Dizer o Direito

domingo, 23 de novembro de 2025

Compete ao juizado da infância e juventude decidir sobre o pedido de suprimento judicial de autorização para viagem internacional, ainda que ausente situação de risco

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Regina foram casados e tiveram uma filha, Luísa, atualmente com 14 anos.

O divórcio foi muito conturbado. Ainda hoje, João e Regina não possuem uma boa convivência.

João planejou uma viagem internacional para comemorar os 15 anos de Luísa na Disney, em Orlando, nos Estados Unidos.

A adolescente iria acompanhada do pai e dos avós paternos.

Para realizar a viagem internacional, Luísa precisava da companhia ou da autorização de ambos os pais, nos termos do art. 84 do ECA:

Art. 84. Quando se tratar de viagem ao exterior, a autorização é dispensável, se a criança ou adolescente:

I - estiver acompanhado de ambos os pais ou responsável;

II - viajar na companhia de um dos pais, autorizado expressamente pelo outro através de documento com firma reconhecida.

 

João solicitou formalmente a autorização da mãe de Luísa, mas ela negou, sem apresentar qualquer justificativa.

Diante da negativa, Luísa, assistida por João, ingressou com ação de suprimento de consentimento materno no Juizado da Infância e da Juventude, argumentando que a recusa contrariava o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

O juiz do Juizado da Infância e da Juventude reconheceu sua competência para processar e julgar o pedido.

Regina recorreu sustentando que o caso deveria ser julgado pela Vara de Família, e não pelo Juizado da Infância e da Juventude. Segundo ela, não havia qualquer “situação de risco” envolvendo Luísa. A adolescente não estava abandonada, não sofria maus-tratos e tinha todos os seus direitos fundamentais assegurados pela mãe, com quem residia.

O Tribunal de Justiça manteve a competência do Juizado da Infância e da Juventude.

Regina interpôs então recurso especial sustentando que a competência do juizado da infância e juventude depende da comprovação de situação de risco envolvendo a criança ou adolescente, o que não estaria presente no caso concreto.

Ponderou que o juizado da infância e juventude é competente para conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou materna em relação ao exercício do poder familiar, mas apenas quando há ameaça ou violação de direitos, conforme o art. 98 do ECA.

 

O STJ acolheu o recurso Regina?

NÃO.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), em consonância com o art. 227 da Constituição Federal, consagrou a doutrina da proteção integral, superando a ultrapassada doutrina da situação irregular do revogado Código de Menores.

Isso significa que a atuação da Justiça especializada (Juizado da Infância e Juventude) não se restringe a situações de abandono, risco ou vulnerabilidade. A competência do Juizado da Infância e Juventude se faz presente sempre que for necessário resguardar, prevenir ou assegurar o exercício pleno dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, em atenção ao princípio do melhor interesse e ao art. 98 do ECA:

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

 

O art. 148, parágrafo único, alínea “d”, do ECA estabelece a competência do juizado da infância e juventude para conhecer de pedidos veiculados em ações civis fundada em interesses individuais afetos à criança, bem como pleitos baseados em discordância paterna ou materna no exercício do poder familiar, sempre que a divergência repercutir no exercício de direitos pela criança ou adolescente:

Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:

(...)

IV - Conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209 Parágrafo único. Quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do art. 98, é também competente a Justiça da Infância e da Juventude para o fim de:

(...)

d) conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou materna, em relação ao exercício do poder familiar.

 

As leis locais de organização judiciária podem afastar a competência estabelecida pelo ECA?

Não. A competência das varas especializadas em direito de família decorre da delimitação da organização judiciária local, que não possui força normativa para afastar a competência instituída pelo ECA, que é lei federal.

Os regimentos internos e as leis locais de organização do poder judiciário determinaram a especialização das varas de acordo com os critérios previamente estabelecidos, a exemplo do tamanho da comarca, acervo processual, disponibilidade de servidores e magistrados, bem como por meio da regionalização de determinadas matérias. 

De todo modo, existindo a distribuição da competência na comarca por meio da especialização de varas e havendo juizado da infância e juventude, será deste a competência para julgar as questões disciplinadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, notadamente, aquelas que contenham pretensão baseada na discordância paterna ou materna no exercício do poder familiar cuja repercussão alcance o exercício de direitos pela criança ou adolescente.

É certo que, nas comarcas nas quais existam varas especializadas em direito de família, os juízos correspondentes detêm competência para processar e julgar ações de guarda, alimentos e demais questões atinentes às relações familiares. Todavia, tal competência não atinge as matérias do juizado da infância e da juventude, tendo em vista que estas estão previstas em lei federal e aquelas decorrem da delimitação da organização judiciária local, a qual não possui força normativa a afastar a competência instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Registra-se que o pedido de suprimento de autorização paterna ou materna para viagem internacional não se confunde com litígios sobre guarda ou visitas, mas representa providência específica de jurisdição voluntária vinculada diretamente à proteção e ao exercício de direitos da criança e do adolescente, razão pela qual a competência é do juizado da infância e da juventude, em caráter absoluto.

A própria estrutura judiciária revela a atenção à opção legislativa, ao instituir juizados da infância e da juventude inclusive em diversos aeroportos e rodoviárias, a fim de assegurar solução célere e efetiva para demandas dessa natureza, garantindo, de modo imediato, a salvaguarda dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes em hipóteses de deslocamento internacional e nacional, na forma prevista nos arts. 83 a 85 do ECA.

Ainda que se afirme inexistir situação de risco ou ameaça direta à integridade física ou psicológica da criança, tal circunstância não é suficiente para afastar a competência do juizado da infância e da juventude. A negativa de um dos genitores em autorizar a viagem internacional, quando não fundada em justificativa plausível, configura óbice ao exercício de direitos fundamentais da criança, como o direito à convivência familiar, ao lazer, à cultura e à liberdade de locomoção.

 

Em suma:

A ausência de situação de risco nos pedidos de suprimento de autorização paterna/materna para viagem internacional de criança/adolescente não afasta a competência do juizado da infância e juventude para processar e julgar. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.062.293-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 16/9/2025 (Info 868).


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