectiva etnia. Não há previsão, no entanto, de adoção das mesmas medidas para pessoa que, sem mínima comprovação de origem autóctone brasileira, deseja tornar-se indígena, por razões meramente subjetivas e voluntárias, com substituição total do nome e exclusão dos apelidos de família.

A indicada Resolução tutela os direitos de pessoa comprovadamente indígena, integrada ou não, sendo tal condição genética pré-requisito necessário para o alcance da norma, mas não ampara os caso em que existe apenas o forte e sincero desejo de passar a ser tida como indígena, sem que se comprove origem e ascendência de povo pré-colombiano.

 

Em suma:

Não é possível a completa supressão e substituição total do nome registral, por pessoa autoidentificada como indígena, por ausência de previsão legal, bem como por respeito ao princípio da segurança jurídica e das relações jurídicas a serem afetadas.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.927.090-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. para acórdão Ministro Raul Araújo, julgado em 21/3/2023 (Info 768).

 

 


terça-feira, 25 de abril de 2023

INFORMATIVO Comentado 1088 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1088 DO STF


Direito Constitucional

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS

§  É inconstitucional lei estadual que estabelece obrigações contratuais para as operadoras de planos de saúde, mesmo que o objetivo da norma seja o de proteger pessoas com deficiência.

§  Lei estadual (ou distrital) não pode autorizar o pagamento parcelado, ou com cartão de crédito, das multas de trânsito.

 

PODER JUDICIÁRIO

§  Não é o TJDFT (e sim o STJ) quem julga habeas corpus impetrado contra ato do: i) Presidente e membros do TJDFT; ii) Presidente e membros do TCDF; iii) Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

CONCURSO PÚBLICO

§  O professor estrangeiro aprovado em concurso para instituição de ensino federal tem direito de ser nomeado, salvo se houver restrição expressa no edital, devidamente justificada e passível de controle judicial.

 

DIREITO PENAL

CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA

§  O art. 268 do CP veicula norma penal em branco que pode ser complementada por atos normativos infralegais editados não apenas pela União, mas também pelos Estados, Distrito Federal e Municípios.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

ICMS

§  As distribuidoras de combustíveis não possuem direito a crédito do ICMS relativo ao álcool etílico anidro combustível adquirido de usinas ou destilarias quando ocorrer o diferimento do pagamento do ICMS.

 

DIREITO FINANCEIRO

LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL

§  É inconstitucional lei distrital (ou estadual) que estabeleça que determinadas situações não se enquadram na previsão do § 1º do art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal.


Aplica-se o prazo prescricional de 5 anos para a ação de ressarcimento de benefício previdenciário pago indevidamente

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

João requereu administrativamente junto ao INSS a concessão de aposentadoria.

O pedido foi deferido e ele começou a receber o benefício a partir de 05/1997.

Posteriormente, em um procedimento administrativo de auditoria interna, o INSS constatou que João apresentou documentos fraudulentos para comprovar os vínculos empregatícios.

Descoberta a ilegalidade, o pagamento do benefício foi cessado em 09/2007.

Em 10/2016, o INSS ajuizou ação para a cobrança dos valores recebidos indevidamente por João.

O juiz extinguiu o processo com resolução do mérito por considerar prescrita a pretensão ressarcitória.

Para o magistrado, o INSS tinha um prazo de 5 anos para ajuizar a ação após a descoberta do pagamento indevido, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932:

Art. 1º As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

 

Irresignado, o INSS recorreu alegando que deveria ser aplicada a parte final do §5º do art. 37 da CF/88, que prevê a imprescritibilidade do ressarcimento ao erário nos casos de dolo, fraude ou má-fé:

Art. 37 (...)

§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.

 

O STJ concordou com os argumentos do INSS? Essa pretensão é imprescritível como alegou a autarquia?

NÃO.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 669.069/MG, em sede de repercussão geral, definiu a tese de que:

É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil.

STF. Plenário. RE 669069/MG, Rel. Min Teori Zavascki, julgado em 03/02/2016 (Repercussão Geral – Tema 666).

 

Dito de outro modo, se o Poder Público sofreu um dano ao erário decorrente de um ilícito civil e deseja ser ressarcido, ele deverá ajuizar a ação no prazo prescricional previsto em lei. Não há que se falar em pretensão imprescritível.

Esse Tema 666 é aplicável ao caso dos autos, uma vez que não se trata de improbidade administrativa, tampouco há notícia de sentença criminal transitada em julgado em desfavor do réu, o que enseja o reconhecimento de ato ilícito civil e impõe o afastamento da tese de imprescritibilidade aventada pelo INSS.

Sobre o tema, o STJ entende que:

(i) configurada a má-fé do beneficiário no recebimento dos valores e

(ii) na ausência de prazo prescricional específico definido em lei, é aplicável o prazo disposto no art. 1º do Decreto 20.910/1932, em respeito aos princípios da isonomia e simetria.

 

A pretensão de ressarcimento de danos ao erário não decorrente de ato de improbidade, como é o caso dos autos, prescreve em cinco anos.

STJ. 2ª Turma. AgInt no REsp 1.835.383/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 1/6/2021.

 

Aplica-se o prazo prescricional de 5 anos, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932, à ação de ressarcimento de benefício previdenciário pago indevidamente, quando comprovada a má-fé do beneficiário, em atenção aos princípios da isonomia e simetria.

STJ. 2ª Turma. AREsp 1.441.458/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 20/10/2020.

 

A prescrição é a regra no ordenamento jurídico. Assim, ainda que configurada a má-fé do beneficiário no recebimento dos valores, inexistindo prazo específico definido em lei, o prazo prescricional aplicável é o de 5 anos, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932, em respeito aos princípios da isonomia e simetria.

Enquanto não reconhecida a natureza ímproba ou criminal do ato causador de dano ao erário, a pretensão de ressarcimento sujeita-se normalmente aos prazos prescricionais.

STJ. 1ª Turma. REsp 1825103/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 12/11/2019.

 

Em suma:

 

DOD Plus – informações complementares

 

SITUAÇÃO

PRESCRIÇÃO

Ação de reparação por danos causados à Fazenda Pública

em razão da prática de ILÍCITO CIVIL

Ex: particular, dirigindo seu veículo, por imprudência, colide com o carro de um órgão público estadual em serviço. Estado terá o prazo de 5 anos para buscar o ressarcimento.

é PRESCRITÍVEL

(STF RE 669069/MG)

Tema 666

Pretensão de ressarcimento ao erário

fundada em decisão do Tribunal de Contas

é PRESCRITÍVEL

(STF RE 636886/AL)

Tema 899

Pretensão de ressarcimento de benefício previdenciário pago indevidamente, quando comprovada a má-fé do beneficiário, não decorrente de ato de improbidade administrativa

é PRESCRITÍVEL

(5 anos)

(STJ AgInt no REsp 1.998.744-RJ)

Ação de ressarcimento decorrente de

ato de improbidade administrativa praticado com DOLO

(obs: depois da Lei 14.230/2021, só existe ato de improbidade administrativa doloso)

é IMPRESCRITÍVEL

(§ 5º do art. 37 da CF/88)

STF RE 852475/SP

Tema 897

Ação pedindo a reparação civil decorrente de

DANOS AMBIENTAIS

É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental.

Ex: não há prazo para ACP ajuizada pelo MP objetivando a reparação de danos decorrentes de degradação ao meio ambiente.

Embora a Constituição e as leis ordinárias não tratem sobre prazo prescricional para a reparação de danos civis ambientais, a reparação do meio ambiente é direito fundamental indisponível, devendo, portanto, ser reconhecida a imprescritibilidade dessa pretensão.

é IMPRESCRITÍVEL

(STF RE 654833)

Tema 999