Imagine a seguinte situação
hipotética:
Carlos foi coroinha de uma
paróquia durante sua adolescência.
Quando tinha 17 anos, Carlos
procurou o bispo responsável pela Arquidiocese e denunciou que foi vítima de
abuso praticado por um dos padres da paróquia.
A denúncia motivou a instauração
de um processo disciplinar eclesiástico (também denominado processo penal
canônico) perante o Tribunal Eclesiástico Interdiocesano, regido pelo Código de
Direito Canônico, para apurar a conduta do padre.
O processo eclesiástico tramitou
sob sigilo, conforme as normas internas da Igreja Católica.
Durante o procedimento, foram
colhidas provas, ouvidas testemunhas (sacerdotes e fiéis que conheciam os
fatos), e o próprio padre foi interrogado no âmbito religioso.
Ao final do processo
eclesiástico, o Tribunal Eclesiástico concluiu que ficaram comprovados
“comportamentos e atos de cunho homossexual e de infidelidade à promessa do
celibato, com escândalo”, mas não ficaram comprovados delitos de abuso.
Como sanção, o padre foi
condenado à pena de suspensão das ordens sacerdotais por três anos e obrigado a
se recolher, por ao menos um ano, em instituição de ajuda a sacerdotes, com
acompanhamento espiritual e psicológico.
Ação de exibição de
documentos proposta por Carlos
Insatisfeito com a falta de
acesso às informações do processo eclesiástico e desejando reunir elementos
para eventual ação judicial na esfera estatal (cível, trabalhista ou criminal),
Carlos ingressou com ação de exibição de documentos contra a Arquidiocese,
requerendo acesso integral aos autos do processo disciplinar eclesiástico.
Arquidiocese é
uma divisão territorial da Igreja Católica, como se fosse uma “sede regional”
da Igreja em uma grande cidade ou região importante. É comandada por um
arcebispo e pode coordenar outras dioceses menores ao redor. Possui
personalidade jurídica própria.
A arquidiocese
é considerada uma organização religiosa com existência legal própria, podendo,
por exemplo ter CNPJ, ser proprietária de bens, contratar funcionários e,
inclusive, responder judicialmente (como aconteceu no caso julgado pelo STJ).
A Arquidiocese contestou sustentando
que o processo eclesiástico é protegido por sigilo, uma vez que se tratava de
um procedimento interno, fundado em ritos religiosos e voltado à aplicação de
penas espirituais, não à responsabilização jurídica estatal. Argumentou ainda
que forçar a exibição violaria o direito à liberdade religiosa, a privacidade
do sacerdote envolvido e o sigilo inerente às confissões e depoimentos ali
colhidos.
O juiz julgou o pedido procedente
e determinou que a Arquidiocese exibisse integralmente o processo eclesiástico.
O Tribunal de Justiça manteve a
sentença, entendendo que o direito de Carlos ao acesso à prova deveria
prevalecer sobre o sigilo do procedimento religioso.
A Arquidiocese interpôs recurso
especial alegando violação à liberdade de organização religiosa e ao sigilo
inerente aos ritos eclesiásticos, protegidos constitucionalmente.
O STJ acolheu os argumentos
da Arquidiocese ou de Carlos?
Da Arquidiocese.
O direito à prova não é
absoluto
O direito à produção de provas,
como a exibição de documentos, não é absoluto. Esse direito pode ser limitado
quando entra em conflito com outros direitos fundamentais igualmente protegidos
pela Constituição.
O art. 404 do CPC prevê hipóteses nas quais a parte pode
legitimamente se recusar a exibir documentos em determinadas situações:
Art. 404. A parte e o terceiro se
escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa se:
I - concernente a negócios da
própria vida da família;
II - sua apresentação puder
violar dever de honra;
III - sua publicidade redundar em
desonra à parte ou ao terceiro, bem como a seus parentes consanguíneos ou afins
até o terceiro grau, ou lhes representar perigo de ação penal;
IV - sua exibição acarretar a
divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar
segredo;
V - subsistirem outros motivos
graves que, segundo o prudente arbítrio do juiz, justifiquem a recusa da
exibição;
VI - houver disposição legal que
justifique a recusa da exibição.
Parágrafo único. Se os motivos de
que tratam os incisos I a VI do caput disserem respeito a apenas uma parcela do
documento, a parte ou o terceiro exibirá a outra em cartório, para dela ser
extraída cópia reprográfica, de tudo sendo lavrado auto circunstanciado.
Isso significa que o próprio
legislador já reconheceu que o direito à prova deve conviver com outros valores
igualmente importantes, estabelecendo regras claras sobre quando a exibição de
documentos pode ser legitimamente negada.
Liberdade religiosa como
direito fundamental amplo
No caso concreto, o STJ entendeu que a recusa em fornecer os
documentos era legítima com base na liberdade religiosa, prevista no art. 5º,
VI da Constituição:
Art. 5º (...)
VI - é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias;
A liberdade religiosa não se
limita apenas à liberdade de crer ou de frequentar cultos. Ela engloba também a
liberdade de organização religiosa, que é a prerrogativa das instituições
religiosas de estruturarem seus ritos, procedimentos e regras internas sem
interferência estatal.
Essa liberdade religiosa é
expressão direta da dignidade da pessoa humana e está historicamente ligada aos
direitos fundamentais de primeira geração, aqueles que estabelecem limites à
intervenção do Estado na esfera de liberdade individual.
A Constituição (art. 19, I) é
explícita ao vedar que o Estado embarace o funcionamento das organizações
religiosas, e o Código Civil reforça esse princípio ao garantir que são livres
a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações
religiosas.
O processo eclesiástico
como exercício da liberdade religiosa
A sujeição de sacerdotes e fiéis
ao processo eclesiástico representa, ela própria, uma manifestação do exercício
da liberdade religiosa de todos os envolvidos.
Quando um sacerdote se submete a
um processo disciplinar canônico, participa do rito, aceita e cumpre as penas
impostas, ele não está sendo coagido por uma autoridade estatal dotada de poder
de império.
Ele está, na verdade, exercitando
sua fé, aceitando voluntariamente submeter-se às normas de sua comunidade
religiosa.
Diferentemente da jurisdição
estatal, que possui as características da imperatividade e da inafastabilidade,
o processo eclesiástico só tem eficácia porque o próprio apenado concorda
voluntariamente em se submeter a ele, movido por sua crença religiosa de que o
fim último da pena é a salvação de sua alma.
A severidade das penas
eclesiásticas comprova a natureza voluntária do processo
O STJ destacou que o processo
eclesiástico pode resultar em penas graves: privação do exercício do
sacerdócio, transferência para outro ofício, demissão do estado clerical,
proibição de residir em determinado lugar, ou ordem de recolhimento em
instituição por período determinado. Algumas dessas penas até restringem a
liberdade de locomoção.
Ora, se essas penas graves só
podem ser efetivamente cumpridas mediante a concordância voluntária do apenado
(já que a Igreja não dispõe de poder coercitivo estatal para executá-las), isso
comprova que todo o processo é permeado pelo exercício da liberdade religiosa.
O sacerdote aceita submeter-se a
essas restrições severas porque sua consciência religiosa assim o determina,
confiando que está cumprindo um caminho de expiação dentro de sua fé.
Risco de violação do
direito de não se autoincriminar
Na jurisdição estatal brasileira,
o réu tem direito ao silêncio e não pode ser obrigado a confessar (garantia
constitucional do “nemo tenetur se detegere”). Mas no processo eclesiástico, a
dinâmica é completamente diferente: existe um verdadeiro incentivo à confissão,
pois o Código de Direito Canônico estabelece que a parte legitimamente
interrogada deve responder e expor toda a verdade.
Essa regra reflete valores morais
e religiosos, esperando que o fiel seja sincero mesmo quando é sujeito passivo
do processo, confiando justamente no sigilo religioso para se abrir
espiritualmente.
Se um sacerdote confessou fatos
prejudiciais a si mesmo dentro do procedimento canônico - confiando no sigilo
inerente àquela jurisdição apartada da estatal -, a quebra desse sigilo para
uso em processo judicial estatal violaria frontalmente a garantia constitucional
que lhe assegura o direito de não se autoincriminar.
Proteção das testemunhas e
da confiança depositada na instituição
A quebra do sigilo coloca em
risco a proteção de informações íntimas e sensíveis não apenas do sacerdote,
mas de todas as testemunhas que depuseram no processo.
No procedimento canônico,
comumente são os próprios sacerdotes e fiéis frequentadores do espaço religioso
que prestam depoimentos, pois são eles que conhecem os fatos. Essas pessoas
comparecem ao Tribunal Eclesiástico por livre e espontânea vontade considerando
que não existe condução coercitiva como no processo penal estatal. Logo, essas
pessoas participam atendendo a um imperativo de fé. Elas falam abertamente
porque confiam no sigilo do ambiente religioso. Expor esses depoimentos
violaria a confiança depositada na organização religiosa e poderia inibir
futuros testemunhos em casos semelhantes.
Diversas normas legais
protegem o sigilo religioso
O art. 13 do Decreto nº
7.107/2010, que internalizou o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé, garante
expressamente “o segredo do ofício sacerdotal”, sendo que o exercício da
atividade de julgamento das infrações eclesiásticas está inserido nesse ofício
sacerdotal.
O art. 154 do Código Penal
criminaliza a revelação de segredo do qual a pessoa tem ciência em razão de
ministério, demonstrando que o sigilo ministerial é um valor
constitucionalmente protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro.
O art. 207 do CPP estabelece
restrições ao depoimento daqueles que, em razão de ministério, devam guardar
segredo.
Todas essas normas convergem no
sentido de prestigiar o sigilo das atividades religiosas, configurando
hipóteses legais de recusa à exibição nos termos do art. 404, IV, V e VI do
CPC.
Em suma:
Organização religiosa pode recusar o acesso a
procedimento disciplinar eclesiástico instaurado em face de autoridade
religiosa.
STJ. 4ª
Turma. Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em
14/10/2025 (Info 868).

