Dizer o Direito

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

A organização religiosa pode se recusar a fornecer os documentos do procedimento disciplinar eclesiástico que foi instaurado contra a autoridade religiosa (ex: padre)

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carlos foi coroinha de uma paróquia durante sua adolescência.

Quando tinha 17 anos, Carlos procurou o bispo responsável pela Arquidiocese e denunciou que foi vítima de abuso praticado por um dos padres da paróquia.

A denúncia motivou a instauração de um processo disciplinar eclesiástico (também denominado processo penal canônico) perante o Tribunal Eclesiástico Interdiocesano, regido pelo Código de Direito Canônico, para apurar a conduta do padre.

O processo eclesiástico tramitou sob sigilo, conforme as normas internas da Igreja Católica.

Durante o procedimento, foram colhidas provas, ouvidas testemunhas (sacerdotes e fiéis que conheciam os fatos), e o próprio padre foi interrogado no âmbito religioso.

Ao final do processo eclesiástico, o Tribunal Eclesiástico concluiu que ficaram comprovados “comportamentos e atos de cunho homossexual e de infidelidade à promessa do celibato, com escândalo”, mas não ficaram comprovados delitos de abuso.

Como sanção, o padre foi condenado à pena de suspensão das ordens sacerdotais por três anos e obrigado a se recolher, por ao menos um ano, em instituição de ajuda a sacerdotes, com acompanhamento espiritual e psicológico.

 

Ação de exibição de documentos proposta por Carlos

Insatisfeito com a falta de acesso às informações do processo eclesiástico e desejando reunir elementos para eventual ação judicial na esfera estatal (cível, trabalhista ou criminal), Carlos ingressou com ação de exibição de documentos contra a Arquidiocese, requerendo acesso integral aos autos do processo disciplinar eclesiástico.

 

Arquidiocese é uma divisão territorial da Igreja Católica, como se fosse uma “sede regional” da Igreja em uma grande cidade ou região importante. É comandada por um arcebispo e pode coordenar outras dioceses menores ao redor. Possui personalidade jurídica própria.

A arquidiocese é considerada uma organização religiosa com existência legal própria, podendo, por exemplo ter CNPJ, ser proprietária de bens, contratar funcionários e, inclusive, responder judicialmente (como aconteceu no caso julgado pelo STJ).

 

A Arquidiocese contestou sustentando que o processo eclesiástico é protegido por sigilo, uma vez que se tratava de um procedimento interno, fundado em ritos religiosos e voltado à aplicação de penas espirituais, não à responsabilização jurídica estatal. Argumentou ainda que forçar a exibição violaria o direito à liberdade religiosa, a privacidade do sacerdote envolvido e o sigilo inerente às confissões e depoimentos ali colhidos.

O juiz julgou o pedido procedente e determinou que a Arquidiocese exibisse integralmente o processo eclesiástico.

O Tribunal de Justiça manteve a sentença, entendendo que o direito de Carlos ao acesso à prova deveria prevalecer sobre o sigilo do procedimento religioso.

A Arquidiocese interpôs recurso especial alegando violação à liberdade de organização religiosa e ao sigilo inerente aos ritos eclesiásticos, protegidos constitucionalmente.

 

O STJ acolheu os argumentos da Arquidiocese ou de Carlos?

Da Arquidiocese.

 

O direito à prova não é absoluto

O direito à produção de provas, como a exibição de documentos, não é absoluto. Esse direito pode ser limitado quando entra em conflito com outros direitos fundamentais igualmente protegidos pela Constituição.

O art. 404 do CPC prevê hipóteses nas quais a parte pode legitimamente se recusar a exibir documentos em determinadas situações:

Art. 404. A parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa se:

I - concernente a negócios da própria vida da família;

II - sua apresentação puder violar dever de honra;

III - sua publicidade redundar em desonra à parte ou ao terceiro, bem como a seus parentes consanguíneos ou afins até o terceiro grau, ou lhes representar perigo de ação penal;

IV - sua exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo;

V - subsistirem outros motivos graves que, segundo o prudente arbítrio do juiz, justifiquem a recusa da exibição;

VI - houver disposição legal que justifique a recusa da exibição.

Parágrafo único. Se os motivos de que tratam os incisos I a VI do caput disserem respeito a apenas uma parcela do documento, a parte ou o terceiro exibirá a outra em cartório, para dela ser extraída cópia reprográfica, de tudo sendo lavrado auto circunstanciado.

 

Isso significa que o próprio legislador já reconheceu que o direito à prova deve conviver com outros valores igualmente importantes, estabelecendo regras claras sobre quando a exibição de documentos pode ser legitimamente negada.

 

Liberdade religiosa como direito fundamental amplo

No caso concreto, o STJ entendeu que a recusa em fornecer os documentos era legítima com base na liberdade religiosa, prevista no art. 5º, VI da Constituição:

Art. 5º (...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

 

A liberdade religiosa não se limita apenas à liberdade de crer ou de frequentar cultos. Ela engloba também a liberdade de organização religiosa, que é a prerrogativa das instituições religiosas de estruturarem seus ritos, procedimentos e regras internas sem interferência estatal.

Essa liberdade religiosa é expressão direta da dignidade da pessoa humana e está historicamente ligada aos direitos fundamentais de primeira geração, aqueles que estabelecem limites à intervenção do Estado na esfera de liberdade individual.

A Constituição (art. 19, I) é explícita ao vedar que o Estado embarace o funcionamento das organizações religiosas, e o Código Civil reforça esse princípio ao garantir que são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas.

 

O processo eclesiástico como exercício da liberdade religiosa

A sujeição de sacerdotes e fiéis ao processo eclesiástico representa, ela própria, uma manifestação do exercício da liberdade religiosa de todos os envolvidos.

Quando um sacerdote se submete a um processo disciplinar canônico, participa do rito, aceita e cumpre as penas impostas, ele não está sendo coagido por uma autoridade estatal dotada de poder de império.

Ele está, na verdade, exercitando sua fé, aceitando voluntariamente submeter-se às normas de sua comunidade religiosa.

Diferentemente da jurisdição estatal, que possui as características da imperatividade e da inafastabilidade, o processo eclesiástico só tem eficácia porque o próprio apenado concorda voluntariamente em se submeter a ele, movido por sua crença religiosa de que o fim último da pena é a salvação de sua alma.

 

A severidade das penas eclesiásticas comprova a natureza voluntária do processo

O STJ destacou que o processo eclesiástico pode resultar em penas graves: privação do exercício do sacerdócio, transferência para outro ofício, demissão do estado clerical, proibição de residir em determinado lugar, ou ordem de recolhimento em instituição por período determinado. Algumas dessas penas até restringem a liberdade de locomoção.

Ora, se essas penas graves só podem ser efetivamente cumpridas mediante a concordância voluntária do apenado (já que a Igreja não dispõe de poder coercitivo estatal para executá-las), isso comprova que todo o processo é permeado pelo exercício da liberdade religiosa.

O sacerdote aceita submeter-se a essas restrições severas porque sua consciência religiosa assim o determina, confiando que está cumprindo um caminho de expiação dentro de sua fé.

 

Risco de violação do direito de não se autoincriminar

Na jurisdição estatal brasileira, o réu tem direito ao silêncio e não pode ser obrigado a confessar (garantia constitucional do “nemo tenetur se detegere”). Mas no processo eclesiástico, a dinâmica é completamente diferente: existe um verdadeiro incentivo à confissão, pois o Código de Direito Canônico estabelece que a parte legitimamente interrogada deve responder e expor toda a verdade.

Essa regra reflete valores morais e religiosos, esperando que o fiel seja sincero mesmo quando é sujeito passivo do processo, confiando justamente no sigilo religioso para se abrir espiritualmente.

Se um sacerdote confessou fatos prejudiciais a si mesmo dentro do procedimento canônico - confiando no sigilo inerente àquela jurisdição apartada da estatal -, a quebra desse sigilo para uso em processo judicial estatal violaria frontalmente a garantia constitucional que lhe assegura o direito de não se autoincriminar.

 

Proteção das testemunhas e da confiança depositada na instituição

A quebra do sigilo coloca em risco a proteção de informações íntimas e sensíveis não apenas do sacerdote, mas de todas as testemunhas que depuseram no processo.

No procedimento canônico, comumente são os próprios sacerdotes e fiéis frequentadores do espaço religioso que prestam depoimentos, pois são eles que conhecem os fatos. Essas pessoas comparecem ao Tribunal Eclesiástico por livre e espontânea vontade considerando que não existe condução coercitiva como no processo penal estatal. Logo, essas pessoas participam atendendo a um imperativo de fé. Elas falam abertamente porque confiam no sigilo do ambiente religioso. Expor esses depoimentos violaria a confiança depositada na organização religiosa e poderia inibir futuros testemunhos em casos semelhantes.

Diversas normas legais protegem o sigilo religioso

O art. 13 do Decreto nº 7.107/2010, que internalizou o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé, garante expressamente “o segredo do ofício sacerdotal”, sendo que o exercício da atividade de julgamento das infrações eclesiásticas está inserido nesse ofício sacerdotal.

O art. 154 do Código Penal criminaliza a revelação de segredo do qual a pessoa tem ciência em razão de ministério, demonstrando que o sigilo ministerial é um valor constitucionalmente protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

O art. 207 do CPP estabelece restrições ao depoimento daqueles que, em razão de ministério, devam guardar segredo.

Todas essas normas convergem no sentido de prestigiar o sigilo das atividades religiosas, configurando hipóteses legais de recusa à exibição nos termos do art. 404, IV, V e VI do CPC.

 

Em suma:

Organização religiosa pode recusar o acesso a procedimento disciplinar eclesiástico instaurado em face de autoridade religiosa. 

STJ. 4ª Turma. Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 14/10/2025 (Info 868).


Dizer o Direito!