Imagine a seguinte situação
hipotética:
Potira é uma mulher indígena, mãe
de Tainá, uma criança indígena de 1 ano.
Potira passou a viver em união
estável com Irapuã, um homem indígena da mesma etnia.
Irapuã não é o pai biológico de
Tainá, mas passou a cuidar da criança com todo o amor, carinho e dedicação.
Depois de alguns anos, Irapuã
decidiu formalizar judicialmente essa relação por meio de uma ação de adoção,
visando assegurar a Tainá todos os direitos que ela possuiria enquanto sua
filha.
A ação foi proposta na Justiça
Estadual.
O juízo estadual, ao verificar que se tratava de criança
indígena, entendeu que seria necessária a intervenção da FUNAI no processo, por
força do inciso III do § 6º do art. 28 do ECA:
Art. 28 (...)
§ 6º Em se tratando de criança ou
adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é
ainda obrigatório:
I - que sejam consideradas e
respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem
como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos
fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal;
II - que a colocação familiar
ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma
etnia;
III - a intervenção e oitiva de
representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso
de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe
interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso.
Diante disso, o juízo de direito declinou da competência,
remetendo os autos à Justiça Federal, sob o fundamento de que a presença da
FUNAI implicaria interesse jurídico da União, atraindo a competência da Justiça
Federal, conforme o art. 109, I e XI da CF:
Art. 109. Aos juízes federais
compete processar e julgar:
I - as causas em que a União,
entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição
de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de
acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
(...)
XI - a disputa sobre direitos
indígenas.
Ao receber o processo, o juízo
federal discordou, sustentando que a FUNAI, no caso, não figura como parte ou
interessada jurídica direta, mas apenas como órgão consultivo para preservar a
identidade cultural da criança indígena.
Argumentou ainda que o processo
não tratava de disputa sobre direitos indígenas coletivos (como terras ou
autodeterminação), mas de um direito individual da criança, o que se insere na
competência da Justiça Estadual, que dispõe de equipe especializada para lidar
com adoções.
Diante do impasse, foi instaurado
um conflito negativo de competência entre os dois juízos, a ser dirimido pelo
STJ (art. 105, I, d, da CF/88).
O que decidiu o STJ? De
quem é a competência para julgar essa adoção: Justiça Estadual ou Justiça
Federal?
Justiça Estadual.
Obrigatoriedade de
intervenção da FUNAI
Como vimos acima, o Estatuto da
Criança e do Adolescente, em seu art. 28, § 6º, inciso III, determina que, na
hipótese de procedimento de guarda, tutela ou adoção de criança ou adolescente
indígena proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é obrigatória a
intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável por
política indigenista e de antropólogos, perante a equipe multidisciplinar que
acompanhará o procedimento.
Trata-se de determinação que
busca respeitar a identidade social e cultural tanto das crianças e
adolescentes indígenas quanto daquelas cujos pais sejam de origem indígena.
Assim, seus costumes e tradições devem ser considerados no procedimento de
colocação em família substituta, desde que não sejam incompatíveis com os
direitos fundamentais reconhecidos pelo ECA e pela CF (art. 28, §6º, I).
As referidas regras expressam a
preocupação do legislador com a efetiva proteção às crianças e adolescentes de
origem indígena, uma vez pertencentes a uma etnia minoritária, historicamente
discriminada e marginalizada no Brasil.
Nesse contexto, a presença da
Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) em ações de adoção de crianças e
adolescentes de origem indígena possibilita uma melhor verificação das
condições e particularidades da família biológica, a fim de propiciar o seu
adequado acolhimento na família substituta.
Ausência da FUNAI pode
gerar a nulidade do processo
Justamente por esse motivo, a
ausência de intervenção obrigatória da FUNAI no processo de colocação de menor
indígena em família substituta é causa de nulidade (STJ, 3ª Turma, REsp
1566808/MS, julgado em 02/10/2017). A decretação de tal nulidade, contudo, deve
ser avaliada na hipótese em concreto pois, se atendidos os interesses da
criança ou adolescente adotandos, não será recomendável decretar-se a nulidade
do processo.
Este entendimento foi reafirmado
quando do julgamento do Resp 1698635/MS, em 09/09/2020, oportunidade em que a
Terceira Turma do STJ decidiu que “a intervenção da FUNAI nos litígios
relacionados à destituição do poder familiar e à adoção de menores indígenas ou
menores cujos pais são indígenas é obrigatória e apresenta caráter de ordem
pública, visando-se, em ambas as hipóteses, que sejam consideradas e
respeitadas a identidade social e cultural do povo indígena, os seus costumes e
tradições, bem como suas instituições”.
A obrigatoriedade da FUNAI
não é um formalismo exacerbado
A obrigatoriedade da intervenção
da FUNAI não deve ser vista como formalismo processual exacerbado. Trata-se de
mecanismo que legitima o processo adotivo de criança e adolescente oriundos de
família indígena.
Se a FUNAI estiver atuando no
processo aumentam as chances de se resguardar o melhor interesse da criança e
do adolescente de origem indígena. Por essa razão, a inobservância da regra que
determina a participação da FUNAI no processo de adoção traz consigo a
presunção de efetivo prejuízo, que somente se pode afastar em hipóteses
excepcionalíssimas.
A intervenção da FUNAI no
processo de adoção não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal
A competência da Justiça Federal
está prevista nos incisos I a XI do art. 109 da CF.
O inciso I do referido
dispositivo determina que serão julgadas pela Justiça Federal “as causas em que
a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na
condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as
de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do
Trabalho”.
O inciso XI, por sua vez,
determina que compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre
direitos indígenas.
No tocante à competência da
Justiça Federal para julgar disputas de direitos indígenas, observa-se que o
art. 231 da CF estabelece que aos índios são reconhecidos “sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à
União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens”.
Nesse sentido, o STJ já decidiu
que “a competência da Justiça Federal para o julgamento de causas sobre os
direitos indígenas (art. 109, XI da CF /88) diz respeito aos direitos elencados
no art. 231 da Constituição Federal” (CC 39818/SC, Primeira Seção, DJ
29/03/2004).
O STF também já entendeu que “o
deslocamento da competência para a Justiça Federal somente ocorre quando o
processo versar sobre questões diretamente ligadas à cultura indígena e ao
direito sobre suas terras, ou quando envolvidos interesses da União” (STF, RHC
85737, julgado em 30/11/2007).
Vale mencionar, ainda, a Súmula
150/STJ, segundo a qual é a Justiça Federal quem deve decidir se há interesse
jurídico que justifique a presença da União, suas autarquias ou empresas
públicas no processo.
Por tudo isso, conclui-se que a
presença da FUNAI no processo não atrai, necessariamente, a competência da
Justiça Federal.
Na ação de adoção de
criança indígena, a FUNAI não exerce direito próprio; atua de forma consultiva
A participação da FUNAI em
demandas de adoção visa auxiliar o Poder Judiciário na colocação de crianças e
adolescentes de origem indígena em família substituta, compreendendo seus
costumes e tradições.
Assim, na ação de adoção de criança
indígena, a FUNAI não exerce direito próprio, não figurando como autora, ré,
assistente ou oponente. Trata-se, em verdade, de atuação consultiva perante a
equipe multidisciplinar que acompanhará a demanda (art. 28, §6º, do ECA).
Além disso, a ação de adoção de
criança indígena não tem por objetivo a disputa dos direitos indígenas previstos no art. 231, CF/88. O objetivo
dessa ação é resguardar a integridade física e psicológica da criança ou
adolescente de origem indígena, a fim de que ela possa ser colocado em família
substituta capaz de acolhê-la com carinho e respeito necessários ao seu livre
desenvolvimento, respeitando sua etnia.
Portanto, o fato de a criança ou
o adolescente adotandos pertencerem à etnia indígena não atrai, por si só, a
competência da Justiça Federal para o processamento da ação de adoção, uma vez
que se trata de interesse particular.
Nesse sentido, a Segunda Seção do
STJ, quando do julgamento do AgRg no CC 112250/AM, em 28/10/2010, decidiu que
“o fato do autor ou do réu de uma determinada ação ser índio, por si só, não é
capaz de ensejar a competência da Justiça Federal, principalmente quando a ação
visar um interesse ou direito particular”.
Conforme já explicado, o
procedimento de adoção diz respeito a direito privado, uma vez que se trata de
interesse particular da criança ou adolescente, ainda que de origem indígena.
Logo, não é devida a aplicação da competência prevista no art. 109, I e XI, da
CF/88.
Diante disso, conclui-se que a Vara
da Infância e Juventude (Justiça Estadual) apresenta maiores e melhores
condições de acompanhar procedimento de adoção de crianças e adolescentes de
origem indígena, uma vez que conta com equipe interprofissional ou
multidisciplinar especializada para acompanhar demandas dessa natureza.
Logo, é do melhor interesse de
crianças e adolescentes indígenas a competência da Justiça Estadual para
processar e julgar ações de adoção, uma vez que a Vara da Infância e Juventude
terá maiores e melhores condições de acompanhar o procedimento, contando com
equipe técnica qualificada e especializada.
A intervenção da FUNAI em tais
situações, ainda que obrigatória, não atrai a competência automática da Justiça
Federal.
Em suma:
É do melhor interesse de crianças
e adolescentes indígenas a competência da Justiça Estadual para processar e
julgar ações de adoção, assim sendo, a intervenção da FUNAI em tais situações,
ainda que obrigatória, não atrai a competência automática da Justiça
Federal.
STJ. 2ª Seção.
CC 209.192-PA, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado
em 3/4/2025 (Info 848).