domingo, 31 de março de 2024

A constituição de família não exclui, per se, a punibilidade do crime de estupro de vulnerável

PRATICAR SEXO COM MENOR DE 14 ANOS É CRIME

A Lei nº 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

Antes do art. 217-A, ou seja, antes da Lei nº 12.015/2009, as condutas de praticar conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos já eram consideradas crimes?

SIM. Tais condutas poderiam se enquadrar nos crimes previstos no art. 213 c/c art. 224, “a” (estupro com violência presumida por ser menor de 14 anos) ou art. 214 c/c art. 224, “a” (atentado violento ao pudor com violência presumida por ser menor de 14 anos), todos do Código Penal, com redação anterior à Lei n.° 12.015/2009.

Desse modo, apesar de os arts. 213, 214 e 224 do CP terem sido revogados pela Lei nº 12.015/2009, não houve abolitio criminis dessas condutas, ou seja, continua sendo crime praticar estupro ou ato libidinoso com menor de 14 anos. No entanto, essas condutas, agora, são punidas pelo art. 217-A do CP. O que houve, portanto, foi a continuidade normativa típica, que ocorre quando uma norma penal é revogada, mas a mesma conduta continua sendo crime no tipo penal revogador, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário.

 

Antes da Lei nº 12.015/2009, se o agente praticasse atentado violento ao pudor (ex: coito anal) com um adolescente de 13 anos, haveria crime mesmo que a vítima consentisse (concordasse) com o ato sexual? Haveria crime mesmo que a vítima já tivesse tido outras relações sexuais com outros parceiros anteriormente? Essa presunção de violência era absoluta?

SIM. A presunção de violência nos crimes contra os costumes cometidos contra menores de 14 anos, prevista na antiga redação do art. 224, alínea “a”, do CP (antes da Lei nº 12.015/2009), possuía caráter absoluto, pois constituía critério objetivo para se verificar a ausência de condições de anuir com o ato sexual.

Assim, essa presunção absoluta não podia ser afastada (relativizada) mesmo que a vítima tivesse dado seu “consentimento” porque nesta idade este consentimento seria viciado (inválido). Logo, mesmo que a vítima tivesse experiência sexual anterior, mesmo que fosse namorado do autor do fato, ainda assim haveria o crime.

A presunção de violência era absoluta nos casos de estupro/atentado violento ao pudor contra menor de 14 anos. Nesse sentido: STJ. 3ª Seção. EREsp 1152864/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 26/02/2014.

 

E, atualmente, ou seja, após a Lei n.°  12.015/2009?

Continua sendo crime praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso contra menor de 14 anos. Isso está expresso no art. 217-A do CP e não interessa se a vítima deu consentimento, se namorava o autor do fato etc. A discussão sobre presunção de violência perdeu sentido porque agora a lei incluiu a idade (menor de 14 anos) no próprio tipo penal. Manteve relação sexual com menor de 14 anos: estupro de vulnerável.

A Lei nº 12.015/2009 acrescentou o art. 217-A ao Código Penal, criando um novo delito, chamado de “estupro de vulnerável”:

Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

 

A fim de que não houvesse mais dúvidas sobre o tema, o STJ pacificou a questão editando a Súmula 593.

O Congresso Nacional decidiu incorporar na legislação esse entendimento e acrescentou o § 5º ao art. 217-A do CP repetindo, em parte, a conclusão da súmula e estendendo o mesmo raciocínio para outras espécies de pessoa vulnerável. Veja:

Art. 217-A. (...)

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (Inserido pela Lei nº 13.718/2018)

 

Em algumas localidades do país (ex: determinadas comunidades do interior), seria possível dizer que não há crime, considerando que é costume a prática de atos sexuais com crianças? É possível excluir o crime de estupro de vulnerável com base no princípio da adequação social?

NÃO. Segundo afirmou o Min. Rogério Schietti, a prática sexual envolvendo menores de 14 anos não pode ser considerada como algo dentro da "normalidade social". Não é correto imaginar que o Direito Penal deva se adaptar a todos os inúmeros costumes de cada uma das microrregiões do país, sob pena de se criar um verdadeiro caos normativo, com reflexos danosos à ordem e à paz públicas.

Ademais, o afastamento do princípio da adequação social aos casos de estupro de vulnerável busca evitar a carga de subjetivismo que acabaria marcando a atuação do julgador nesses casos, com danos relevantes ao bem jurídico tutelado, que é o saudável crescimento físico, psíquico e emocional de crianças e adolescentes. Esse bem jurídico goza de proteção constitucional e legal, não estando sujeito a relativizações.

 

 

Na sentença, durante a dosimetria, o juiz pode reduzir a pena-base do réu alegando que a vítima (menor de 14 anos) já tinha experiência sexual anterior ou argumentando que a vítima era homossexual?

Claro que NÃO.

Em se tratando de crime sexual praticado contra menor de 14 anos, a experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido não servem para justificar a diminuição da pena-base a título de comportamento da vítima.

A experiência sexual anterior e a eventual homossexualidade do ofendido, assim como não desnaturam (descaracterizam) o crime sexual praticado contra menor de 14 anos, não servem também para justificar a diminuição da pena-base, a título de comportamento da vítima.

STJ. 6ª Turma. REsp 897.734-PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 3/2/2015 (Info 555).

 

As conclusões acima expostas foram consolidadas pelo STJ no julgamento do Recurso Especial n. 1.480.881/PI (Tema 918) e na Súmula 593:

Súmula 593-STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente.

 

O que acontece se um garoto de 13 anos praticar sexo consensual com a sua namorada de 12 anos?

Haverá o que a doutrina denomina de estupro bilateral. Assim, ocorre o “estupro bilateral” quando dois menores de 14 anos praticam conjunção carnal ou outro ato libidinoso entre si. Em outras palavras, tanto o garoto como a garota, neste exemplo, serão autores e vítimas, ao mesmo tempo, de ato infracional análogo ao crime de estupro de vulnerável.

 

Em que consiste a chamada “exceção de Romeu e Julieta”?

Trata-se de uma tese defensiva segundo a qual se o agente praticasse sexo consensual (conjunção carnal ou ato libidinoso) com uma pessoa menor de 14 anos, não deveria ser condenado se a diferença entre o agente e a vítima não fosse superior a 5 anos. Ex: Lucas, 18 anos e 1 dia, pratica sexo com sua namorada de 13 anos e 8 meses. Pela “exceção de Romeu e Julieta” Lucas não deveria ser condenado por estupro de vulnerável (art. 217-A do CP).

A teoria recebe esse nome por inspiração da peça de Willian Shakespeare na qual Julieta, com 13 anos, mantém relação sexual com Romeu. Assim, Romeu, em tese, teria praticado estupro de vulnerável.

A “exceção de Romeu e Julieta”, em regra, não é aceita pela jurisprudência, ou seja, mesmo que a diferença entre autor e vítima seja menor que 5 anos, mesmo que o sexo seja consensual e mesmo que eles sejam namorados, em regra, há crime.

 

EXPLICAÇÃO DO CASO JULGADO PELO STJ

Imagine a seguinte situação adaptada:

Carolina, então com 13 anos de idade, iniciou um “namoro” com Rogério, 20 anos de idade, relacionamento que ocorria às escondidas.

A família de Carolina, quando descobriu o relacionamento, acionou o Conselho Tutelar, que tentou afastar Rogério da menina, mas eles continuaram se encontrando escondido.

Em seguida, Carolina, ainda com 13 anos, apareceu grávida de Rogério.

Os fatos foram levados ao conhecimento do Ministério Público, que ofereceu denúncia contra Rogério, por estupro de vulnerável.

No curso da instrução, Carolina foi ouvida e, em juízo, confirmou os fatos narrados, dizendo que, antes de completar 14 anos, teve entre 6 e 8 relações sexuais com Rogério.

Afirmou que sua família não tinha conhecimento do “namoro”, que ocorria às escondidas, sendo certo que, quando descobriram, o relacionamento não foi aceito.

Ao final da instrução, sobreveio sentença absolvendo o acusado.

 

Sentença absolutória

De acordo com o magistrado, a vítima “já era adolescente e tinha consciência de sua conduta”, o que conduziu ao afastamento da “violência presumida”.

Na sua visão, a imposição de punição ao réu por crime de tamanha gravidade seria inclusive prejudicial à vítima e à família com ela formada, que ficaria sem seu provedor financeiro, sendo acolhida, assim, a tese absolutória também com fulcro em uma harmonia entre o Direito Penal e as normas constitucionais e infraconstitucionais que garantem a liberdade sexual e protegem a família.

O Tribunal de Justiça, contudo, reformou a sentença, condenando o réu.

A defesa impetrou, então, habeas corpus no STJ argumentando que “a conduta imputada, embora formalmente típica, não constitui infração penal, haja vista a ausência de relevância social e de efetiva vulneração ao bem jurídico tutelado”. Ressaltou que eles “eram namorados na época e que o relacionamento culminou na efetiva constituição de núcleo familiar, com o nascimento de uma filha”.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

 

Art. 217-A, do CP: presunção absoluta de violência

O STJ, no julgamento do REsp Repetitivo 1.480.881/PI, consolidou o entendimento no sentido de que é absoluta a violência em casos de prática de conjunção carnal ou de ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 anos.

Na ocasião, a Tese firmada foi a seguinte: “Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos. O consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime”.

A matéria foi, inclusive, sumulada no teor do Enunciado n. 593 do STJ, in verbis: “O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.

Desse modo, há mais de sete anos, o STJ vem decidindo não relativizar a presunção de vulnerabilidade das vítimas desse delito, como já foi praxe no passado.

O entendimento é tão incontroverso que, em 2018, foi editada a Lei nº 13.718, que acrescentou o § 5º no art. 217-A do Código Penal prevendo o seguinte:

Art. 217-A (...)

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.

 

Caso concreto

No habeas corpus a defesa tenta repristinar uma antiga jurisprudência, que delegava ao juiz a avaliação subjetiva – porque não amparada em nenhum dado científico ou documentalmente comprovado – sobre a vulnerabilidade da vítima, tomando como referência o seu comportamento no evento criminoso imputado a quem com ela manteve conjunção carnal, ciente de sua idade inferior a 14 anos.

Assim, as alegações defensivas apresentam o nítido propósito de se voltar a tempos em que todo processo por estupro de vulnerável acabava por julgar não a conduta do acusado da conduta delitiva, mas a vítima, para aferir se ela, pela sua maturidade, por sua experiência sexual anterior, pelo tipo de relacionamento que mantinha com o acusado ou pela existência de consentimento ao ato sexual, era merecedora de proteção jurídico-penal ou não.

Nas exatas palavras do Min. Rogério Schietti, “os que se recordam desse tempo bem sabem o grau de insegurança jurídica que essa jurisprudência produzia, pois induzia todo tipo de argumentação, pelo acusado, para demonstrar que a vítima não era concretamente vulnerável”.

No caso concreto, ficou comprovado que o réu praticou, por diversas vezes, conjunção carnal com a vítima, que tinha 13 anos à época dos fatos, o que ocasionou, inclusive, a sua gravidez e o nascimento de uma filha.

 

Ausência de consentimento da vítima

Praticamente todos os países do mundo repudiam o sexo entre um adulto e uma criança ou adolescente e tipificam como crime a conduta de praticar atos libidinosos com pessoa ainda incapaz de ter o seu consentimento reconhecido como válido, em face de seu imaturo desenvolvimento psíquico e emocional.

Não há vontade válida da vítima em tais casos, quer para consentir livremente o ato sexual, quer para, posteriormente, decidir se o réu deve ou não ser processado.

Ademais, a ação penal é pública incondicionada, não demanda representação ou nenhuma manifestação da vítima para seguir seu iter até a sentença definitiva.

O réu praticou o delito reiteradas vezes, apesar de haver sido repreendido pelos pais da garota e pelo próprio Conselho Tutelar, circunstância deliberadamente ignorada por ele.

 

Nascimento de criança – circunstância que torna mais gravosa a conduta

Quanto à circunstância de que houve o nascimento de uma filha, o relator consignou que “parece-me que tal fato torna ainda mais gravosa a conduta do agente, porquanto precocemente impõe a maternidade à vítima, cuja idade implica riscos à sua saúde física e mental, bem como subtrai-lhe a vivência da adolescência como tal e lhe adjudica tarefas e responsabilidades de uma pessoa adulta, sem ter ainda, para tanto, o necessário amadurecimento de sua constituição física e psíquica”.

Ademais, a gravidez da vítima, por força de lei, incrementa a reprovabilidade da ação, atraindo até mesmo uma causa de aumento de pena (art. 234-A, III, do CP):

Art. 234-A. Nos crimes previstos neste Título a pena é aumentada:

(...)

III - de metade a 2/3 (dois terços), se do crime resulta gravidez; (Redação dada pela Lei 13.718/2018)

 

Constituição de família

Vale ressaltar que existem julgados do STJ no sentido de que, em situações muito excepcionais o crime de estupro de vulnerável não deve ensejar a punição de seu autor – por razões humanitárias e de ponderação dos interesses e dos bens em conflito. Nesse sentido:

 

Contudo, esse não é o caso dos autos porque há registro de que o relacionamento não subsiste e que não houve concordância dos pais.

 

Em suma:

A constituição de família não exclui, per se, a punibilidade do crime de estupro de vulnerável. 

STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 849.912/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 20/2/2024 (Info 803).


sábado, 30 de março de 2024

O inadimplemento da pena de multa impede a extinção da punibilidade mesmo que já tenha sido cumprida a pena privativa de liberdade ou a pena restritiva de direitos?

NOÇÕES GERAIS SOBRE A MULTA

Sanção penal é a resposta dada pelo Estado à pessoa que praticou uma infração penal.

Existem duas espécies de sanção penal:

1) Pena.

2) Medida de segurança.

 

Multa

Multa é uma espécie de pena, por meio da qual o condenado fica obrigado a pagar uma quantia em dinheiro que será revertida em favor do Fundo Penitenciário.

Pagamento da multa. A pena de multa é fixada na própria sentença condenatória. Depois que a sentença transitar em julgado, o condenado terá um prazo máximo de 10 dias para pagar a multa imposta (art. 50 do CP). O Código prevê a possibilidade de o condenado requerer o parcelamento da multa em prestações mensais, iguais e sucessivas, podendo o juiz autorizar, desde que as circunstâncias justifiquem (ex.: réu muito pobre, multa elevadíssima etc.). O parcelamento deverá ser feito antes de esgotado o prazo de 10 dias. O Juiz, antes de decidir, poderá determinar diligências para verificar a real situação econômica do condenado e, ouvido o Ministério Público, fixará o número de prestações (art. 169, § 1º da LEP). Se o condenado for impontual ou se melhorar de situação econômica, o Juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá revogar o benefício (art. 169, § 2º da LEP).

 

O que acontece caso o condenado não pague nem parcele a multa no prazo de 10 dias?

• Antes da Lei nº 9.268/96: se o condenado, deliberadamente, deixasse de pagar a pena de multa, ela deveria ser convertida em pena de detenção. Em outras palavras, a multa era transformada em pena privativa de liberdade.

• Atualmente: a Lei nº 9.268/96 alterou o art. 51 do CP e previu que, se a multa não for paga, ela será considerada dívida de valor e deverá ser exigida por meio de execução (não se permite mais a conversão da pena de multa em detenção).

 

Antes da Lei 9.268/96

Depois da Lei 9.268/96 (ATUALMENTE)

Art. 51. A multa converte-se em pena de detenção, quando o condenado solvente deixa de paga-lá ou frustra a sua execução.

Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

 

Multa permaneceu com caráter penal

Importante esclarecer que, mesmo com essa mudança feita pela Lei nº 9.268/96, a multa continua tendo caráter de sanção criminal, ou seja, permanece sendo uma pena, por força do art. 5º, XLVI, “c”, da CF/88:

Art. 5º (...)

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

c) multa;

 

Assim, a única coisa que a Lei nº 9.268/96 fez foi mudar a forma de cobrança da multa não paga: antes, ela virava pena de detenção; agora, deve ser cobrada por meio de execução.

 

Quem executa a pena de multa?

STJ: Fazenda Pública

STF:

Prioritariamente: o Ministério Público

Subsidiariamente: a Fazenda Pública

O STJ sempre sustentou que, como se trata de dívida de valor, a pena de multa deveria ser executada pela Fazenda Pública por meio de execução fiscal que tramita na vara de execuções fiscais.

O rito a ser aplicado seria o da Lei nº 6.830/80.

A execução da pena de multa ocorreria como se estivesse sendo cobrada uma multa tributária.

Não se aplica a Lei nº 7.210/84 (LEP).

 

Esse era o entendimento pacífico do STJ, tanto que foi editada uma súmula nesse sentido.

 

Súmula 521-STJ: A legitimidade para a execução fiscal de multa pendente de pagamento imposta em sentença condenatória é exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública.

A Lei nº 9.268/96, ao considerar a multa penal como dívida de valor, não retirou dela o caráter de sanção criminal.

Diante de tal constatação, não há como retirar do MP a competência para a execução da multa penal, considerado o teor do art. 129 da CF/88, segundo o qual é função institucional do MP promover privativamente a ação penal pública, na forma da lei.

Promover a ação penal significa conduzi-la ao longo do processo de conhecimento e de execução, ou seja, buscar a condenação e, uma vez obtida esta, executá-la. Caso contrário, haveria uma interrupção na função do titular da ação penal.

Ademais, o art. 164 da LEP é expresso ao reconhecer essa competência do MP. Esse dispositivo não foi revogado expressamente pela Lei nº 9.268/96.

Vale ressaltar, entretanto que, se o titular da ação penal, mesmo intimado, não propuser a execução da multa no prazo de 90 dias, o juiz da execução criminal deverá dar ciência do feito ao órgão competente da Fazenda Pública (federal ou estadual, conforme o caso) para a respectiva cobrança na própria vara de execução fiscal, com a observância do rito da Lei 6.830/80.

Quem executa: Fazenda Pública.

Juízo: vara de execuções fiscais.

Legislação: Lei nº 6.830/80.

Quem executa:

• Prioritariamente: o Ministério Público, na vara de execução penal, aplicando-se a LEP.

• Caso o MP se mantenha inerte por mais de 90 dias após ser devidamente intimada: a Fazenda Pública irá executar, na vara de execuções fiscais, aplicando-se a Lei nº 6.830/80.

 

Foi o que decidiu o STF:

O Ministério Público possui legitimidade para propor a cobrança de multa decorrente de sentença penal condenatória transitada em julgado, com a possibilidade subsidiária de cobrança pela Fazenda Pública.

STF. Plenário. ADI 3150/DF, Rel. para acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 12 e 13/12/2018 (Info 927).

STF. Plenário. AP 470/MG, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 12 e 13/12/2018 (Info 927).

 

Exemplo:

João foi sentenciado por roubo e o juiz de direito (Justiça Estadual) o condenou a 4 anos de reclusão e mais 10 dias-multa no valor de meio salário mínimo cada.

Depois do trânsito em julgado, o condenado foi intimado para pagar a pena de multa no prazo de 10 dias, mas não o fez.

Diante disso, o escrivão da vara irá fazer uma certidão na qual constarão as informações sobre a condenação e o valor da multa.

• Para o STJ, o magistrado deveria remeter a certidão para Procuradoria Geral do Estado e um dos Procuradores do Estado iria ajuizar, em nome do Estado, uma execução fiscal que tramitaria na vara de execuções fiscais (não era na vara de execuções penais).

• Agora, com a decisão do STF, o magistrado deverá intimar o Ministério Público e o Parquet irá propor a execução da multa na vara de execução penal. Caso o MP, devidamente intimado, não proponha a execução da multa no prazo de 90 dias, o juiz da execução criminal deverá dar ciência do feito ao órgão competente da Fazenda Pública (federal ou estadual, conforme o caso) para a respectiva cobrança na própria vara de execução fiscal, com a observância do rito da Lei 6.830/80.

 

Obs: se João tivesse sido condenado pela Justiça Federal, quem iria ingressar com a execução seria prioritariamente o MPF e, apenas subsidiariamente, a União, por intermédio da Procuradoria da Fazenda Nacional (PFN).

 

O que acontece com o entendimento do STJ manifestado na Súmula 521?

Está superado e a súmula deve ser cancelada. Isso porque a decisão do STF foi proferida em ação direta de inconstitucionalidade possuindo, portanto, eficácia erga omnes e efeito vinculante (art. 102, § 2º, da CF/88).

 

Onde tramita a execução da pena de multa?

No juízo da execução penal.

O art. 51 do Código Penal foi alterado para deixar expressa essa competência:

 

CÓDIGO PENAL

Antes da Lei 13.964/2019

ATUALMENTE

Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhes as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

Art. 51. Transitada em julgado a sentença condenatória, a multa será executada perante o juiz da execução penal e será considerada dívida de valor, aplicáveis as normas relativas à dívida ativa da Fazenda Pública, inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.

 

Com a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), a Fazenda Pública ainda detém legitimidade subsidiária para executar a pena de multa (legitimidade para executar depois de 90 dias)? Esse entendimento do STF (ADI 3150/DF) ainda persiste?

SIM.

A Fazenda Pública mantém a competência subsidiária para execução da multa criminal, mesmo após a nova redação do art. 51 do Código Penal dada pela Lei n. 13.964/2019.

STJ. 5ª Turma. AgRg no RMS n. 71.735/RS, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 26/9/2023.

 

Quanto à execução da pena de multa, o STJ possui orientação no sentido de que, mesmo após a alteração decorrente da nova redação do art. 51 do Código Penal pela Lei 13.964/2019, a Fazenda Pública mantém a competência subsidiária para execução dos respectivos valores.

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 2.096.590/PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/8/2023.

 

 

INADIMPLEMENTO DA MULTA E EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi condenado a 3 anos de reclusão (pena privativa de liberdade) e a 200 dias-multa.

Após cumprir integralmente a pena privativa de liberdade, João foi solto e a defesa peticionou ao juízo requerendo a extinção da punibilidade.

O juiz extinguiu a pena privativa de liberdade pelo seu integral cumprimento; todavia, determinou que fosse oficiada a Procuradoria da Fazenda Pública para a cobrança da pena de multa e afirmou que a extinção da punibilidade só poderia ser decretada quando houvesse o pagamento do valor.

Agiu corretamente o magistrado?

 

De acordo com o STJ, o inadimplemento da pena de multa impede a extinção da punibilidade mesmo que já tenha sido cumprida a pena privativa de liberdade ou a pena restritiva de direitos?

O STJ tratou desse assunto no Tema 931 dos recursos repetitivos.

A jurisprudência do STJ passou por três etapas históricas a respeito do tema.

1ª etapa:

O STJ entendia que era possível a extinção da punibilidade mesmo sem o adimplemento da pena de multa.

Foi fixada a seguinte tese no Tema 931:

Nos casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.519.777/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 26/8/2015 (Recurso Repetitivo – Tema 931).

 

O principal argumento era o de que a pena de multa era considerada dívida de valor e, portanto, possuía caráter extrapenal, de modo que sua execução seria de competência exclusiva da Procuradoria da Fazenda Pública.

 

2ª etapa:

O inadimplemento da pena de multa impede a extinção da punibilidade mesmo que já tenha sido cumprida a pena privativa de liberdade ou a pena restritiva de direitos?

• Regra: SIM.

Se o indivíduo for condenado a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta (impede) o reconhecimento da extinção da punibilidade. Em outras palavras, somente haverá a extinção da punibilidade se, além do cumprimento da pena privativa de liberdade, houver o pagamento da multa.

 

• Exceção: se o condenado comprovar que não tem como pagar a multa.

Se o condenado comprovar a impossibilidade de pagar a sanção pecuniária, neste caso, será possível a extinção da punibilidade mesmo sem a quitação da multa. Bastará cumprir a pena privativa de liberdade e comprovar que não tem condições de pagar a multa.

 

A tese para o Tema 931 foi, então, alterada:

Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.785.383-SP e REsp 1.785.861/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgados em 24/11/2021 (Recurso Repetitivo - Tema 931) (Info 720).

 

Por que o STJ mudou de entendimento?

Porque o STF, em dezembro de 2018, ao julgar a ADI 3150/DF, declarou que, à luz do preceito estabelecido pelo art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, a multa, ao lado da privação de liberdade e de outras restrições – perda de bens, prestação social alternativa e suspensão ou interdição de direitos –, é espécie de pena aplicável em retribuição e em prevenção à prática de crimes, não perdendo ela sua natureza de sanção penal.

Logo, em regra, não se pode declarar a extinção da punibilidade pelo cumprimento integral da pena privativa de liberdade quando pendente o pagamento da multa criminal.

 

E a exceção criada?

O STJ, ao interpretar a decisão proferida pelo STF na ADI 3.150/DF, afirmou que ela se destina prioritariamente àqueles condenados por delitos relativos à criminalidade econômica, que possuem condições econômicas de adimplir com a satisfação da pena pecuniária, de modo que o seu não pagamento constitui deliberado descumprimento de decisão judicial e implica sensação de impunidade.

Em sentido diametralmente oposto está a situação dos condenados que são social e economicamente hipossuficientes.

Se os condenados que são pobres não puderem ter extinta a punibilidade pelo fato de não pagarem a multa, isso fará com que eles fiquem privados dos direitos políticos e sem acesso ao gozo de benefícios sociais. Em casos como esse, condicionar a extinção da punibilidade ao adimplemento da pena de multa significar agravar a situação de penúria e indigência dos apenados hipossuficientes e das pessoas próximas a ele, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social.

 

3ª etapa:

É o entendimento atual. É parecido com a posição adotada em novembro de 2021. A diferença está no ônus da prova da impossibilidade de pagar a multa.

• Tese fixada em novembro de 2021: o ônus de comprovar a impossibilidade de pagar a multa era do apenado.

• Tese fixada fevereiro de 2024: basta que o apenado alegue a hipossuficiência, não precisando que ele (condenado) comprove a impossibilidade de pagar.

 

Veja a nova tese fixada para o Tema 931 (tese atual):

O inadimplemento da pena de multa, mesmo após o cumprimento da pena de prisão ou da pena restritiva de direitos, não impede a extinção da punibilidade, desde que o condenado alegue hipossuficiência, salvo se o juiz competente, em decisão devidamente fundamentada, entenda de forma diferente, indicando especificamente a capacidade de pagamento da penalidade pecuniária. 

STJ. 3ª Seção. REsp 2.090.454-SP e REsp 2.024.901-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 28/02/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 931) (Info 803).

 

Vejamos abaixo os principais argumentos do Min. Rogério Schietti:

Segundo a tese fixada em novembro de 2021 cabia ao condenado a comprovação da impossibilidade de adimplemento da sanção pecuniária (multa), para ver reconhecida a extinção da punibilidade.

Essa jurisprudência acabou por impor um ônus excessivo a quem, notoriamente, não possui recursos financeiros para quitar sua dívida, exigindo que faça prova nesse sentido.

A não extinção da punibilidade traz uma série de prejuízos ao condenado.

Um dos malefícios oriundos do não reconhecimento da extinção da punibilidade, quando pendente apenas o pagamento da pena de multa, está no art. 64, I, do Código Penal, que prevê: “para efeito de reincidência: [...] não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação”.

Isso implica afirmar que o apenado que expiou, por anos, a privação de sua liberdade poderá permanecer ainda por outros longos anos sem a possibilidade de readquirir o status de pessoa não reincidente, e sem possibilidade concreta de reinserção no mercado de trabalho e na vida civil, diante da circunstância de não ter sido capaz de quitar a dívida pecuniária.

O panorama, quando encarado em perspectiva com a análise de idade e raça dos grupos de indivíduos encarcerados, notabiliza a situação de desproteção a que eles estão submetidos, mormente os jovens negros. A já acentuada disparidade socioeconômica existente entre eles e a população branca correspondente é intensamente exacerbada em decorrência dos efeitos deletérios do encarceramento, a retardar sua reinserção social.

A barreira ao reconhecimento da extinção da punibilidade dos condenados notoriamente pobres frustra fundamentalmente os fins a que se prestam a imposição e a execução das reprimendas penais, e contradiz a inferência lógica do princípio isonômico (art. 5º, caput da CF/88), segundo o qual desiguais devem ser tratados de forma desigual. Ainda nesse sentido, citou o art. 1º, da LEP, que menciona que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Nesse cenário, não se mostraria, portanto, compatível com os objetivos e fundamentos do Estado Democrático de Direito - destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça (Preâmbulo da Constituição da República) - que se perpetue uma situação de sobrepunição dos condenados notoriamente incapacitados a, já cumprida a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, solver uma dívida que, a despeito de legalmente imposta - com a incidência formal do Direito Penal - não se apresenta, no momento de sua execução, compatível com os objetivos da lei penal e da própria ideia de punição estatal.

Desse modo, a eficiente atuação do MP na cobrança da multa poderia se tornar iníqua ao não se diferenciarem situações, nas quais, por óbvio, não possuir o encarcerado que acaba de cumprir sua pena privativa de Liberdade as mínimas condições de pagar seu encargo, sem prejuízo de sua própria subsistência e de seus familiares.

O Ministro Schietti afirmou que, do total de 644.305 presos no país, somente 1.798 (menos de 0,5% deles) cumprem pena pelos crimes de peculato, concussão, excesso de exação, corrupção passiva e corrupção ativa. Desse número, ainda que somemos a estes também os condenados por outros crimes de colarinho branco (lavagem de dinheiro, evasão de divisas, gestão fraudulenta etc), não se tem certamente mais do que 1% de todo o sistema penitenciário com pessoas condenadas por ilícitos penais com alguma chance de serem melhor situadas financeiramente. Na visão do relator, “para estes, sim, deve voltar-se todo o esforço do Ministério Público para executar as penas de multas devidas, e não para quem, notoriamente, após anos de prisão, volta ao convívio social absolutamente carente de recursos financeiros e sequer com uma mínima perspectiva de amealhar recursos para pagar a dívida com o Estado”.

 

Do ônus da prova da condição de pobreza do condenado

Segundo o acórdão, a comprovação da situação de hipossuficiência do condenado poderia se dar por mera declaração de pobreza (art. 99, §3º, do CPC), que goza de presunção relativa de veracidade.

Assim, de acordo com o relator, ante a alegada hipossuficiência do condenado, extinguir a punibilidade, salvo se diversamente entender o juiz competente, em decisão suficientemente motivada e apoiada em prova constante dos autos, a indicar a possibilidade de pagamento da sanção pecuniária.

Evidentemente, poderá o Ministério Público desincumbir-se do ônus de ilidir a presunção de pobreza do condenado, trazendo aos autos prova de que possui ele recursos financeiros que lhe capacitam pagar a multa pendente.

 

Em suma, o que prevalece atualmente na jurisprudência do STJ é o seguinte:

O inadimplemento da pena de multa impede a extinção da punibilidade mesmo que já tenha sido cumprida a pena privativa de liberdade ou a pena restritiva de direitos?

• Regra: SIM

Se o indivíduo for condenado a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da pena de multa impede a extinção da punibilidade. Em outras palavras, somente haverá a extinção da punibilidade se, além do cumprimento da pena privativa de liberdade (ou restritiva de direitos), houver o pagamento da multa.

 

• Exceção: se o condenado alegar que não tem como pagar a multa a punibilidade será extinta, salvo se o Estado conseguir demonstrar que ele tem condições financeiras.

 

O inadimplemento da pena de multa, mesmo após o cumprimento da pena de prisão ou da pena restritiva de direitos, não impede a extinção da punibilidade, desde que o condenado alegue hipossuficiência, salvo se o juiz competente, em decisão devidamente fundamentada, entenda de forma diferente, indicando especificamente a capacidade de pagamento da penalidade pecuniária. 

STJ. 3ª Seção. REsp 2.090.454-SP e REsp 2.024.901-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 28/02/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 931) (Info 803).


sexta-feira, 29 de março de 2024

Se o consumidor é injustificadamente cobrado em excesso, terá direito à devolução em dobro mesmo que não prove a má-fé do fornecedor

REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CÓDIGO CIVIL

Imagine a seguinte situação hipotética:

Ricardo ajuizou ação de cobrança contra Pedro por um suposto débito de R$ 10 mil.

Pedro contestou a demanda provando que já havia pagado a dívida. Além disso, na própria contestação, o réu pediu que o autor fosse condenado a pagar R$ 20 mil a ele em razão de estar cobrando uma dívida já quitada.

 

Sob o ponto de vista do direito material, esse pedido de Pedro encontra amparo na legislação?

SIM. Há previsão expressa no Código Civil:

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

 

Obs1: essa penalidade do art. 940 deve ser aplicada independentemente de a pessoa demandada ter provado qualquer tipo de prejuízo. Assim, ainda que Pedro não comprove ter sofrido dano, essa indenização será devida. O art. 940 do CC institui uma autêntica pena privada, aplicável independentemente da existência de prova do dano (STJ. 3ª Turma. REsp 1.286.704/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 28/10/2013).

 

Obs2: a penalidade do art. 940 exige que o credor tenha exigido judicialmente a dívida já paga (“demandar” = “exigir em juízo”).

 

Para que Pedro cobre esse valor em dobro, é necessária ação autônoma ou reconvenção, ou ele pode fazer isso por meio de mera contestação?

O pedido pode ser feito por meio de contestação:

A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança judicial de dívida já adimplida (art. 1.531 do CC 1916 / art. 940 do CC 2002) pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de ação autônoma ou do manejo de reconvenção.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.111.270-PR, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 25/11/2015 (Recurso Repetitivo – Tema 662) (Info 576).

 

Sempre que houver cobrança de dívida já paga, haverá a condenação do autor à penalidade do art. 940 do CC?

Não, nem sempre.

Segundo o STJ, são exigidos dois requisitos para a aplicação do art. 940:

a) a cobrança se dá por meio judicial; e

b) a má-fé do demandante fica comprovada.

Essa exigência da má-fé é antiga e vem desde o CC-1916, onde esta penalidade encontrava-se prevista no art. 1.531. Veja o que o STF já havia decidido naquela época:

Súmula 159-STF: Cobrança excessiva, mas de boa fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil (atual art. 940).

 

(PGM Manaus 2018 CEBRASPE) De acordo com a jurisprudência do STJ e as disposições do Código Civil, uma vez ajuizada ação de cobrança de dívida já paga, o direito do requerido à restituição em dobro prescindirá da demonstração de má-fé do autor da cobrança. (ERRADO)

 

Se Ricardo tivesse desistido da ação de cobrança antes de Pedro apresentar contestação, isso o eximiria do pagamento da penalidade do art. 940 do CC?

SIM. O CC prevê que a indenização é excluída se o autor desistir da ação antes de contestada a lide:

Art. 941. As penas previstas nos arts. 939 e 940 não se aplicarão quando o autor desistir da ação antes de contestada a lide, salvo ao réu o direito de haver indenização por algum prejuízo que prove ter sofrido.

 

REGRAMENTO DA REPETIÇÃO DO INDÉBITO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Imagine a seguinte situação hipotética:

João firmou contrato de empréstimo consignado com o Banco.

As parcelas eram descontadas diretamente da conta bancária que João mantinha com a instituição financeira.

O consumidor quitou todas as parcelas do empréstimo. Mesmo assim, a instituição financeira ainda descontou três prestações a mais. Em outras palavras, João acabou pagando indevidamente três parcelas de R$ 5 mil, cada, indevidamente (R$ 15 mil, no total).

João conferiu novamente todos os extratos e constatou a cobrança indevida.

Diante disso, ele ajuizou ação de repetição de indébito contra o banco.

Requereu que a instituição financeira fosse condenada a pagar o dobro do que ele foi obrigado a pagar em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais. Como João pagou R$ 15 mil em excesso, ele pediu para receber de volta R$ 30 mil.

O pedido do autor foi baseado no art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 42 (...)

Parágrafo único O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

 

O Banco apresentou contestação na qual argumentou que houve uma falha no sistema informatizado e que, por isso, os três últimos pagamentos não foram contabilizados. Diante disso, pediu para fazer a devolução simples da quantia (R$ 15 mil), e não em dobro (R$ 30 mil) já que não ficou provada a sua má-fé.

Em outras palavras, a instituição financeira argumentou que, para incidir a regra do art. 42, parágrafo único, do CDC, seria indispensável que ficasse demonstrado que o Banco tinha a intenção (vontade) de cobrar um valor indevido do consumidor, o que não ficou provado no caso.

 

Para incidir a regra do art. 42, parágrafo único, do CDC exige-se má-fé do fornecedor (“cobrador”)?

Até o fim de 2020, o STJ estava dividido:

1) Em regra: SIM.

O STJ que era necessária a comprovação de má-fé.

Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 39).

Tese 7: A devolução em dobro dos valores pagos pelo consumidor, prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC, pressupõe tanto a existência de pagamento indevido quanto a má-fé do credor. (Obs: essa tese está atualmente superada).

 

2) Em casos envolvendo serviços públicos: NÃO.

O STJ entendia que não era necessária a comprovação de má-fé.

Jurisprudência em Teses do STJ (ed. 39).

Tese 3: É obrigatória a restituição em dobro da cobrança indevida de tarifa de água, esgoto, energia ou telefonia, salvo na hipótese de erro justificável (art. 42, parágrafo único, do CDC), que não decorra da existência de dolo, culpa ou má-fé.

 

Essa posição foi alterada no fim de 2020.

A Corte Especial do STJ definiu a questão no EAREsp 600.663/RS, fixando a seguinte tese:

A repetição em dobro, prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC, é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da natureza do elemento volitivo.

STJ. Corte Especial. EAREsp 600.663/RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, relator para acórdão Min. Herman Benjamin, julgado em 21/10/2020, DJe de 30/3/2021.

 

Assim, atualmente prevalece o entendimento de que, para incidir a regra do art. 42, parágrafo único, do CDC não se exige má-fé do fornecedor, não se exige a demonstração de que o fornecedor tinha a intenção (elemento volitivo) de cobrar um valor indevido do consumidor. Basta que o fornecedor tenha agido de forma contrária à boa-fé objetiva.

Se observar bem o art. 42, parágrafo único, do CDC, verá que a norma analisada não exige culpa, dolo ou má-fé do fornecedor, quando este cobra e recebe valor indevido do consumidor. Ao fornecedor, a imputação que se lhe faz a lei é objetiva, independentemente de culpa ou dolo.

Desse modo, a justificabilidade (ou legitimidade) do engano, para afastar a devolução em dobro, insere-se no domínio da causalidade, e não no domínio da culpabilidade, pois esta se resolve, sem apelo ao elemento volitivo, pelo prisma da boa-fé objetiva.

 

Como ocorre a comprovação disso? De quem é ônus probatório?

Se o consumidor alega que o fornecedor fez uma cobrança indevida, ele (fornecedor) deverá, na fase instrutória do processo, produzir prova apta a demonstrar que não atuou em contrariedade à boa-fé objetiva, isto é, que não agiu de forma desleal ou descuidada, pois o engano cometido era, sim, justificável, afastando-se, assim, a incidência da sanção civil de devolução em dobro.

 

Modulação dos efeitos

Vimos acima que o julgamento do EAREsp 600.663/RS representou uma alteração na jurisprudência até então dominante no STJ.

Por isso, o STJ decidiu modular os efeitos da decisão.

Assim, o STJ decidiu que a tese fixada no EAREsp 600.663/RS - quanto a indébitos não decorrentes de prestação de serviço público - se aplicaria somente para as cobranças realizadas após a data da publicação do acórdão (30/3/2021).

O que isso significa na prática?

Consumidor foi cobrado em excesso, mas não ficou provada a má-fé do fornecedor:

1) Contrato de consumo não envolve serviço público:

- se a cobrança foi antes de 30/03/2021: o consumidor terá direito apenas a devolução simples (isso porque se exigia a má-fé);

- se a cobrança foi depois de 30/03/2021: o consumidor terá direito à devolução em dobro (isso porque depois dessa data não se exige mais a má-fé do fornecedor).

 

2) Contrato de consumo envolve serviço público: o consumidor terá direito à devolução em dobro mesmo que a cobrança tenha ocorrido antes de 30/03/2021.

 

No Informativo 803, foi divulgado acórdão no qual o STJ reiterou o entendimento fixado no EAREsp 600.663/RS:

A repetição em dobro, prevista no parágrafo único do art. 42 do CDC, é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva, ou seja, deve ocorrer independentemente da natureza do elemento volitivo. 

STJ. Corte Especial. EAREsp 1.501.756-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 21/2/2024 (Info 803).

 

DOD Plus – principais diferenças entre os dois regimes

O art. 940 do CC e o art. 42 do CDC incidem em hipóteses diferentes, tutelando, cada um deles, uma situação específica envolvendo a cobrança de dívidas pelos credores. Veja as principais diferenças:

ART. 940 DO CÓDIGO CIVIL

ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CDC

Requisitos:

a) A pessoa (consumidora ou não) foi cobrada, por meio de processo judicial, por dívida já paga;

b) O autora da cobrança agiu de má-fé (súmula 159 STF).

Requisitos:

a) Consumidor foi cobrado por quantia indevida;

b) Consumidor pagou essa quantia indevida;

c) Não houve um engano justificável por parte do autor da cobrança.

A cobrança foi feita na via judicial.

A cobrança foi feita na via extrajudicial.

Exige má-fé do autor da cobrança.

Cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 940.

A restituição em dobro do indébito (parágrafo único do artigo 42 do CDC) independe da natureza do elemento volitivo do fornecedor que cobrou valor indevido, revelando-se cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva.

Não se exige que a pessoa cobrada tenha pagado efetivamente a quantia.

Para incidir o dispositivo basta que a pessoa seja acionada na justiça por dívida já paga.

Não basta a simples cobrança indevida.

Exige-se que o consumidor tenha pagado efetivamente o valor indevido.

 

A sanção do art. 940 do Código Civil pode ser aplicada também para casos envolvendo consumidor

Em caso de cobrança judicial indevida, é possível aplicar a sanção prevista no art. 940 do Código Civil mesmo sendo uma relação de consumo.

O art. 940 do CC e o art. 42 do CDC incidem em hipóteses diferentes, tutelando, cada um deles, uma situação específica envolvendo a cobrança de dívidas pelos credores.

Mesmo diante de uma relação de consumo, se inexistentes os pressupostos de aplicação do art. 42, parágrafo único, do CDC, deve ser aplicado o sistema geral do Código Civil, no que couber.

O art. 940 do CC é norma complementar ao art. 42, parágrafo único, do CDC e, no caso, sua aplicação está alinhada ao cumprimento do mandamento constitucional de proteção do consumidor.

STJ. 3ª Turma. REsp 1645589-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 04/02/2020 (Info 664).