Dizer o Direito

domingo, 15 de junho de 2025

Adoção de criança indígena é de competência da Justiça Estadual ou Justiça Federal?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Potira é uma mulher indígena, mãe de Tainá, uma criança indígena de 1 ano.

Potira passou a viver em união estável com Irapuã, um homem indígena da mesma etnia.

Irapuã não é o pai biológico de Tainá, mas passou a cuidar da criança com todo o amor, carinho e dedicação.

Depois de alguns anos, Irapuã decidiu formalizar judicialmente essa relação por meio de uma ação de adoção, visando assegurar a Tainá todos os direitos que ela possuiria enquanto sua filha.

A ação foi proposta na Justiça Estadual.

O juízo estadual, ao verificar que se tratava de criança indígena, entendeu que seria necessária a intervenção da FUNAI no processo, por força do inciso III do § 6º do art. 28 do ECA:

Art. 28 (...)

§ 6º Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório:

I - que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal;

II - que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia;

III - a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso.

 

Diante disso, o juízo de direito declinou da competência, remetendo os autos à Justiça Federal, sob o fundamento de que a presença da FUNAI implicaria interesse jurídico da União, atraindo a competência da Justiça Federal, conforme o art. 109, I e XI da CF:

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

(...)

XI - a disputa sobre direitos indígenas.

 

Ao receber o processo, o juízo federal discordou, sustentando que a FUNAI, no caso, não figura como parte ou interessada jurídica direta, mas apenas como órgão consultivo para preservar a identidade cultural da criança indígena.

Argumentou ainda que o processo não tratava de disputa sobre direitos indígenas coletivos (como terras ou autodeterminação), mas de um direito individual da criança, o que se insere na competência da Justiça Estadual, que dispõe de equipe especializada para lidar com adoções.

Diante do impasse, foi instaurado um conflito negativo de competência entre os dois juízos, a ser dirimido pelo STJ (art. 105, I, d, da CF/88).

 

O que decidiu o STJ? De quem é a competência para julgar essa adoção: Justiça Estadual ou Justiça Federal?

Justiça Estadual.

 

Obrigatoriedade de intervenção da FUNAI

Como vimos acima, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 28, § 6º, inciso III, determina que, na hipótese de procedimento de guarda, tutela ou adoção de criança ou adolescente indígena proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é obrigatória a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável por política indigenista e de antropólogos, perante a equipe multidisciplinar que acompanhará o procedimento.

Trata-se de determinação que busca respeitar a identidade social e cultural tanto das crianças e adolescentes indígenas quanto daquelas cujos pais sejam de origem indígena. Assim, seus costumes e tradições devem ser considerados no procedimento de colocação em família substituta, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos pelo ECA e pela CF (art. 28, §6º, I).

As referidas regras expressam a preocupação do legislador com a efetiva proteção às crianças e adolescentes de origem indígena, uma vez pertencentes a uma etnia minoritária, historicamente discriminada e marginalizada no Brasil.

Nesse contexto, a presença da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) em ações de adoção de crianças e adolescentes de origem indígena possibilita uma melhor verificação das condições e particularidades da família biológica, a fim de propiciar o seu adequado acolhimento na família substituta.

 

Ausência da FUNAI pode gerar a nulidade do processo

Justamente por esse motivo, a ausência de intervenção obrigatória da FUNAI no processo de colocação de menor indígena em família substituta é causa de nulidade (STJ, 3ª Turma, REsp 1566808/MS, julgado em 02/10/2017). A decretação de tal nulidade, contudo, deve ser avaliada na hipótese em concreto pois, se atendidos os interesses da criança ou adolescente adotandos, não será recomendável decretar-se a nulidade do processo.

Este entendimento foi reafirmado quando do julgamento do Resp 1698635/MS, em 09/09/2020, oportunidade em que a Terceira Turma do STJ decidiu que “a intervenção da FUNAI nos litígios relacionados à destituição do poder familiar e à adoção de menores indígenas ou menores cujos pais são indígenas é obrigatória e apresenta caráter de ordem pública, visando-se, em ambas as hipóteses, que sejam consideradas e respeitadas a identidade social e cultural do povo indígena, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições”.

 

A obrigatoriedade da FUNAI não é um formalismo exacerbado

A obrigatoriedade da intervenção da FUNAI não deve ser vista como formalismo processual exacerbado. Trata-se de mecanismo que legitima o processo adotivo de criança e adolescente oriundos de família indígena.

Se a FUNAI estiver atuando no processo aumentam as chances de se resguardar o melhor interesse da criança e do adolescente de origem indígena. Por essa razão, a inobservância da regra que determina a participação da FUNAI no processo de adoção traz consigo a presunção de efetivo prejuízo, que somente se pode afastar em hipóteses excepcionalíssimas.

 

A intervenção da FUNAI no processo de adoção não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal

A competência da Justiça Federal está prevista nos incisos I a XI do art. 109 da CF.

O inciso I do referido dispositivo determina que serão julgadas pela Justiça Federal “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”.

O inciso XI, por sua vez, determina que compete aos juízes federais processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas.

 

No tocante à competência da Justiça Federal para julgar disputas de direitos indígenas, observa-se que o art. 231 da CF estabelece que aos índios são reconhecidos “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à

União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Nesse sentido, o STJ já decidiu que “a competência da Justiça Federal para o julgamento de causas sobre os direitos indígenas (art. 109, XI da CF /88) diz respeito aos direitos elencados no art. 231 da Constituição Federal” (CC 39818/SC, Primeira Seção, DJ 29/03/2004).

O STF também já entendeu que “o deslocamento da competência para a Justiça Federal somente ocorre quando o processo versar sobre questões diretamente ligadas à cultura indígena e ao direito sobre suas terras, ou quando envolvidos interesses da União” (STF, RHC 85737, julgado em 30/11/2007).

Vale mencionar, ainda, a Súmula 150/STJ, segundo a qual é a Justiça Federal quem deve decidir se há interesse jurídico que justifique a presença da União, suas autarquias ou empresas públicas no processo.

Por tudo isso, conclui-se que a presença da FUNAI no processo não atrai, necessariamente, a competência da Justiça Federal.

 

Na ação de adoção de criança indígena, a FUNAI não exerce direito próprio; atua de forma consultiva

A participação da FUNAI em demandas de adoção visa auxiliar o Poder Judiciário na colocação de crianças e adolescentes de origem indígena em família substituta, compreendendo seus costumes e tradições.

Assim, na ação de adoção de criança indígena, a FUNAI não exerce direito próprio, não figurando como autora, ré, assistente ou oponente. Trata-se, em verdade, de atuação consultiva perante a equipe multidisciplinar que acompanhará a demanda (art. 28, §6º, do ECA).

Além disso, a ação de adoção de criança indígena não tem por objetivo a disputa dos direitos indígenas  previstos no art. 231, CF/88. O objetivo dessa ação é resguardar a integridade física e psicológica da criança ou adolescente de origem indígena, a fim de que ela possa ser colocado em família substituta capaz de acolhê-la com carinho e respeito necessários ao seu livre desenvolvimento, respeitando sua etnia.

Portanto, o fato de a criança ou o adolescente adotandos pertencerem à etnia indígena não atrai, por si só, a competência da Justiça Federal para o processamento da ação de adoção, uma vez que se trata de interesse particular.

Nesse sentido, a Segunda Seção do STJ, quando do julgamento do AgRg no CC 112250/AM, em 28/10/2010, decidiu que “o fato do autor ou do réu de uma determinada ação ser índio, por si só, não é capaz de ensejar a competência da Justiça Federal, principalmente quando a ação visar um interesse ou direito particular”.

Conforme já explicado, o procedimento de adoção diz respeito a direito privado, uma vez que se trata de interesse particular da criança ou adolescente, ainda que de origem indígena. Logo, não é devida a aplicação da competência prevista no art. 109, I e XI, da CF/88.

Diante disso, conclui-se que a Vara da Infância e Juventude (Justiça Estadual) apresenta maiores e melhores condições de acompanhar procedimento de adoção de crianças e adolescentes de origem indígena, uma vez que conta com equipe interprofissional ou multidisciplinar especializada para acompanhar demandas dessa natureza.

Logo, é do melhor interesse de crianças e adolescentes indígenas a competência da Justiça Estadual para processar e julgar ações de adoção, uma vez que a Vara da Infância e Juventude terá maiores e melhores condições de acompanhar o procedimento, contando com equipe técnica qualificada e especializada.

A intervenção da FUNAI em tais situações, ainda que obrigatória, não atrai a competência automática da Justiça Federal.

 

Em suma:

É do melhor interesse de crianças e adolescentes indígenas a competência da Justiça Estadual para processar e julgar ações de adoção, assim sendo, a intervenção da FUNAI em tais situações, ainda que obrigatória, não atrai a competência automática da Justiça Federal. 

STJ. 2ª Seção. CC 209.192-PA, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 3/4/2025 (Info 848).


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