Dizer o Direito

quarta-feira, 28 de maio de 2025

A confissão informal pode ser considerada para fins de aplicação da atenuante da confissão espontânea?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é um homem com histórico de dependência química e reincidente no crime de furto.

Determinada noite, ele foi flagrado pela polícia enquanto tentava fugir de um salão comercial carregando partes de uma estrutura de alumínio utilizada para um toldo.

Ao ser abordado pelos policiais, que atendiam a uma chamada sobre furto em andamento, João admitiu verbalmente ter arrombado a porta do estabelecimento para subtrair os materiais, justificando que era usuário de drogas e precisava do dinheiro para sustentar seu vício. Esta confissão foi feita informalmente, no momento da abordagem, sem registro oficial em áudio ou vídeo e sem a presença de seu advogado.

Na delegacia, João optou por permanecer em silêncio.

Posteriormente, em juízo, ele negou a prática do crime.

Durante o processo, a proprietária do salão reconheceu João como o autor do furto, e ficou comprovado que a porta do estabelecimento estava danificada.

João foi condenado por furto qualificado tentado com base no reconhecimento feito pela vítima e nas evidências materiais encontradas no local. A sentença não mencionou explicitamente a confissão informal como fundamento para a condenação.

Na dosimetria da pena, o juiz não aplicou a confissão espontânea como atenuante.

O réu, assistido pela Defensoria Pública, recorreu ao Tribunal de Justiça pedindo o reconhecimento da atenuante, argumentando que, apesar de informal, a confissão aos policiais deveria ser considerada para atenuar a pena.

O TJ negou o pedido, afirmando que não, nos termos do enunciado da Súmula 545 do STJ, não se reconhece a atenuante da confissão, eis que a confissão informal não foi utilizada para fundamentar o decreto condenatório.

 

Súmula 545-STJ: Quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no artigo 65, III, d, do Código Penal.

Aprovada em 14/10/2015, DJe 19/10/2015.

 

Insatisfeita, a defesa interpôs recurso especial ao STJ insistindo na tese de que a confissão informal pode ser considerada para fins de aplicação da atenuante da confissão espontânea prevista no art. 65, III, “d”, do Código Penal:

Art. 65. São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

III — ter o agente:

d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime;

 

O que STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

A jurisprudência do STJ distingue entre:

1) confissão judicial, realizada em juízo;

2) confissão extrajudicial, registrada formalmente em sede policial;

3) confissão informal, sem formalização nos autos, geralmente feita verbalmente a agentes públicos.

 

Recentemente, a 3ª Seção do STJ, em precedente qualificado, consolidou o entendimento de que a confissão informal não pode ser equiparada às demais para fins de admissibilidade, justamente pela ausência de controle de confiabilidade e de contraditório formal. O precedente em questão destacou que a confissão informal, diferentemente das espécies judicial e extrajudicial, carece de garantias mínimas de autenticidade e, portanto, não deve ser admitida no processo penal:

A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu).

STJ. 3ª Seção. AREsp 2.123.334-MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 20/6/2024 (Info 819).

 

Por coerência lógica, se imprestável na esfera probatória, naturalmente a confissão informal não poderia surtir o efeito atenuante, seja parcial, qualificada ou integral, ainda que inutilmente mencionada na sentença condenatória, cuja higidez essencial aqui não se discute.

No caso concreto, a confissão do réu, realizada no momento da abordagem policial, foi informal e desprovida de qualquer registro formal ou contraditório. A ausência de elementos que garantam a autenticidade e a voluntariedade da declaração impede seu reconhecimento como fundamento para a aplicação da atenuante.

Ademais, o reconhecimento efetuado pela vítima e as evidências materiais (danos à porta do imóvel e a localização dos objetos subtraídos) foram os elementos que fundamentaram a condenação. A confissão informal não exerceu qualquer influência substancial na sentença, conforme reconhecido expressamente no acórdão recorrido.

 

Em suma:

A confissão informal não pode ser considerada para fins de aplicação da atenuante da confissão espontânea. 

STJ. 5ª Turma. AREsp 2.313.703-SP, Rel. Min. Daniela Teixeira, Rel. para acórdão Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 4/2/2025 (Info 845).

 

Atenção

A confissão informal não deve ser usada como argumento para condenar o réu. No entanto, o juiz, indevidamente, usar a confissão informal para condenar o réu, ele também deverá aplicar a atenuante:

A confissão informal utilizada para fundamentar a condenação justifica a aplicação da atenuante da confissão espontânea.

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp n. 2.739.660/RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 11/3/2025.

 

Em regra, a atenuante da confissão espontânea, a teor do disposto no art. 65, inciso III, alínea "d", do Código Penal, só pode ser reconhecida se a declaração do réu tiver sido prestada perante a autoridade (confissão formal). Assim, constando no pronunciamento judicial apenas a transcrição de depoimentos das testemunhas na qual há a confissão informal, sem qualquer referência a tal fato para fundamentar a condenação, impede-se a redução da sanção na segunda fase da dosimetria. Excepcionalmente, tendo o órgão judiciário feito expressa referência à confissão informal como justificativa para a condenação, proferida antes do julgamento do AREsp n. 2.123.334/MG, impõe-se o reconhecimento da referida atenuante.

STJ. 6ª Turma. REsp n. 2.185.729/MG, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do TJSP), julgado em 11/3/2025.


terça-feira, 27 de maio de 2025

A conversão da ação de improbidade administrativa em ação civil pública (art. 17, § 16 da LIA) deve ocorrer antes da sentença, no juízo de primeiro grau

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 2016, o Ministério Público Federal ingressou com ação civil pública contra João, servidor público, alegando que ele teria violado princípios da Administração Pública ao supostamente favorecer uma empresa em um processo licitatório.

Vale ressaltar que o MP não alegou que houve dano ao erário nem enriquecimento ilícito, apenas violação de princípios administrativos. A imputação foi de que João teria praticado o ato de improbidade administrativa previsto no art. 11, caput e inciso I da Lei nº 8.429/92, em sua redação original:

Lei de Improbidade Administrativa

Antes da Lei 14.230/2021

Depois da Lei 14.230/2021

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

I - (revogado);

 

Em março de 2020 (antes, portanto, da Lei nº 14.230/2021), o juiz julgou improcedentes os pedidos formulados pelo MP.

O Ministério Público interpôs apelação para o Tribunal Regional Federal.

Em março de 2022 (depois, portanto, da Lei nº 14.230/2021), o TRF julgou a apelação e manteve a sentença de improcedência. O Tribunal aplicou as alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 e afirmou que as condutas atribuídas a João não mais configuravam atos de improbidade à luz do novo regime normativo.

 

Embargos de declaração

Inconformado, o MPF opôs embargos de declaração pedindo:

1) que o TRF determine a suspensão (sobrestamento) do processo considerando que o STF está analisando a constitucionalidade das mudanças operadas pela Lei nº 14.230/2021 (ADIs 7.236 e 7.237) e que a decisão do STF poderia mudar o resultado do caso de João.

2) alternativamente, o MP afirmou o seguinte: já que não há mais improbidade, a presente ação deve ser convertida em uma ação civil pública comum com base no art. 17, § 16 da Lei nº 8.429/92, incluído pela Lei nº 14.230/2021, para que João seja responsabilizado pela irregularidade administrativa de outra forma (mesmo que não seja mais improbidade):

Art. 17 (...)

§ 16. A qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

 

O MP argumentou que essa conversão poderia ocorrer agora porque o § 16 fala em “a qualquer momento”.

 

Rejeição dos embargos e interposição de recurso especial

O TRF rejeitou os embargos de declaração.

Ainda inconformado, o MPF interpôs recurso especial ao STJ insistindo nos dois pedidos acima (sobrestamento ou, subsidiariamente, conversão em ação civil pública).

 

O STJ deu provimento ao recurso do MPF?

NÃO.

 

Não é caso de sobrestamento do processo

O art. 313, inciso V, alínea “a”, do Código de Processo Civil prevê a possibilidade de suspensão do processo quando houver dependência do julgamento de outra causa. Entretanto, esta dependência deve ser efetiva e concreta, o que não se verifica no presente caso:

Art. 313. Suspende-se o processo:

(...)

V - quando a sentença de mérito:

a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente;

(...)

 

A mera existência de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 7.236 e 7.237) questionando dispositivos da Lei nº 14.230/2021 não torna, por si só, obrigatória a suspensão da ação de improbidade administrativa. Isso porque as leis são dotadas de presunção de constitucionalidade, característica que somente é afastada mediante decisão do STF.

Destaque-se que, se fosse o caso de suspender os processos que aplicam a norma questionada, caberia ao próprio STF, no exercício de sua competência constitucional, determinar o sobrestamento das demandas correlatas ou suspender cautelarmente a eficácia da norma impugnada. Contudo, até o presente momento, não houve qualquer decisão nesse sentido por parte da Corte.

A suspensão automática de todos os processos que envolvem normas questionadas em ADI, sem determinação específica do STF, acarretaria insegurança jurídica e paralisação da prestação jurisdicional.

Portanto, na ausência de decisão do STF suspendendo a eficácia da norma questionada ou determinando expressamente o sobrestamento dos feitos correlatos, deve prevalecer a presunção de constitucionalidade da Lei nº 14.230/2021, sendo desnecessário o sobrestamento do presente processo.

 

A conversão de ação de improbidade em ação civil pública só pode ocorrer no primeiro grau de jurisdição

O § 16 do art. 17 da Lei de Improbidade estabelece que “qualquer momento, se o magistrado identificar a existência de ilegalidades ou de irregularidades administrativas a serem sanadas sem que estejam presentes todos os requisitos para a imposição das sanções aos agentes incluídos no polo passivo da demanda, poderá, em decisão motivada, converter a ação de improbidade administrativa em ação civil pública”.

Embora o texto normativo utilize a expressão “a qualquer momento”, a interpretação teleológica e sistemática do dispositivo indica que tal conversão deve ocorrer no primeiro grau de jurisdição e antes da prolação da sentença. Por quê?

1) o dispositivo refere-se expressamente ao termo “magistrado”, sinalizando que a competência para tal decisão pertence ao juízo de primeiro grau. Esta interpretação é corroborada pelo §17 do mesmo artigo, que prevê o agravo de instrumento como recurso cabível contra a decisão que converter a ação:

Art. 17 (...)

§ 17. Da decisão que converter a ação de improbidade em ação civil pública caberá agravo de instrumento. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

 

O agravo de instrumento é recurso típico da fase de conhecimento do primeiro grau, não se aplicando às decisões proferidas em sede recursal.

 

2) A conversão da ação de improbidade em ação civil pública implica substancial modificação da causa de pedir e dos pedidos formulados, exigindo, em regra, aditamento da petição inicial e, possivelmente, nova instrução probatória. Tais providências são incompatíveis com a fase recursal ou com instâncias superiores, em razão dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da estabilidade da lide e da segurança jurídica.

 

Em suma:

A conversão de ação de improbidade administrativa em ação civil pública, prevista no art. 17, § 16, da Lei n. 8.429/1992 (com a redação atual), deve ocorrer no primeiro grau de jurisdição, antes da sentença, conforme interpretação teleológica e sistemática do dispositivo, com competência atribuída ao magistrado de primeira instância e decisão de conversão sujeita ao recurso de agravo de instrumento, conforme previsto no § 17 do mesmo artigo. 

STJ. 1ª Turma. REsp 2.139.458-SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 18/2/2025 (Info 845).


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Revisão para o concurso de Defensor Público do Estado de Pernambuco

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Defensor Público do Estado de Pernambuco.

Bons estudos.



Crimes de violação de domicílio e lesão corporal em contexto de violência doméstica devem ser tratados como autônomos, sem aplicação do princípio da consunção

Imagine a seguinte situação hipotética:

Lucas e Andreza mantiveram um relacionamento amoroso por aproximadamente dois anos.

O relacionamento era marcado por ciúmes excessivos por parte de Lucas.

Após diversos episódios de discussões intensas, Andreza decidiu terminar o relacionamento e pediu que Lucas não frequentasse mais sua residência, devolvendo a chave que ele possuía.

Em uma tarde de agosto de 2021, Lucas consumiu bebidas alcoólicas em um bar próximo à residência de Andreza. Durante esse período, recebeu informações de um conhecido de que havia visto um homem entrando na casa de sua ex-namorada. Tomado por ciúmes e sob efeito de álcool, Lucas dirigiu-se à residência de Andreza por volta das 16h50.

Ao chegar, Lucas bateu na porta violentamente, exigindo que Andreza abrisse. Como ela se recusou a atender, alegando que não queria contato, Lucas começou a chutar a porta com força até conseguir arrombá-la, invadindo a residência contra a vontade expressa da vítima.

Uma vez dentro da casa, Lucas iniciou uma discussão acusando Andreza de estar com outro homem, embora ela estivesse sozinha. A discussão escalou rapidamente e, em um acesso de raiva, Lucas agarrou Andreza pelo pescoço e a agrediu fisicamente, causando-lhe hematomas no pescoço, no antebraço direito e trauma no punho, conforme posteriormente documentado em exame pericial.

Os gritos de Andreza alertaram os vizinhos, que intervieram para socorrê-la.

Lucas fugiu do local quando percebeu a chegada de outras pessoas.

Andreza então registrou boletim de ocorrência e solicitou medidas protetivas de urgência.

 

Ação penal

Lucas foi denunciado e posteriormente condenado pelos crimes de:

• Violação de domicílio qualificada (art. 150, §1º do Código Penal):

Violação de domicílio

Art. 150 - Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

Pena - detenção, de um a três meses, ou multa.

§ 1º - Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.

(...)

 

• Lesão corporal em contexto de violência doméstica (art. 129, §9º do Código Penal):

Art. 129. (...)

Violência Doméstica

§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

 

Em sua defesa, Lucas alegou que deveria ser condenado apenas pelo crime de lesão corporal, argumentando que a invasão de domicílio teria sido apenas um meio para cometer a agressão (princípio da consunção).

 

Os argumentos da defesa foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

O STJ decidiu que Lucas deveria ser condenado pelos dois crimes em concurso material, rejeitando a aplicação do princípio da consunção.

Inicialmente, é importante registrar que a jurisprudência do STJ admite a aplicação do princípio da consunção mesmo quando o crime absorvido for, em tese, mais grave, desde que ele seja utilizado como mero instrumento para a realização de um objetivo final único. Nesse sentido: STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 100.322/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 25/2/2014, DJe de 7/3/2014.

Essa linha interpretativa também se reflete no enunciado da Súmula n. 17/STJ, segundo o qual é admissível a absorção do crime-meio pelo crime-fim quando aquele estiver integralmente exaurido neste último e não apresentar mais potencialidade lesiva.

Todavia, essa diretriz não se aplica nas hipóteses em que os crimes em questão tutelam bens jurídicos diversos, como ocorre nas situações em que o crime de invasão de domicílio — cuja finalidade é proteger a privacidade, o sossego e a tranquilidade do indivíduo — é cometido de maneira autônoma, antes ou depois da prática de lesão corporal (ou outro delito correlato), especialmente no contexto de violência doméstica e familiar de cunho misógino. Nesse caso, prevalece a topografia normativa específica prevista nos arts. 5º e 7º, ambos da Lei n. 11.340/2006, sem qualquer correspondência com a hipótese de progressão criminosa.

Com efeito, o mandado de criminalização delineado pelo legislador no art. 150, § 1º, do Código Penal, é claro ao estabelecer:

Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências:

[...]

§ 1º – Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência.

 

No caso concreto, o réu, valendo-se da relação doméstica e afetiva e atuando sob motivação de gênero e violência, invadiu a residência de sua ex-namorada sem o consentimento desta, ao arrombar a porta com chutes. No mesmo episódio, movido por ciúmes e sob efeito de álcool, agrediu fisicamente a vítima, segurando-a pelo pescoço e causando lesões corporais, posteriormente comprovadas por laudo pericial.

Dessa forma, observa-se que o ingresso forçado na residência foi motivado pela inconformidade do agente com a presença de um suposto terceiro no local, configurando evidente violação da liberdade da vítima, em especial à sua inviolabilidade domiciliar — bem jurídico autônomo e desvinculado da lesão corporal subsequente.

Portanto, como o crime de violação de domicílio não constituiu meio necessário à preparação ou à execução do crime de lesão corporal, não se aplica o princípio da consunção.

 

Nesse mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que:

É inviável o reconhecimento da consunção entre o delito de violação de domicílio e o de lesão corporal no âmbito doméstico quando um não constitui meio para a execução do outro, mas evidentes infrações penais autônomas, que tutelam bens jurídicos distintos.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 1.902.294/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 2/3/2021, DJe de 8/3/2021.

 

Concluir em sentido contrário, como pleiteia a defesa, implicaria oferecer uma proteção estatal insuficiente aos bens jurídicos tutelados pelos arts. 129, § 9º, e 150, § 1º, do Código Penal, em consonância com os comandos cogentes dos arts. 5º e 7º da Lei n. 11.340/2006. Tal interpretação seria incompatível com o modelo de garantismo penal integral (não hiperbólico e monocular), o qual é sustentado pela evolução da dogmática penal à luz da vitimologia, em sua vertente primária e secundária.

Essa diretriz é, inclusive, acolhida na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça relativos às Vítimas da Criminalidade, aprovada pela Resolução nº 40/34 da ONU, de 29 de novembro de 1985.

 

Em suma:

Por tutelarem objetividades jurídicas distintas, não se aplica o princípio da consunção na hipótese em que o crime de invasão de domicílio é seguido, ou até mesmo precedido, do crime de lesões corporais, no deletério contexto permeado pela violência de gênero doméstica ou familiar e sem qualquer correspondência à situação de progressão criminosa. 

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 2.711.392-SC, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo (Desembargador convocado do TJSP), julgado em 12/3/2025 (Info 846).


domingo, 25 de maio de 2025

INFORMATIVO Comentado 1171 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1171 DO STF


Direito Constitucional

DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

§  Isenção de pedágio para pessoas com deficiência é constitucional, mas o Legislativo não pode impor prazo ao Executivo para regulamentar a norma.

 

PROCESSO LEGISLATIVO

§  É inconstitucional a emenda parlamentar que insere reajuste remuneratório a servidores da Assembleia Legislativa em projeto de lei de iniciativa privativa do Tribunal de Contas.

 

SEGURANÇA PÚBLICA

§  Investigação criminal não é atividade exclusiva ou privativa do delegado de polícia.

 

DIREITO AMBIENTAL

RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO AMBIENTAL

§  É imprescritível a pretensão executória e inaplicável a prescrição intercorrente na execução de reparação de dano ambiental, ainda que posteriormente convertida em indenização por perdas e danos.

 

OUTROS TEMAS

§  Lei estadual não pode delegar genericamente a municípios o licenciamento ambiental em zona costeira ou autorizar supressão de vegetação nativa da Mata Atlântica em desacordo com normas federais.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS

§  Os honorários advocatícios possuem preferência em relação aos créditos tributários, por força do § 14 do art. 85 do CPC, que foi declarado constitucional pelo STF.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

TAXAS

§  É constitucional lei estadual que institui a cobrança de taxas pela utilização, efetiva ou potencial, dos serviços de prevenção e combate a incêndios, busca, salvamento ou resgate, prestados ou postos à disposição pelo Corpo de Bombeiros Militar.

§  É inconstitucional lei estadual que dispõe sobre a cobrança de taxa de vistoria veicular para verificação de equipamentos de proteção contra incêndio.

§  É inconstitucional a cobrança de taxa para emissão de certidões, desde que estas se voltem para a defesa de direitos ou o esclarecimento de situação de interesse pessoal.


Para a configuração do crime de prevaricação exige-se o dolo específico de satisfazer interesse ou sentimento pessoal de forma objetiva e concreta, não sendo suficiente a mera negligência, comodismo ou descompromisso

Imagine a seguinte situação hipotética:

João era Delegado titular da delegacia de investigações sobre entorpecentes.

Em uma correição realizada na Delegacia foram encontradas graves irregularidades administrativas.

Restou apurado que João:

• deixou sem andamento centenas de boletins de ocorrência, alguns com despachos para instauração de inquérito, mas sem nenhuma providência;

• não providenciou a incineração de aproximadamente 5 toneladas de droga armazenada irregularmente na delegacia por anos;

• não destinou adequadamente dezenas de armas, munições e objetos relacionados;

• frequentava a academia durante o horário de expediente, utilizando inclusive veículo oficial descaracterizado.

 

O Ministério Público entendeu que as condutas acima narradas configuraram o crime de prevaricação, tendo oferecido denúncia contra João pelo delito tipificado no art. 319 do Código Penal:

Prevaricação

Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

 

O réu foi condenado em primeira instância e a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

O TJ entendeu que as condutas foram motivadas por “comodismo” e “descompromisso” e que o Delegado deixou de praticar atos de ofício “para satisfazer interesse pessoal, que era o de simplesmente não ter que trabalhar, honrar seus vencimentos e o cargo em que foi investido”.

Inconformado, João interpôs recurso especial alegando que não havia “dolo específico” de “satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, elemento necessário para configurar o crime de prevaricação.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa? O réu foi absolvido?

SIM.

O crime de prevaricação, previsto no art. 319 do Código Penal, exige para sua configuração o dolo específico de “satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, não sendo suficiente a mera negligência, comodismo ou descompromisso.

É imprescindível que o agente se abstenha de praticar ato de ofício “para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” de maneira objetiva e concreta.

No caso analisado, o Tribunal de Justiça condenou o réu, Delegado de Polícia, por não adotar providências necessárias para a apuração de crimes, não incinerar entorpecentes e não destinar adequadamente armas e munições, além de omissões em boletins de ocorrência.

Dessa forma, nota-se que a narrativa aponta para uma conduta pautada no comodismo e descompromisso, situações que, embora caracterizem desídia, não evidenciam a satisfação de um interesse pessoal específico ou um objetivo concreto de vantagem pessoal ou favorecimento indevido.

Ainda que o uso do veículo oficial para fins particulares e a frequência à academia durante o horário de expediente possam indicar uma conduta administrativa inadequada, tais fatos, isoladamente considerados, não são suficientes para caracterizar o dolo específico exigido pela jurisprudência consolidada, qual seja, o de “satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.

Nesse sentido:

Para a configuração do crime de prevaricação, é necessário que o agente retarde ou deixe de praticar, indevidamente, ou pratique contra disposição expressa de lei, ato de ofício com a finalidade de satisfazer interesse ou sentimento pessoal. Doutrina. Precedente.

No caso dos autos, o órgão ministerial cingiu-se a afirmar que o paciente, Delegado da Polícia Federal, teria deixado de lavrar auto de prisão em flagrante e de apreender a moeda estrangeira localizada com investigado pelo crime de contrabando e descaminho por desídia, deixando de indicar qual interesse ou sentimento pessoal buscava satisfazer, narrativa que se afigura insuficiente para a configuração do tipo penal em exame.

Ordem concedida de ofício para determinar o trancamento da ação penal em apreço.

STJ. 5ª Turma. HC 390.950/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 16/5/2017.

 

Assim, o STJ afirmou que as condutas praticadas são atípicas.

 

Em suma:

Para a configuração do crime de prevaricação exige-se o dolo específico de satisfazer interesse ou sentimento pessoal de forma objetiva e concreta, não sendo suficiente a mera negligência, comodismo ou descompromisso. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.693.820-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 18/3/2025 (Info 846).


sábado, 24 de maio de 2025

Não é possível ao hospital denunciar a lide aos médicos responsáveis pelos atendimentos a paciente, aos quais é imputada a prática de erro médico

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina passou mal com dores no peito e foi atendida no Hospital Esperança.

Na primeira vez, João, o médico plantonista, receitou apenas analgésico e a mandou de volta para casa, sem realizar os exames adequados.

No dia seguinte ela voltou ao hospital, foi novamente medicada por outro médico plantonista (Pedro), que também não fez qualquer exame e, depois de algum tempo, deu alta.

Isso se repetiu por mais outros dois dias.

No quinto dia, Regina sentiu-se mal novamente e procurou desta vez outra unidade de saúde. Ali foi diagnosticada com um quadro grave de tromboembolismo pulmonar, sendo imediatamente internada.

Diante desse contexto, ela ajuizou ação contra o Hospital Esperança alegando negligência na conduta dos médicos plantonistas e má prestação dos serviços hospitalares.

Citado, o Hospital argumentou que os fatos decorreriam de atos individuais dos quatro médicos que prestaram os atendimentos, razão pela qual requereu a denunciação da lide a esses profissionais.

 

Cabe denunciação da lide neste caso? É possível a denunciação da lide, requerida pelo hospital, aos médicos responsáveis pelos atendimentos a paciente, aos quais é imputada a prática de erro médico?

NÃO.

 

Denunciação da lide

A denunciação da lide é uma modalidade de intervenção de terceiros, na qual o denunciante (autor ou réu da ação principal) promove, no mesmo processo em que litiga com o seu adversário, uma ação de regresso antecipada, caso sofra uma condenação. Todavia, não será cabível em toda e qualquer demanda, existindo exceções na própria lei, como, por exemplo, a que veda essa hipótese de intervenção nas relações de consumo (art. 88 do CDC).

 

O caso concreto é uma relação de consumo e existe vedação expressa no CDC

A relação entre a paciente e o hospital configura claramente uma relação de consumo, atraindo a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), inclusive de seu art. 88, que veda expressamente a denunciação da lide:

Art. 88. Na hipótese do art. 13, parágrafo único deste código, a ação de regresso poderá ser ajuizada em processo autônomo, facultada a possibilidade de prosseguir-se nos mesmos autos, vedada a denunciação da lide.

 

Embora o art. 88 do CDC mencione especificamente a vedação à denunciação da lide nas hipóteses do art. 13 (responsabilidade do comerciante por fato do produto), a jurisprudência pacífica do STJ estende essa vedação a todas as hipóteses de responsabilidade por acidentes de consumo (arts. 12 e 14 do CDC), incluindo casos de erro médico. Nesse sentido:

A jurisprudência desta Corte é firme em asseverar o não cabimento do instituto da denunciação da lide (art. 88 do CDC), que não se restringe às hipóteses de fato do produto ou serviço, aplicando-se, inclusive, aos casos de acidentes de consumo (arts. 12 e 14 do CDC).

STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp n. 2.134.523/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 3/4/2023.

 

Teoria do Risco da Atividade

Deve-se aplicar aqui a teoria do risco da atividade, segundo a qual o hospital, como fornecedor de serviços, assume os riscos da atividade econômica que desempenha. Por essa razão, o hospital deve responder objetivamente pelos danos causados no contexto da prestação de seus serviços, independentemente da apuração de culpa individual dos profissionais envolvidos.

 

Proteção à celeridade processual

Permitir a denunciação da lide atrasaria consideravelmente o processo, prejudicando a paciente (consumidora) que já espera por uma solução judicial há anos.

 

Complexidade processual e ônus da prova

A denunciação da lide traria complexidade desnecessária ao processo, considerando que:

• A consumidora teria que litigar contra o hospital e mais quatro médicos simultaneamente;

• O regime de distribuição do ônus da prova seria dificultado, com apuração de responsabilidade objetiva (hospital) e subjetiva (médicos) no mesmo processo;

• Haveria potencial multiplicação de provas e atos processuais.

 

Possibilidade de ação regressiva autônoma

O hospital não ficará desamparado, pois tem sempre a possibilidade de ajuizar ação de regresso em face dos profissionais de saúde que agiram com culpa, conforme previsto no art. 88 do CDC e no art. 125, § 1º do CPC, sem prejudicar o andamento da ação principal movida pela consumidora:

Art. 125 (...)

§ 1º O direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida.

 

Jurisprudência consolidada do STJ

Existem diversos julgados do STJ nos quais já se assentou a impossibilidade de denunciação da lide em casos semelhantes:

O Código de Defesa do Consumidor aplica-se aos serviços médicos, inclusive quanto à vedação da denunciação da lide, prevista no art. 88.

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.630.070/SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 7/6/2021.

 

A responsabilidade do hospital por danos decorrentes dos serviços neles prestados é objetiva, nos termos do art. 14 do CDC e independe da demonstração de culpa dos profissionais médicos envolvidos no atendimento.

STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 958.733/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 24/4/2018.

 

Em suma:

Não é possível ao hospital denunciar a lide aos médicos responsáveis pelos atendimentos a paciente, aos quais é imputada a prática de erro médico. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.160.516-CE, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. para acórdão Min. Humberto Martins, julgado em 1º/4/2025 (Info 846).

 

Treine o assunto estudado:

Ano: 2024 Banca: Fundação Getúlio Vargas - FGV

Prova: FGV - SES - Advogado - 2024

Capitolina de Assis entrou em trabalho de parto e procurou o Hospital Particular XYZ na parte da manhã do dia 06 de março, mas o parto só foi realizado na noite do dia 07 de março. Devido à falta de acompanhamento diligente dos médicos Bento Casmurro (ginecologista e obstetra) e Machado Bento (pediatra), o nascimento de seu filho, Ezequiel, foi permeado fetal, no qual foram verificadas a falta de oxigenação, a asfixia perinatal e a aspiração de mecônio. As intercorrências produziram danos irreparáveis em Capitolina e Ezequiel.

Sobre a hipótese apresentada, sabendo que Capitolina pagou todo o procedimento e que não utilizou o sistema público de saúde ou qualquer plano de saúde, com base no ordenamento jurídico brasileiro, assinale a afirmativa correta.

D) Os médicos, caso eles sejam empregados, estarão isentos de responsabilidade, devido ao encargo exclusivo do Hospital. (Incorreto)


sexta-feira, 23 de maio de 2025

A remessa necessária tem devolutividade ampla, permitindo a análise de questões não suscitadas na apelação

Noções gerais sobre o reexame necessário

O chamado “reexame necessário” ou “duplo grau de jurisdição obrigatório” é um instituto previsto no art. 496 do CPC/2015 e em algumas leis esparsas:

Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

I - proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.

§ 1º Nos casos previstos neste artigo, não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á.

§ 2º Em qualquer dos casos referidos no § 1º, o tribunal julgará a remessa necessária.

 

Deixa eu explicar melhor:

- Se a sentença proferida pelo juiz de 1ª instância:

a) for contra a Fazenda Pública; ou

b) julgar procedentes os embargos do devedor na execução fiscal (o que também é uma sentença contra a Fazenda Pública);

 

- Essa sentença deverá ser, obrigatoriamente, reexaminada pelo Tribunal de 2º grau (Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal);

- Mesmo que a Fazenda Pública não recorra;

- E, enquanto não for realizado o reexame necessário, não haverá trânsito em julgado.

 

Obs: o reexame necessário não possui natureza jurídica de recurso. Desse modo, é tecnicamente incorreto denominar este instituto de “recurso ex officio”, “recurso de ofício” ou “recurso obrigatório”.

 

Exceções ao reexame necessário

O CPC prevê, em dois parágrafos, situações em que, mesmo a sentença se enquadrando nos incisos do art. 496, não haverá a obrigatoriedade do reexame necessário:

Art. 496 (...)

§ 3º Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:

I - 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados;

III - 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.

 

§ 4º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:

I - súmula de tribunal superior;

II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

 

Feita essa revisão, imagine agora a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação de indenização contra o Estado-membro.

O juiz julgou os pedidos parcialmente procedentes condenando o réu a pagar:

• R$ 800 mil de danos materiais;

• R$ 100 mil de danos morais.

 

Caberia remessa necessária neste caso?

SIM. Isso porque, considerando o valor do salário-mínimo da época, essa condenação era superior a 500 salários-mínimos.

 

Apelação interposta pelo Estado

A Fazenda Pública interpôs apelação questionando unicamente o valor dos danos morais fixados.

O Estado não impugnou os demais pontos da condenação, como o valor dos danos materiais.

Ao julgar a apelação, o Tribunal de Justiça, além de analisar o ponto expressamente impugnado pelo Estado (danos morais), também revisou, em sede de remessa necessária (reexame necessário), o valor dos danos materiais, reduzindo-os para R$ 600 mil sob o argumento de que R$ 200 mil não foram comprovados.

 

Recurso especial

João, inconformado com esta revisão de pontos não impugnados especificamente na apelação do Estado, recorreu ao STJ, alegando que teria ocorrido preclusão consumativa quanto às matérias não impugnadas no recurso voluntário e que, por isso, não poderiam ter sido revisadas pelo Tribunal.

Ele argumentou que, conforme o art. 496, § 1º do CPC/2015, não caberia reexame necessário quando já houvesse recurso voluntário do ente público:

Art. 496 (...)

§ 1º Nos casos previstos neste artigo, não interposta a apelação no prazo legal, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, e, se não o fizer, o presidente do respectivo tribunal avocá-los-á.

 

O STJ concordou com os argumentos de João? O Tribunal de Justiça errou ao examinar também a condenação pelos danos materiais mesmo não tendo havido recurso voluntário sobre isso?

NÃO.

Considerando a finalidade da remessa necessária, é plenamente possível sua análise mesmo quando houver a interposição de recurso voluntário.

Ainda que tenha sido editada antes do Código de Processo Civil de 2015, essa compreensão já era orientada pelo conteúdo da Súmula 325 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe: “a remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado”.

Portanto, mesmo na ausência de impugnação específica sobre determinada matéria no recurso voluntário, toda a decisão deve ser revista no âmbito do reexame necessário. Isso porque se trata de um instituto voltado à proteção do interesse público.

O § 1º do art. 496, § 1º, do CPC apenas regulamenta a forma de atuação da remessa necessária nos casos em que não há interposição de recurso voluntário, não podendo ser interpretado de forma restritiva. As hipóteses de incidência da remessa necessária estão previstas, de maneira exaustiva, nos §§ 3º e 4º do referido artigo.

Tal entendimento está em consonância com a jurisprudência do STJ, que reconhece a ampla devolutividade da remessa necessária.

Dessa forma, as condenações impostas à Fazenda Pública podem ser objeto de análise pelo Tribunal, independentemente da interposição de apelação, não havendo que se falar em preclusão de matérias que não tenham sido expressamente suscitadas no recurso.

Nesse sentido:

A remessa oficial devolve ao Tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, (Súmula 325 do STJ), não se limitando ao princípio do tantum devolutum quantum appellatum.

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 2.068.436/AL, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 11/3/2024.

 

Não há que falar em preclusão quando o Tribunal de origem, em sede de reexame necessário, aprecia o mérito da demanda, mesmo sem ter havido pronunciamento do Juiz de primeiro grau ou sequer menção da matéria pelo recorrente no recurso de apelação.

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 285.333/GO, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 25/6/2019.

 

Em suma:

As condenações da Fazenda Pública poderão ser objeto de análise pelo Tribunal de origem ainda que não sejam suscitadas no recurso de apelação, pois a remessa necessária possui ampla devolutividade, o que impede a preclusão da matéria. 

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1.935.370-TO, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 24/2/2025 (Info 846).


quinta-feira, 22 de maio de 2025

A redução ou supressão de benefício fiscal deverá respeitar o princípio da anterioridade tributária?

Princípio da anterioridade tributária

Existem, atualmente, dois princípios (ou subprincípios) da anterioridade tributária:

 

1) Princípio da anterioridade anual ou de exercício ou comum (anterioridade tributária geral)

De acordo com esse princípio (rectius: uma regra), o Fisco não pode cobrar tributos no mesmo exercício financeiro (ano) em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (art. 150, III, “b”, da CF/88):

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

III - cobrar tributos:

(...)

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;

(...)

 

2) Princípio da anterioridade privilegiada, qualificada ou nonagesimal

Segundo o princípio da anterioridade nonagesimal, o Fisco não pode cobrar tributos antes de decorridos 90 dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.

Trata-se de regra prevista no art. 150, III, “c” (para os tributos em geral) e também no art. 195, § 6º (no que se refere às contribuições sociais):

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

III - cobrar tributos:

(...)

c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

 

Esses dois princípios foram previstos para serem aplicados cumulativamente, ou seja, se um tributo é instituído ou aumentado em um determinado ano, ele somente poderá ser cobrado no ano seguinte. Além disso, entre a data em que foi publicada a lei e o início da cobrança, deverá ter transcorrido um prazo mínimo de 90 dias. Tudo isso para que o contribuinte possa programar suas finanças pessoais e não seja “pego de surpresa” por um novo tributo ou seu aumento.

Ex: a Lei “X”, publicada em 10 de dezembro de 2014, aumentou o tributo “Y”. Esse aumento deverá respeitar a anterioridade anual (somente poderá ser cobrado em 2015) e também deverá obedecer a anterioridade nonagesimal (é necessário que exista um tempo mínimo de 90 dias). Logo, esse aumento somente poderá ser cobrado a partir de 11 de março de 2015.

 

Exceções ao Princípio da Anterioridade Anual

Os seguintes tributos estão excetuados da observância da anterioridade anual (art. 150, §1º da CF e outras disposições):

• Contribuições para a seguridade social (art. 195, §6º da CF);

• Imposto sobre Importação (II);

• Imposto sobre Exportação (IE);

• Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI);

• Imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (IOF);

• Imposto Extraordinário de Guerra (IEG);

• Empréstimo Compulsório para Calamidade Pública ou Guerra Externa (EC-Cala/Gue);

• CIDE-Combustível;

• ICMS-Combustível.

 

Exceções ao Princípio da Anterioridade Nonagesimal

Os seguintes tributos estão excetuados da observância da anterioridade nonagesimal (art. 150, §1º da CF):

• Imposto sobre Importação (II);

• Imposto sobre Exportação (IE);

• Imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (IOF);

• Imposto Extraordinário de Guerra (IEG);

• Empréstimo Compulsório para Calamidade Pública ou Guerra Externa (EC-Cala/Gue);

• Imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza;

• Fixação da base de cálculo do IPTU;

• Fixação da base de cálculo do IPVA;

• Resolução do Senado Federal que fixar ou aumentar as alíquotas de referência do IBS e da CBS (conforme EC 132/2023).

 

Observações:

1) O imposto seletivo obedece a anterioridade nonagesimal e anual;

2) Ajustes extraordinários para compensar alterações legislativas (LC 214/2025, art. 19, §1º, III):

Trata de um caso específico de ajuste extraordinário das alíquotas de referência para compensar alterações na legislação federal que afetem a arrecadação

Neste caso específico, o ajuste deve respeitar regras mais rígidas:

- Para o IBS: aplica-se a anterioridade anual E a anterioridade nonagesimal;

- Para a CBS: aplica-se apenas a anterioridade nonagesimal.

 

A redução ou revogação de benefício fiscal deverá respeitar as regras de anterioridade tributária?

Se o Fisco decide reduzir ou revogar um benefício fiscal que era concedido aos contribuintes, a consequência, na prática, é que o valor do tributo pago pelo contribuinte irá aumentar. Essa revogação precisa respeitar as regras da anterioridade tributária?

 

Para responder a essa pergunta, vamos imaginar a seguinte situação hipotética:

Alfa Tabacaria é uma empresa que atua no estado do Pará comercializando produtos derivados do tabaco.

Em 2001, o governo estadual, por meio do Decreto Estadual nº 4.725/2001, estabeleceu um regime tributário favorável para o setor de fumo e manufaturados, fixando a alíquota do ICMS para operações internas em 16%, abaixo da alíquota padrão de 25% aplicada anteriormente a este tipo de produto no estado.

No início de 2013, entretanto, o governo do Pará publicou o Decreto Estadual nº 668/2013, que revogou o benefício fiscal anteriormente concedido, retornando a alíquota do ICMS para fumo e manufaturados ao patamar padrão de 25%. O decreto determinava ainda que a nova alíquota entraria em vigor imediatamente após sua publicação.

A Tabacaria, sentindo-se prejudicada, ingressou com ação argumentando que a revogação do benefício fiscal representava, na prática, uma majoração indireta do tributo e, por isso, essa revogação deveria respeitar o princípio da anterioridade tributária previsto no art. 150, III, “b” e “c” da Constituição Federal.

O Tribunal de Justiça do Pará deu razão à empresa, anulando os autos de infração por entender que, embora formalmente fosse uma revogação de benefício, na prática tratava-se de um aumento de tributação, que deveria observar as garantias constitucionais de anterioridade.

O Estado do Pará recorreu ao STF, argumentando que o princípio da anterioridade só se aplicaria à criação ou majoração direta de tributos, e não à revogação de benefícios fiscais, que seria apenas uma retomada das partes ao status quo ante.

 

O STF concordou com a empresa contribuinte? A redução ou revogação de benefício fiscal deverá respeitar as regras de anterioridade tributária?

SIM.

A jurisprudência do STF está consolidada no sentido de que se aplica o princípio da anterioridade tributária, geral e nonagesimal, nas hipóteses de redução ou de supressão de benefícios ou de incentivos fiscais, haja vista que tais situações configuram majoração indireta de tributos, observadas as exceções expressas na Constituição. Nesse sentido:

Como regra, ambas as espécies de anterioridade, geral e nonagesimal, se aplicam à instituição ou à majoração de tributos. Contudo, há casos em que apenas uma das anterioridades será aplicável e há casos em que nenhuma delas se aplicará. Essas situações estão expressas no § 1º do art. 150 e em outras passagens da Constituição. Sobre o assunto, vide o art. 155, § 4º, IV, c; o art. 177, § 4º, I, b; e o art. 195, § 6º, da CF/88. Nas hipóteses de redução ou de supressão de benefícios ou de incentivos fiscais que acarretem majoração indireta de tributos, a observância das espécies de anterioridade deve também respeitar tais preceitos, sem se olvidar, ademais, da data da entrada em vigor da EC nº 42/03, que inseriu no texto constitucional a garantia da anterioridade nonagesimal.

STF. Plenário. RE 564225 AgR-EDv-AgR-ED, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Dias Toffoli, julgado em 13/10/2020.

 

O princípio da anterioridade busca assegurar a previsibilidade da relação fiscal. Isso para evitar que o sujeito passivo seja surpreendido com um aumento súbito de encargo, sem a possibilidade de qualquer planejamento financeiro. Trata-se de uma concretização da segurança jurídica.

 

Veja a tese fixada pelo STF:

O princípio da anterioridade tributária, geral e nonagesimal, se aplica às hipóteses de redução ou de supressão de benefícios ou de incentivos fiscais que resultem em majoração indireta de tributos, observadas as determinações e as exceções constitucionais para cada tributo.

STF. Plenário. RE 1.473.645/PA, Rel. Min. Luiz Roberto Barroso, julgado em 24/03/2025 (Repercussão Geral – Tema 1.383) (Info 1170).


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