Imagine a seguinte situação
hipotética:
Carlos foi morto com tiros de
arma de fogo quando estava na estrada dirigindo seu carro.
A polícia iniciou uma
investigação que tinha João como principal suspeito.
A investigação concluiu que João
devia R$ 200 mil a Paulo. Como João estava sendo cobrado e não tinha como
pagar, planejou matar seu credor.
Ocorre que houve uma confusão
entre os veículos de Carlos e Paulo, que eram muito parecidos. Em outras
palavras, Carlos foi morto porque se acreditava que era o veículo de Paulo.
Cerca de quatro meses após a
morte de Carlos, Amarildo, amigo da família da vítima, relatou à polícia uma
experiência: durante a madrugada, sentiu-se angustiado e começou a escrever
involuntariamente em um caderno. Segundo Amarildo, que não é espírita, tratava-se
de uma manifestação do espírito de Carlos através dele (psicografia).
A carta psicografada mencionava
que a família não deveria buscar vingança, pois sua morte teria sido acidental.
O responsável seria João mesmo, mas o alvo seria Paulo. Amarildo entregou a
carta à polícia, que a juntou aos autos do inquérito.
O Ministério Público ofereceu
denúncia contra João.
A acusação juntou aos autos carta psicografada.
A carta, apesar de falar que a vítima foi morta por
engano, reforçava que a tese de que o autor foi João. Logo, era prejudicial ao
réu.
Diante disso, a defesa impetrou habeas corpus pedindo o desentranhamento
da carta psicografada juntada como prova nos autos. Argumentou que a fé,
religião, crença ou rituais de qualquer dos envolvidos no processo penal não
pode balizar a admissão de objeto inerente a ritualística própria de cada
religião para servir como prova ou meio de prova para o convencimento de
jurados leigos.
A ordem foi denegada pelo Tribunal de Justiça, que
afirmou o seguinte: “a juntada de um documento psicografado, que caracteriza
uma prova indireta, por si só, não fere qualquer preceito legal, tampouco o
princípio do contraditório ou a laicidade do Estado, e, a depender das
circunstâncias, não pode ser considerado produzido por meios ilícitos, não se
enquadrando, portanto, no disposto pelo artigo 5.º, LVI, da Constituição
Federal”.
O réu interpôs, então, recurso ordinário constitucional
dirigido ao STJ sustentando que a carta psicografada não pode ser admitida como
prova no processo judicial, devendo ser desentranhada dos autos.
O STJ deu provimento ao recurso? A carta
psicografada foi desentranhada?
SIM.
Vale ressaltar que, apesar de esse ser um tema comum em
livros e até em Tribunais de Justiça, essa foi a primeira vez que a
admissibilidade de carta psicografada em processo penal foi analisada
detidamente pelo STJ.
Concepção racional da prova e Tribunal do Júri
Historicamente, o nosso direito passou de um sistema de
prova legal ou tarifada (em que a lei atribuía valores fixos e hierárquicos
para cada tipo de prova) para o sistema de livre apreciação da prova, que é o
modelo vigente atualmente no Brasil.
No sistema antigo, a prova era considerada válida se
atendesse a certos rituais formais, como, por exemplo, número mínimo de
testemunhas ou confissão expressa, independentemente da sua conexão lógica com
a verdade dos fatos. Era um modelo formalista e arcaico.
Com o tempo, o direito passou a exigir que a decisão
fosse baseada não em formas, mas em racionalidade: os fatos devem ser apurados
por meio de meios de prova que façam sentido lógico, e o juiz deve justificar
por que acredita que determinado fato ocorreu com base na prova.
Esse sistema está previsto expressamente no art. 155 do CPP:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Parágrafo único. Somente quanto
ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei
civil.
Além disso, a Constituição Federal, no art. 93, IX, exige
que todas as decisões do Poder Judiciário sejam fundamentadas, o que reforça
que a decisão deve ser racional e controlável.
Vale ressaltar, contudo, que a liberdade judicial na
apreciação das provas deve ser guiada por critérios racionais de apuração dos
fatos.
A liberdade concedida ao julgador para avaliar as provas
existe justamente para permitir que o juízo sobre os fatos seja construído de
maneira lógica e fundamentada. O órgão julgador não possui liberdade para
formar convicções irracionais.
O princípio da livre apreciação da prova deve ser então ser
guiado pela concepção
racionalista da prova. Isso significa que a decisão do julgador precisa
se apoiar em critérios gerais de racionalidade e coerência, e não apenas em
impressões subjetivas.
Essa exigência se aplica, inclusive, para julgamentos promovidos
pelo Tribunal do Júri.
Assim, o julgamento popular pelo Júri deve ser
epistemicamente* orientado, razão pela qual é necessário um juízo de
admissibilidade rigoroso, que evite a incorporação de provas inidôneas no
processo que conduzam a veredictos irracionais.
* A
palavra “epistêmica” vem de epistemologia, que é o ramo da filosofia que estuda
o conhecimento, ou seja, como conhecemos as coisas, como sabemos se algo é
verdadeiro, quais são os limites do nosso conhecimento. No contexto jurídico,
refere-se à capacidade de uma prova gerar conhecimento confiável sobre os
fatos.
Considerando que os jurados não têm o dever de motivar
seus veredictos e apenas respondem “sim” ou “não” aos quesitos formulados pelo
juiz presidente, torna-se essencial controlar quais provas podem ser
apresentadas ao Tribunal do Júri. Esse controle de admissibilidade é
fundamental para garantir a racionalidade das decisões.
Assim, devem permanecer nos autos apenas as provas que
permitam tirar conclusões lógicas e fundamentadas sobre as versões dos fatos
apresentadas no processo. Em sentido contrário, devem ser excluídos os
elementos probatórios que só se relacionem às hipóteses das partes por meio de
inferências inválidas, enganosas ou sem base racional.
A idoneidade epistêmica como requisito de
admissibilidade da prova
Para uma prova ser admitida no processo, é preciso
cumprir dois requisitos ao mesmo tempo (requisitos cumulativos):
1) relevância da prova;
2) legalidade da prova (ou seja, licitude e legitimidade
do meio de obtenção e produção).
A relevância da prova divide-se em uma dupla dimensão:
• dimensão lógico-jurídica: a prova deve ter ligação com
os fatos que realmente importam para o processo, isto é, com o thema
probandum. Uma prova só é pertinente quando ajuda a esclarecer algum ponto
que precisa ser demonstrado para que o juiz possa decidir a causa. Se o fato
que ela pretende mostrar não tiver relação com a controvérsia, a prova é
irrelevante e não deve ser admitida.
• dimensão epistemológica: a prova deve ter uma capacidade
mínima de produzir conhecimento confiável sobre o fato alegado. Mesmo que o
fato seja importante, a prova não será relevante se o meio utilizado para
produzi-la for totalmente incapaz de gerar inferências racionais, como
adivinhações, práticas mágicas ou depoimentos claramente não confiáveis. Assim,
a prova só é considerada relevante quando trata de um fato pertinente e quando
o meio de obtenção tem pelo menos um grau mínimo de fiabilidade.
Exemplos de prova epistemicamente inidônea:
• o “depoimento” de um papagaio. Mesmo o papagaio
falando, não há como, racionalmente, confiar naquilo como demonstração fática;
• provas baseadas em “magia”, “oráculos”, radiestesia,
espiritismo etc. Esses meios não permitem um controle racional intersubjetivo
adequado.
Se o meio de prova é totalmente desprovido de mínima
fiabilidade, por absoluta inidoneidade epistêmica, ele deve ser inadmitido.
Vale ressaltar que a fiabilidade da prova não é algo
binário (não é só “fiável” ou “não fiável”). É um atributo gradual: a prova
pode ser mais ou menos fiável, em diferentes graus.
Além disso, ao examinar a idoneidade epistêmica na fase
de admissibilidade, o juiz deve verificar apenas se há mínima aptidão do meio
de prova para corroborar o fato pertinente ou relevante. Ou seja, basta um grau
mínimo de fiabilidade. Somente quando houver inadequação epistêmica absoluta e
manifesta ou fiabilidade inexistente, ínfima ou desprezível, é que se justifica
a inadmissão da prova (como nos exemplos do papagaio, magia etc.). Se a prova
tiver fiabilidade baixa ou questionável, mas não zero, ela deve ser admitida, e
o problema será avaliado depois, na fase de valoração.
O controle da idoneidade epistêmica das provas no
procedimento especial do Tribunal do Júri
O controle da idoneidade epistêmica das provas é ainda
mais importante nos processos submetidos ao Tribunal do Júri, porque, ao
contrário do que ocorre nos julgamentos realizados por juízes togados, os
jurados não apresentam decisões motivadas nem deliberam formalmente entre si.
Nos processos conduzidos por juízes togados, a mesma
pessoa verifica a admissibilidade e faz a valoração da prova, podendo rejeitar
conclusões irracionais no momento de fundamentar a sentença, mesmo que uma
prova sem fiabilidade tenha sido admitida. Por isso, nesses casos, excluir uma
prova manifestamente inidônea, como o “depoimento” de um papagaio, pode não
trazer grande benefício, pois o juiz togado tem condições de reconhecer sua
inutilidade posteriormente, sem prejuízo ao julgamento.
Já no Tribunal do Júri, como os jurados não motivam seus
veredictos, é essencial que o juiz presidente faça um filtro rigoroso e impeça
que o corpo de jurados tenha contato com provas irrelevantes ou totalmente
destituídas de confiabilidade, evitando que isso conduza a decisões
irracionais.
Esse controle estrito vale para todas as partes, pois
nenhuma delas tem direito a produzir provas impertinentes, irrelevantes ou
epistemicamente inidôneas, já que a racionalidade das decisões judiciais deve
ser preservada independentemente de quem seja favorecido.
Embora no Tribunal do Júri exista a garantia da plenitude
de defesa, essa garantia não autoriza a defesa a violar regras processuais nem
a produzir provas irracionais.
A admissibilidade da carta psicografada no
procedimento do Tribunal do Júri
A psicografia consiste no ato pelo qual uma pessoa viva
(referida como médium) declara ou transmite mensagens que haveriam sido
passadas a ela por uma pessoa morta, as quais podem se materializar pelo médium
em um documento escrito, comumente denominado “carta psicografada”.
Ao longo da História, as hipóteses de existência de vida
após a morte (afterlife) e de possibilidade de comunicação com pessoas
mortas (mediunidade) mobilizaram não só o debate filosófico, mas também
experimentos científicos voltados a verificá-las. Todavia, nenhum desses
experimentos logrou êxito em fornecer resultados sólidos e embasados em métodos
confiáveis que permitissem afirmar ou refutar tais hipóteses. Até hoje, não
houve nenhuma empreitada científica frutífera de comprovação dos substratos
teóricos da psicografia, notadamente a vida pós-morte e a mediunidade.
Assim, acreditar nela é um ato de fé, e atos de fé não
podem funcionar como atos de prova, pois a prova exige demonstração racional,
enquanto a fé prescinde dessa racionalidade.
Dessa forma, uma carta psicografada carece de idoneidade
epistêmica, pois não existe conhecimento racional sobre a possibilidade do
fenômeno que lhe dá origem. Por isso, a carta psicografada não alcança sequer o
grau mínimo de fiabilidade necessário para ser admitida como prova judicial.
Alguns autores afirmam que a carta psicografada seria até mesmo uma prova
ilícita, mas o ponto central não é violação à liberdade religiosa ou à
laicidade estatal: o vício essencial está na irrelevância epistemológica, ou seja,
na total falta de confiabilidade do meio de prova.
Importante notar que a psicografia, por si só, não
decorre de nenhum ato ilícito: sua obtenção não viola direitos fundamentais,
diferentemente, por exemplo, de uma busca domiciliar ilegal. O problema não
está na licitude, mas na fiabilidade. Por isso, a carta psicografada não
contamina outras provas que eventualmente venham a ser encontradas a partir
dela. Assim como ocorre com uma denúncia anônima, a carta psicografada pode
servir, no máximo, como elemento de informação durante a investigação preliminar:
um ponto de partida para verificar fatos por outros meios legítimos e
confiáveis. Porém, ela não tem valor probatório e não pode ser usada para
fundamentar conclusões no processo judicial.
No Tribunal do Júri, essa inadmissibilidade é ainda mais
importante, porque os jurados não motivam seus veredictos; permitir que tenham
acesso a uma prova totalmente inidônea criaria o risco de julgamentos
irracionais.
Por isso, a carta psicografada deve ser desentranhada dos
autos, evitando que seja valorada pelos jurados e garantindo que o processo
seja guiado por padrões mínimos de racionalidade.
Em suma:
A carta psicografada não pode ser admitida como prova
no processo judicial, por se tratar de meio desprovido de mínima idoneidade
epistêmica para a corroboração racional de enunciados fáticos, devendo ser
desentranhada dos autos.
STJ. 6ª
Turma. RHC 167.478-MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado dia 21/10/2025 (Info
870).