Dizer o Direito

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

INFORMATIVO Comentado 1199 STF (completo e resumido)

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1199 DO STF


Direito Constitucional

PROCESSO LEGISLATIVO

§  Lei distrital que institua parceria público-privada para financiamento de infraestrutura pública é formalmente constitucional, mesmo sendo de iniciativa parlamentar, mas não pode prever benefícios fiscais nem abranger categorias genéricas de equipamentos públicos.

 

DIREITO AMBIENTAL

MEIO AMBIENTE

§  São constitucionais os dispositivos da Lei 13.576/2017 (que instituiu a Política Nacional de Biocombustíveis - RenovaBio) que estabelecem metas compulsórias de descarbonização e mecanismos de incentivo à produção e consumo de biocombustíveis.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

JUIZADOS ESPECIAIS

§  A coisa julgada inconstitucional no microssistema dos juizados especiais pode ser contestada por meio de simples petição na fase de execução, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória.

 

DIREITO DO TRABALHO

JORNADA DE TRABALHO

§  O recreio escolar e o intervalo entre aulas devem, em regra, integrar a jornada de trabalho do professor, salvo se o empregador provar que o docente se dedicava a atividades pessoais durante esses períodos (norma coletiva pode dispor em sentido diverso).


A carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial, mesmo no Júri

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carlos foi morto com tiros de arma de fogo quando estava na estrada dirigindo seu carro.

A polícia iniciou uma investigação que tinha João como principal suspeito.

A investigação concluiu que João devia R$ 200 mil a Paulo. Como João estava sendo cobrado e não tinha como pagar, planejou matar seu credor.

Ocorre que houve uma confusão entre os veículos de Carlos e Paulo, que eram muito parecidos. Em outras palavras, Carlos foi morto porque se acreditava que era o veículo de Paulo.

Cerca de quatro meses após a morte de Carlos, Amarildo, amigo da família da vítima, relatou à polícia uma experiência: durante a madrugada, sentiu-se angustiado e começou a escrever involuntariamente em um caderno. Segundo Amarildo, que não é espírita, tratava-se de uma manifestação do espírito de Carlos através dele (psicografia).

A carta psicografada mencionava que a família não deveria buscar vingança, pois sua morte teria sido acidental. O responsável seria João mesmo, mas o alvo seria Paulo. Amarildo entregou a carta à polícia, que a juntou aos autos do inquérito.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João.

A acusação juntou aos autos carta psicografada.

A carta, apesar de falar que a vítima foi morta por engano, reforçava que a tese de que o autor foi João. Logo, era prejudicial ao réu.

Diante disso, a defesa impetrou habeas corpus pedindo o desentranhamento da carta psicografada juntada como prova nos autos. Argumentou que a fé, religião, crença ou rituais de qualquer dos envolvidos no processo penal não pode balizar a admissão de objeto inerente a ritualística própria de cada religião para servir como prova ou meio de prova para o convencimento de jurados leigos.

A ordem foi denegada pelo Tribunal de Justiça, que afirmou o seguinte: “a juntada de um documento psicografado, que caracteriza uma prova indireta, por si só, não fere qualquer preceito legal, tampouco o princípio do contraditório ou a laicidade do Estado, e, a depender das circunstâncias, não pode ser considerado produzido por meios ilícitos, não se enquadrando, portanto, no disposto pelo artigo 5.º, LVI, da Constituição Federal”.

O réu interpôs, então, recurso ordinário constitucional dirigido ao STJ sustentando que a carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial, devendo ser desentranhada dos autos.

 

O STJ deu provimento ao recurso? A carta psicografada foi desentranhada?

SIM.

Vale ressaltar que, apesar de esse ser um tema comum em livros e até em Tribunais de Justiça, essa foi a primeira vez que a admissibilidade de carta psicografada em processo penal foi analisada detidamente pelo STJ.

 

Concepção racional da prova e Tribunal do Júri

Historicamente, o nosso direito passou de um sistema de prova legal ou tarifada (em que a lei atribuía valores fixos e hierárquicos para cada tipo de prova) para o sistema de livre apreciação da prova, que é o modelo vigente atualmente no Brasil.

No sistema antigo, a prova era considerada válida se atendesse a certos rituais formais, como, por exemplo, número mínimo de testemunhas ou confissão expressa, independentemente da sua conexão lógica com a verdade dos fatos. Era um modelo formalista e arcaico.

Com o tempo, o direito passou a exigir que a decisão fosse baseada não em formas, mas em racionalidade: os fatos devem ser apurados por meio de meios de prova que façam sentido lógico, e o juiz deve justificar por que acredita que determinado fato ocorreu com base na prova.

Esse sistema está previsto expressamente no art. 155 do CPP:

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.

 

Além disso, a Constituição Federal, no art. 93, IX, exige que todas as decisões do Poder Judiciário sejam fundamentadas, o que reforça que a decisão deve ser racional e controlável.

Vale ressaltar, contudo, que a liberdade judicial na apreciação das provas deve ser guiada por critérios racionais de apuração dos fatos.

A liberdade concedida ao julgador para avaliar as provas existe justamente para permitir que o juízo sobre os fatos seja construído de maneira lógica e fundamentada. O órgão julgador não possui liberdade para formar convicções irracionais.

O princípio da livre apreciação da prova deve ser então ser guiado pela concepção racionalista da prova. Isso significa que a decisão do julgador precisa se apoiar em critérios gerais de racionalidade e coerência, e não apenas em impressões subjetivas.

Essa exigência se aplica, inclusive, para julgamentos promovidos pelo Tribunal do Júri.

Assim, o julgamento popular pelo Júri deve ser epistemicamente* orientado, razão pela qual é necessário um juízo de admissibilidade rigoroso, que evite a incorporação de provas inidôneas no processo que conduzam a veredictos irracionais.

 

* A palavra “epistêmica” vem de epistemologia, que é o ramo da filosofia que estuda o conhecimento, ou seja, como conhecemos as coisas, como sabemos se algo é verdadeiro, quais são os limites do nosso conhecimento. No contexto jurídico, refere-se à capacidade de uma prova gerar conhecimento confiável sobre os fatos.

 

Considerando que os jurados não têm o dever de motivar seus veredictos e apenas respondem “sim” ou “não” aos quesitos formulados pelo juiz presidente, torna-se essencial controlar quais provas podem ser apresentadas ao Tribunal do Júri. Esse controle de admissibilidade é fundamental para garantir a racionalidade das decisões.

Assim, devem permanecer nos autos apenas as provas que permitam tirar conclusões lógicas e fundamentadas sobre as versões dos fatos apresentadas no processo. Em sentido contrário, devem ser excluídos os elementos probatórios que só se relacionem às hipóteses das partes por meio de inferências inválidas, enganosas ou sem base racional.

 

A idoneidade epistêmica como requisito de admissibilidade da prova

Para uma prova ser admitida no processo, é preciso cumprir dois requisitos ao mesmo tempo (requisitos cumulativos):

1) relevância da prova;

2) legalidade da prova (ou seja, licitude e legitimidade do meio de obtenção e produção).

 

A relevância da prova divide-se em uma dupla dimensão:

• dimensão lógico-jurídica: a prova deve ter ligação com os fatos que realmente importam para o processo, isto é, com o thema probandum. Uma prova só é pertinente quando ajuda a esclarecer algum ponto que precisa ser demonstrado para que o juiz possa decidir a causa. Se o fato que ela pretende mostrar não tiver relação com a controvérsia, a prova é irrelevante e não deve ser admitida.

• dimensão epistemológica: a prova deve ter uma capacidade mínima de produzir conhecimento confiável sobre o fato alegado. Mesmo que o fato seja importante, a prova não será relevante se o meio utilizado para produzi-la for totalmente incapaz de gerar inferências racionais, como adivinhações, práticas mágicas ou depoimentos claramente não confiáveis. Assim, a prova só é considerada relevante quando trata de um fato pertinente e quando o meio de obtenção tem pelo menos um grau mínimo de fiabilidade.

 

Exemplos de prova epistemicamente inidônea:

• o “depoimento” de um papagaio. Mesmo o papagaio falando, não há como, racionalmente, confiar naquilo como demonstração fática;

• provas baseadas em “magia”, “oráculos”, radiestesia, espiritismo etc. Esses meios não permitem um controle racional intersubjetivo adequado.

 

Se o meio de prova é totalmente desprovido de mínima fiabilidade, por absoluta inidoneidade epistêmica, ele deve ser inadmitido.

Vale ressaltar que a fiabilidade da prova não é algo binário (não é só “fiável” ou “não fiável”). É um atributo gradual: a prova pode ser mais ou menos fiável, em diferentes graus.

Além disso, ao examinar a idoneidade epistêmica na fase de admissibilidade, o juiz deve verificar apenas se há mínima aptidão do meio de prova para corroborar o fato pertinente ou relevante. Ou seja, basta um grau mínimo de fiabilidade. Somente quando houver inadequação epistêmica absoluta e manifesta ou fiabilidade inexistente, ínfima ou desprezível, é que se justifica a inadmissão da prova (como nos exemplos do papagaio, magia etc.). Se a prova tiver fiabilidade baixa ou questionável, mas não zero, ela deve ser admitida, e o problema será avaliado depois, na fase de valoração.

 

O controle da idoneidade epistêmica das provas no procedimento especial do Tribunal do Júri

O controle da idoneidade epistêmica das provas é ainda mais importante nos processos submetidos ao Tribunal do Júri, porque, ao contrário do que ocorre nos julgamentos realizados por juízes togados, os jurados não apresentam decisões motivadas nem deliberam formalmente entre si.

Nos processos conduzidos por juízes togados, a mesma pessoa verifica a admissibilidade e faz a valoração da prova, podendo rejeitar conclusões irracionais no momento de fundamentar a sentença, mesmo que uma prova sem fiabilidade tenha sido admitida. Por isso, nesses casos, excluir uma prova manifestamente inidônea, como o “depoimento” de um papagaio, pode não trazer grande benefício, pois o juiz togado tem condições de reconhecer sua inutilidade posteriormente, sem prejuízo ao julgamento.

Já no Tribunal do Júri, como os jurados não motivam seus veredictos, é essencial que o juiz presidente faça um filtro rigoroso e impeça que o corpo de jurados tenha contato com provas irrelevantes ou totalmente destituídas de confiabilidade, evitando que isso conduza a decisões irracionais.

Esse controle estrito vale para todas as partes, pois nenhuma delas tem direito a produzir provas impertinentes, irrelevantes ou epistemicamente inidôneas, já que a racionalidade das decisões judiciais deve ser preservada independentemente de quem seja favorecido.

Embora no Tribunal do Júri exista a garantia da plenitude de defesa, essa garantia não autoriza a defesa a violar regras processuais nem a produzir provas irracionais.

 

A admissibilidade da carta psicografada no procedimento do Tribunal do Júri

A psicografia consiste no ato pelo qual uma pessoa viva (referida como médium) declara ou transmite mensagens que haveriam sido passadas a ela por uma pessoa morta, as quais podem se materializar pelo médium em um documento escrito, comumente denominado “carta psicografada”.

Ao longo da História, as hipóteses de existência de vida após a morte (afterlife) e de possibilidade de comunicação com pessoas mortas (mediunidade) mobilizaram não só o debate filosófico, mas também experimentos científicos voltados a verificá-las. Todavia, nenhum desses experimentos logrou êxito em fornecer resultados sólidos e embasados em métodos confiáveis que permitissem afirmar ou refutar tais hipóteses. Até hoje, não houve nenhuma empreitada científica frutífera de comprovação dos substratos teóricos da psicografia, notadamente a vida pós-morte e a mediunidade.

Assim, acreditar nela é um ato de fé, e atos de fé não podem funcionar como atos de prova, pois a prova exige demonstração racional, enquanto a fé prescinde dessa racionalidade.

Dessa forma, uma carta psicografada carece de idoneidade epistêmica, pois não existe conhecimento racional sobre a possibilidade do fenômeno que lhe dá origem. Por isso, a carta psicografada não alcança sequer o grau mínimo de fiabilidade necessário para ser admitida como prova judicial. Alguns autores afirmam que a carta psicografada seria até mesmo uma prova ilícita, mas o ponto central não é violação à liberdade religiosa ou à laicidade estatal: o vício essencial está na irrelevância epistemológica, ou seja, na total falta de confiabilidade do meio de prova.

Importante notar que a psicografia, por si só, não decorre de nenhum ato ilícito: sua obtenção não viola direitos fundamentais, diferentemente, por exemplo, de uma busca domiciliar ilegal. O problema não está na licitude, mas na fiabilidade. Por isso, a carta psicografada não contamina outras provas que eventualmente venham a ser encontradas a partir dela. Assim como ocorre com uma denúncia anônima, a carta psicografada pode servir, no máximo, como elemento de informação durante a investigação preliminar: um ponto de partida para verificar fatos por outros meios legítimos e confiáveis. Porém, ela não tem valor probatório e não pode ser usada para fundamentar conclusões no processo judicial.

No Tribunal do Júri, essa inadmissibilidade é ainda mais importante, porque os jurados não motivam seus veredictos; permitir que tenham acesso a uma prova totalmente inidônea criaria o risco de julgamentos irracionais.

Por isso, a carta psicografada deve ser desentranhada dos autos, evitando que seja valorada pelos jurados e garantindo que o processo seja guiado por padrões mínimos de racionalidade.

 

Em suma:

A carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial, por se tratar de meio desprovido de mínima idoneidade epistêmica para a corroboração racional de enunciados fáticos, devendo ser desentranhada dos autos. 

STJ. 6ª Turma. RHC 167.478-MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado dia 21/10/2025 (Info 870).


terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Em comarcas onde houver sala passiva, cabe ao juiz deprecado apenas viabilizar a estrutura física e logística para a audiência, devendo o juiz que processa ouvir as partes e as testemunhas diretamente por meio de videoconferência

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina é trabalhadora rural que reside no município de Apiaí, no interior de São Paulo.

Ela ingressou com ação contra o INSS pedindo a concessão de aposentadoria rural por idade.

A ação foi proposta no Juizado Especial Federal de Itapeva.

 

No Município de Apiaí não tem Justiça Federal.

Itapeva é um município próximo a Apiaí.

De acordo com um Provimento do TRF3, a Vara Federal da Subseção Judiciária de Itapeva possui jurisdição sobre vários municípios próximos, dentre eles Apiaí.

Como Regina tem domicílio em Apiaí (que não tem vara federal), ela deve propor sua ação no JEF de Itapeva, que é a sede da Justiça Federal mais próxima com competência para julgar esse tipo de causa.

Se quiser entender melhor como funcionam essas regras de competência:

https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/8713/se-uma-acao-contra-o-inss-estava-tramitando-na-justica-estadual-por-forca-da-competencia-federal-delegada-art-109-3o-da-cf-as-alteracoes-promovidas-pela-lei-138762019-nao-irao-influenciar-neste-processo?palavra-chave=13.876%2F2019

 

Durante a instrução processual, o juiz federal de Itapeva expediu carta precatória ao Juízo de Direito da Vara Única de Apiaí (Justiça Estadual) para que este realizasse a oitiva das testemunhas arroladas por Regina, todas residentes naquele município.

 

Argumentos do juízo estadual de Apiaí para recusar o cumprimento da precatória

O juiz estadual de Apiaí, ao receber a carta precatória, recusou-se a cumpri-la nos termos solicitados.

O magistrado argumentou que não havia necessidade da carta, pois o juiz federal poderia ele mesmo realizar a oitiva das testemunhas por videoconferência, fazendo uso da sala passiva que existe no fórum da Comarca de Apiaí.

 

O que é a sala passiva?

A sala passiva é um espaço físico instalado dentro do fórum da comarca, equipado com recursos de videoconferência, utilizado para que as partes e testemunhas domiciliadas no município sejam ouvidas, por videoconferência, por juízes que estejam em outra comarca.

Essa sala funciona como uma extensão do juízo deprecante, permitindo que o magistrado responsável pelo processo conduza, à distância, atos instrutórios como oitivas, sem necessidade de deslocamento das partes até a sede da vara onde tramita a ação.

Na prática, a sala passiva conta com computador, câmera, microfone e conexão de internet adequada para transmissão em tempo real.

A testemunha ou a parte comparece à sala passiva na comarca de sua residência, enquanto o juiz deprecante permanece em sua sala na sede da vara, conduzindo a audiência por videoconferência. Um servidor do próprio fórum fica responsável por receber as pessoas, verificar a identidade, acomodá-las na sala e garantir o funcionamento dos equipamentos.

Essa estrutura visa preservar o princípio da identidade física do juiz, garantir maior celeridade processual e facilitar o acesso à justiça, especialmente em regiões com longas distâncias entre comarca de residência e sede da vara judicial.

A utilização da sala passiva pode ocorrer tanto entre juízes de diferentes comarcas da Justiça Estadual, quanto entre juízos federais e estaduais, dentro do regime de cooperação judiciária previsto nos arts. 67 a 69 do CPC.

 

Desse modo, o juiz de Apiaí argumentou que a Comarca possui sala passiva instalada e em pleno funcionamento. Isso significa que existia meio técnico adequado para que o juiz federal de Itapeva realizasse a oitiva das testemunhas diretamente, por videoconferência, sem necessidade de delegar a condução do ato ao juízo estadual.

Além disso, ele invocou a Resolução 105/2010 do CNJ, alterada pela Resolução 326/2020, que estabelece preferência pela inquirição por videoconferência quando a testemunha não residir na sede do juízo processante:

Art. 3º Quando a testemunha arrolada não residir na sede do juízo em que tramita o processo, deve-se dar preferência, em decorrência do princípio da identidade física do juiz, à expedição da carta precatória para a inquirição pelo sistema de videoconferência.

§ 1º O testemunho por videoconferência deve ser prestado na audiência una realizada no juízo deprecante, observada a ordem estabelecida no art. 400, caput, do Código de Processo Penal.

§ 2º A direção da inquirição de testemunha realizada por sistema de videoconferência será do juiz deprecante.

 

Juízo federal suscitou conflito

O juízo federal de Itapeva, por sua vez, suscitou conflito negativo de competência perante o STJ, alegando que o juízo deprecado não poderia recusar o cumprimento da carta precatória por motivo não previsto no art. 267 do CPC, que estabelece rol taxativo de hipóteses de recusa:

Art. 267. O juiz recusará cumprimento a carta precatória ou arbitral, devolvendo-a com decisão motivada quando:

I - a carta não estiver revestida dos requisitos legais;

II - faltar ao juiz competência em razão da matéria ou da hierarquia;

III - o juiz tiver dúvida acerca de sua autenticidade.

Parágrafo único. No caso de incompetência em razão da matéria ou da hierarquia, o juiz deprecado, conforme o ato a ser praticado, poderá remeter a carta ao juiz ou ao tribunal competente.

 

O STJ concordou com os argumentos do juízo federal ou estadual? Existindo sala passiva de videoconferência na comarca onde reside a testemunha, o juiz federal pode expedir carta precatória para que o juiz estadual realize a oitiva?

NÃO. No caso concreto, o STJ concordou com os argumentos do juízo estadual (deprecado).

Existindo sala passiva de videoconferência na comarca onde reside a testemunha, o juiz do local onde tramita o processo não pode expedir carta precatória para que o juiz estadual realize a oitiva.

Nesses casos, a carta precatória é expedida, mas apenas para que o juízo deprecado faça os atos preparatórios, ou seja, para que ele disponibilize a sala passiva no dia e hora agendados, faça a intimação das partes e testemunhas e, enfim, forneça o apoio logístico.

A condução da audiência propriamente dita, com a inquirição das testemunhas e a coleta dos depoimentos, deve ser realizada pelo próprio juiz federal deprecante, por videoconferência, a partir de sua sala na sede da vara.

Veja abaixo um resumo dos argumentos do STJ:

 

Jurisprudência anterior do STJ e distinguishing

Em casos análogos, o STJ vinha adotando o entendimento de que a prática de atos processuais por videoconferência seria faculdade do juízo deprecante, ou seja, ele poderia escolher se queria deprecar tudo (juízo estadual faça a oitiva também) ou apenas os atos de apoio à audiência por videoconferência.

Ocorre que, em julgamento ocorrido no dia 8 de maio de 2025, a Primeira Seção do STJ mudou de posição e passou a entender que, havendo sala passiva na comarca, os atos instrutórios devem ser realizados diretamente pelo juiz competente por meio de videoconferência, limitando-se a deprecação aos atos preparatórios:

Havendo sala passiva instalada na comarca, a deprecação deve limitar-se à disponibilização dessa estrutura e aos atos preparatórios necessários, cabendo ao juiz competente realizar diretamente a oitiva das partes e testemunhas por videoconferência.

A expedição excessiva e desproporcional de cartas precatórias, quando há meios tecnológicos disponíveis para a prática direta dos atos instrutórios pelo juízo competente, viola o dever de cooperação e representa indevida transferência de atribuições.

A realização de audiência por videoconferência com uso de sala passiva concretiza o princípio da identidade física do juiz, melhora o acesso à justiça e atende às diretrizes de organização judiciária decorrentes da Lei 13.876/2019 e da EC 103/2019.

STJ. 1ª Seção. CC 209.623/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 8/5/2025.

 

Princípio da cooperação nacional

O STJ fundamentou sua decisão no princípio da cooperação nacional previsto no art. 67 do CPC:

Art. 67. Aos órgãos do Poder Judiciário, estadual ou federal, especializado ou comum, em todas as instâncias e graus de jurisdição, inclusive aos tribunais superiores, incumbe o dever de recíproca cooperação, por meio de seus magistrados e servidores.

 

Esse princípio impõe aos órgãos do Poder Judiciário o dever de cooperar entre si para a prestação de uma tutela jurisdicional mais célere e efetiva, viabilizando a obtenção de resultados máximos com menor dispêndio de tempo e custos.

 

Resolução 105/2010 do CNJ e o princípio da identidade física do juiz

Deve-se mencionar também a Resolução 105/2010 do CNJ.

O art. 3º dessa resolução estabelece que, quando a testemunha arrolada não residir na sede do juízo em que tramita o processo, deve-se dar preferência, em decorrência do princípio da identidade física do juiz, à expedição de carta precatória para inquirição pelo sistema de videoconferência.

O § 2º do mesmo dispositivo é expresso ao determinar que a direção da inquirição de testemunha realizada por sistema de videoconferência será do juiz deprecante. Apenas de maneira excepcional, quando não for possível o cumprimento da carta precatória pelo sistema de videoconferência, é que se admite que o juiz deprecado proceda à inquirição da testemunha, conforme previsto no art. 3º, § 3º, III, da mesma resolução:

Art. 3º (...)

§ 3º A carta precatória deverá conter:

(...)

III – A ressalva de que, não sendo possível o cumprimento da carta precatória pelo sistema de videoconferência, o juiz deprecado proceda à inquirição da testemunha em data anterior à designada para a realização, no juízo deprecante, da audiência una. (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020). 

 

Essa resolução evidencia que se deve buscar a preservação do princípio da identidade física do juiz, segundo o qual o magistrado que colhe a prova oral deve ser, preferencialmente, o mesmo que proferirá a sentença. Esse princípio tem especial importância em ações previdenciárias de aposentadoria rural por idade, nas quais a prova testemunhal é frequentemente decisiva e a valoração da credibilidade das testemunhas depende da percepção direta do magistrado que conduz a audiência.

 

Limitação do objeto da carta precatória

Assim, nos locais em que existe sala passiva de videoconferência, a deprecação deve limitar-se à disponibilização dessa sala em data e hora previamente agendadas, à intimação das partes e testemunhas e aos demais atos preparatórios necessários.

A condução da audiência propriamente dita, com a inquirição das testemunhas e a coleta dos depoimentos, deve ser realizada pelo próprio juiz deprecante, por videoconferência, a partir de sua sala na sede da vara.

O magistrado efetivamente competente é quem deve cumprir, sequencialmente, seu dever de oitiva das partes e testemunhas.

 

Em suma:

Nos locais em que existente sala passiva, a deprecação há de limitar-se à disponibilização desta em data e hora previamente agendada, intimação de quem necessário e demais atos preparatórios de modo que o magistrado efetivamente competente cumpra, sequencialmente, seu dever de oitiva das partes e testemunhas. 

STJ. 1ª Seção. EDcl no AgInt no CC 196.645-SP, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 14/10/2025 (Info 870).


segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

INFORMATIVO Comentado 1198 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1198 DO STF


Direito Constitucional

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS

§  É inconstitucional lei estadual que fixa critérios para o exercício de atividade de transporte individual privado remunerado de passageiros por meio de motocicletas, exigindo a prévia autorização e regulamentação pelos municípios.

 

SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL

§  O Congresso Nacional está em mora na edição da lei complementar que regulamenta o imposto sobre grandes fortunas - IGF (art. 153, VII, CF/88).

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

REGIME PRÓPRIO DE PREVIDÊNCIA SOCIAL

§  O regime de previdência complementar dos servidores públicos federais pode ser instituído por lei ordinária de iniciativa do Poder Executivo, mediante entidades com personalidade jurídica de direito privado, aplicando-se também aos magistrados.


Revisão para o concurso de Promotor de Justiça do Distrito Federal (MPDFT)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Promotor do Distrito Federal (MPDFT).

Bons estudos.



 

Revisão para o concurso de Promotor de Justiça do Paraná (MP/PR)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Promotor do Paraná (MP/PR).

Bons estudos.



 

Compete à Justiça Comum Estadual julgar ação decorrente de bloqueio de conta em plataforma digital (ex: Uber, Ifood etc.) quando não houver pedido de reconhecimento de vínculo empregatício

Imagine a seguinte situação hipotética:

João trabalhava como entregador pela plataforma James Delivery há cerca de dois anos, utilizando sua própria motocicleta para realizar entregas na cidade de São Paulo.

Certo dia, ao tentar acessar o aplicativo para iniciar seu expediente, João descobriu que sua conta havia sido bloqueada, sem qualquer notificação prévia ou explicação por parte da plataforma.

João tentou contato pelos canais de atendimento da empresa, mas não obteve sucesso em reverter a situação ou sequer compreender o motivo do bloqueio.

Diante disso, ele ajuizou ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos materiais e morais na Justiça Estadual.

Na petição inicial, ele pediu a reativação de sua conta na plataforma, o pagamento de lucros cessantes correspondente ao período em que ficou impossibilitado de trabalhar e indenização por danos morais em razão do bloqueio arbitrário.

João não pleiteou o reconhecimento de vínculo empregatício nem o pagamento de verbas trabalhistas como FGTS, férias ou 13º salário.

O juiz estadual, contudo, declinou da competência para a Justiça do Trabalho, entendendo que a relação entre João e a plataforma seria de natureza trabalhista.

 

De acordo com o STJ, agiu corretamente o juiz estadual?

NÃO.

A competência material é definida a partir da causa de pedir e dos pedidos formulados na petição inicial. Esse critério decorre da própria estrutura do processo civil brasileiro, em que o autor delimita os contornos da lide por meio de sua manifestação inaugural.

Em palavras mais simples: a competência da Justiça Comum ou da Justiça do Trabalho deve ser definida com base na causa de pedir (os fatos e fundamentos jurídicos do pedido) e no pedido formulado na ação.

Se o autor não busca o reconhecimento de vínculo empregatício, nem valores típicos da relação de emprego (como FGTS, férias etc.), o caso não atrai a competência da Justiça do Trabalho.

Ao analisar a petição inicial de João, verifica-se que os pedidos tinham natureza eminentemente civil.

O autor requereu a reativação de sua conta na plataforma, a condenação da ré ao pagamento de lucros cessantes e indenização por danos morais em razão do bloqueio arbitrário.

Não foi feito qualquer pedido de reconhecimento de vínculo empregatício nem de pagamento de verbas rescisórias típicas da relação de trabalho, como FGTS, férias, 13º salário ou aviso prévio. Todos os pedidos decorriam do suposto inadimplemento contratual por parte da plataforma, configurando pretensão de natureza civil.

A relação entre trabalhadores e plataformas digitais de delivery e transporte é uma relação de prestação de serviço autônomo, de cunho eminentemente civil, e não relação de emprego.

Para que se caracterize relação de emprego, é necessária a presença simultânea dos seguintes requisitos: pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade. Na ausência de algum desses pressupostos, o trabalho caracteriza-se como autônomo ou eventual.

As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a chamada economia compartilhada (sharing economy).

Nesse modelo, a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Os motoristas e entregadores, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma.

A plataforma digital funciona como meio intermediador da contratação pactuada entre o prestador de serviço e o consumidor final. Trata-se de atividade inserida no cenário da gig economy, em que trabalhadores independentes realizam tarefas sob demanda, sem os vínculos tradicionais da relação empregatícia.

 

Em suma:

Compete à Justiça Comum Estadual (e não à Justiça do Trabalho) o julgamento da demanda relativa a bloqueio de conta em plataforma digital de delivery, se não houver pedido de reconhecimento de vínculo trabalhista ou verbas típicas da relação de trabalho. 

STJ. 2ª Seção. CC 214.451-SP, Rel. Min. Daniela Teixeira, julgado em 16/9/2025 (Info 870).

 

DOD Plus: julgados correlatos

Compete à Justiça comum, e não à Justiça do Trabalho, julgar demanda ajuizada por motorista de aplicativo em face da empresa gestora de plataforma digital, tendo em vista a relação de natureza civil existente entre as partes

A relação entre o motorista e a plataforma digital (ex: Uber) é de natureza civil. Isso porque não estão presentes os requisitos caracterizadores da relação de emprego, dentre eles a não eventualidade e a subordinação.

A plataforma digital atua apenas como intermediadora da contratação entre motorista e consumidor, configurando prestação de serviço autônomo no contexto da gig economy e da economia compartilhada.

No caso concreto, o autor (ex-motorista da Uber) ingressou com ação de indenização por ter sido excluído da plataforma. Neste caso, a competência para julgamento da demanda é da Justiça Comum estadual considerando que a pretensão possui natureza eminentemente civil, conforme o pedido e a causa de pedir.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.144.902-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 3/12/2024 (Info 838).

 


domingo, 7 de dezembro de 2025

INFORMATIVO Comentado 871 (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 871 DO STJ


DIREITO CONSTITUCIONAL

FORÇAS ARMADAS

§  Militares transgêneros têm direito ao uso do nome social e à atualização dos registros funcionais, sendo vedada a reforma compulsória fundada exclusivamente na identidade de gênero.

 

DIREITO ADMINISTRATIVO

ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA > AGÊNCIAS REGULADORAS

§  O STJ definiu 31/03/2025 como prazo final para que a União e a ANVISA cumpram integralmente o IAC 16 e regulamentam o plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (hemp) no Brasil, exclusivamente para fins medicinais e farmacêuticos.

 

DIREITO CIVIL

SUCESSÕES

§  O cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação sobre o último imóvel em que residia com o falecido, independentemente do valor do bem ou da existência de outros imóveis a serem partilhados.

 

DIREITO DO CONSUMIDOR

RESPONSABILIDADE PELO FATO DO SERVIÇO

§  Hotel responde pelos danos causados à saúde de uma criança em decorrência de acidente provocado pela fixação inadequada de extintor de incêndio em suas dependências.

 

BANCOS DE DADOS E CADASTROS DE CONSUMIDORES

§  Gestores de bancos de dados para proteção de crédito não podem disponibilizar dados pessoais de terceiros a consulentes sem consentimento prévio do titular, mas a mera disponibilização irregular de dados pessoais não sensíveis não gera dano moral presumido.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

JURISDIÇÃO

§  Não viola o princípio do juiz natural a sentença proferida por magistrado removido para outra vara, desde que haja ato administrativo do Tribunal autorizando sua cooperação no juízo de origem.

 

EXECUÇÃO > TÍTULOS EXECUTIVOS

§  Títulos executivos extrajudiciais eletrônicos podem ser assinados por qualquer modalidade de assinatura eletrônica, não sendo obrigatória a certificação ICP-Brasil, desde que a integridade do documento seja conferida por provedor de assinatura.

 

PROCESSO COLETIVO

§  Servidores que não participaram de ação coletiva podem rediscutir em ações individuais a obrigação de restituir valores ao erário, pois a coisa julgada coletiva desfavorável não os vincula.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

REVISÃO CRIMINAL

§  A revisão criminal exige provas novas e não pode ser usada para simples revaloração do conjunto probatório.

 

EXECUÇÃO PENAL

§  Reeducandos que realizam cursos a distância só podem remir a pena se o curso estiver integrado ao Projeto Político-Pedagógico da unidade ou sistema prisional, com comprovação de frequência e atividades.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

IMPOSTO DE RENDA

§  As empresas podem deduzir os juros sobre capital próprio (JCP) da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, ainda que referentes a exercícios anteriores ao da assembleia que autorizou o pagamento.

§  Participantes de previdência complementar fechada podem deduzir do IRPF as contribuições extraordinárias pagas para cobrir déficits, respeitado o limite de 12% dos rendimentos tributáveis.

 

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

AUXÍLIO-RECLUSÃO

§  É possível flexibilizar o critério econômico para conceder o auxílio-reclusão quando a renda do segurado preso ultrapassa o limite legal?


Dizer o Direito!