Imagine a seguinte situação
hipotética:
João trabalhou por três anos como
motorista de caminhão para a empresa Transporte Rápido Ltda.
Ele foi demitido, sem justa
causa, mas não recebeu as verbas rescisórias devidas.
Diante disso, ajuizou uma
reclamação trabalhista contra a empresa Transporte Rápido Ltda.
O juiz julgou o pedido procedente
e condenou a empresa Transporte Rápido Ltda ao pagamento de R$ 100.000,00 em
verbas trabalhistas. A sentença transitou em julgado.
Cumprimento de sentença
trabalhista
João pediu o cumprimento da
sentença trabalhista.
Constatou-se, contudo, que a
Transporte Rápido Ltda. não possuía bens em seu nome para satisfazer a dívida.
Foi então que o advogado de João
descobriu que a Transporte Rápido Ltda. fazia parte de um grupo econômico controlado
pela logística Alvorada S.A.
Havia evidências de que essas
empresas compartilhavam o mesmo endereço, tinham sócios em comum, usavam os
mesmos equipamentos e recursos, e atuavam de forma coordenada.
Diante disso, João pediu a
execução fosse redirecionada contra a Logística Alvorada S.A. alegando que ele
e a executada integravam o mesmo grupo econômico.
Vale ressaltar, contudo, que a
Logística Alvorada S.A não participou da fase de conhecimento do processo.
O juiz do trabalho acolheu o
pedido, determinando, de forma direta, a inclusão da Logística Alvorada S.A. no
polo passivo da execução e a penhora de seus bens, sem instaurar incidente de
desconsideração da personalidade jurídica ou oportunizar prazo para defesa.
O magistrado fundamentou sua decisão no art. 2º, § 2º da
CLT, que prevê a responsabilidade solidária entre empresas de um mesmo grupo
econômico:
Art. 2º (...)
§ 2º Sempre que uma ou mais empresas,
tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a
direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando
cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis
solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego. (Redação
dada pela Lei nº 13.467, de 2017)
A Logística Alvorada
S.A. só foi intimada depois que seus bens já haviam sido penhorados.
A empresa apresentou então
embargos à execução alegando que nunca participou do processo de conhecimento e
que não teve oportunidade de se defender antes da constrição de seu patrimônio.
Argumentou ainda que não ficou caracterizado nenhum abuso da personalidade
jurídica, havendo apenas vínculos societários legítimos entre as empresas.
Os embargos foram rejeitados pelo
juiz e o Tribunal Regional do Trabalho manteve a decisão, entendendo que não
era necessário instaurar o incidente de desconsideração da personalidade
jurídica, pois a responsabilidade solidária no grupo econômico trabalhista já
decorreria automaticamente da lei.
A Logística Alvorada S.A.
recorreu ao TST, que também manteve o entendimento.
Por fim, a empresa interpôs
recurso extraordinário ao STF, alegando violação aos princípios constitucionais
do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
O caso hipotético acima trata de
uma situação muito comum na Justiça do Trabalho: um trabalhador ganha uma ação
contra seu ex-empregador, mas quando vai executar a sentença trabalhista,
descobre que a empresa que figurou na fase de conhecimento não tem patrimônio
suficiente. Aí surge a tentativa de incluir, na fase de execução, outras
empresas do mesmo grupo econômico para pagar a dívida.
Isso é possível? É possível
incluir uma empresa na execução, bloquear seus bens, sem que ela tenha
participado do processo desde o início e sem dar a ela uma chance prévia de se
defender? Foi correta a decisão da Justiça do Trabalho?
NÃO.
O processo trabalhista tem suas
particularidades. Ele existe para proteger o trabalhador, que geralmente é a
parte mais fraca da relação de emprego. Os direitos trabalhistas têm natureza
alimentar e, por isso, a tramitação precisa ser mais célere e efetiva.
Por conta disso, o princípio da
razoável duração do processo é muito importante no âmbito trabalhista, ou seja,
o processo precisa ter uma rápida tramitação para que o trabalhador não fique
anos esperando para receber seus direitos.
Isso, contudo, não significa que
a celeridade possa eliminar a necessidade de observância das outras garantias
constitucionais. A celeridade não é um valor absoluto que pode passar por cima
do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.
A teoria do empregador
único e a responsabilidade solidária no âmbito do grupo econômico
A CLT, em seu art. 2º, §§ 2º e
3º, reconhece expressamente a responsabilidade solidária das empresas que
integram um grupo econômico pelas obrigações trabalhistas assumidas por
qualquer uma delas. Essa previsão normativa dá suporte à chamada teoria do empregador
único, segundo a qual o conjunto de empresas integrantes do grupo é tratado,
para fins trabalhistas, como se fosse um único empregador.
Jurisprudência trabalhista
e conflito com garantias constitucionais
A Súmula nº 205 do TST dizia o
seguinte: “O responsável solidário, integrante do grupo econômico que não
participou da relação processual como reclamado e que, portanto, não consta no
título executivo judicial como devedor, não pode ser sujeito passivo na
execução.”
Ocorre que esse enunciado foi
cancelado pelo TST em 2003. A partir daí, consolidou-se na prática da Justiça
do Trabalho a inclusão de empresas no polo passivo da execução com fundamento
direto na solidariedade prevista no art. 2º, § 2º, da CLT, sem necessidade de
instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
O STF entendeu, contudo, que esse
entendimento da Justiça do Trabalho afronta as garantias constitucionais do
devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
A inclusão de nova pessoa
jurídica na execução exige:
1) participação prévia dessa
empresa no processo;
2) oportunidade para se defender
e produzir provas;
3) possibilidade de discutir os
fundamentos da responsabilização solidária.
Introdução do incidente de
desconsideração no processo do trabalho
Com a Reforma Trabalhista, o art. 855-A foi incluído na CLT,
reconhecendo expressamente a aplicabilidade, no processo trabalhista, do
incidente de desconsideração da personalidade jurídica disciplinado nos arts.
133 a 137 do CPC/2015:
Art. 855-A. Aplica-se ao processo do
trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos
arts. 133 a 137 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 - Código de Processo
Civil.
§ 1º Da decisão interlocutória que
acolher ou rejeitar o incidente:
I - na fase de cognição, não cabe
recurso de imediato, na forma do § 1o do art. 893 desta Consolidação;
II - na fase de execução, cabe agravo
de petição, independentemente de garantia do juízo;
III - cabe agravo interno se proferida
pelo relator em incidente instaurado originariamente no tribunal.
§ 2º A instauração do incidente
suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de
natureza cautelar de que trata o art. 301 da Lei no 13.105, de 16 de março de
2015 (Código de Processo Civil).
Vale ressaltar, contudo, que o
art. 855-A da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/2017, não criou um novo
mecanismo, mas apenas deixou clara a sua obrigatoriedade, que já decorria da
aplicação subsidiária do CPC. Assim, mesmo antes da Reforma Trabalhista (Lei nº
13.467/2017), a instauração do incidente já era necessária para assegurar o
devido processo legal.
A necessidade do abuso da
personalidade jurídica
O STF foi além e estabeleceu que
não basta demonstrar que existe grupo econômico. É preciso também demonstrar
abuso da personalidade jurídica, conforme o art. 50 do Código Civil.
Por quê? Porque a personalidade
jurídica (o fato de a empresa ter existência própria, separada de seus sócios)
é uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento econômico. Ela protege o
patrimônio pessoal dos empresários e incentiva as pessoas a assumirem riscos ao
abrir negócios.
A desconsideração da
personalidade jurídica é medida excepcional, que só deve acontecer
quando há abuso. O art. 50 do Código Civil diz que há abuso quando existe:
• Desvio de finalidade: usar a
empresa para fins ilícitos ou contrários ao contrato social;
• Confusão patrimonial: misturar
o patrimônio da empresa com o dos sócios ou de outras empresas.
Exemplos de abuso:
• Empresas do grupo que
compartilham o mesmo endereço, mesmos equipamentos e recursos;
• Sócios "laranjas" que
só existem no papel;
• Transferência fraudulenta de
bens entre empresas para fugir de credores;
• Subcapitalização deliberada
(deixar a empresa sem patrimônio de propósito).
É preciso harmonizar os
princípios constitucionais: de um lado, valorizar o trabalho e proteger o
trabalhador; de outro, garantir a livre iniciativa e a segurança jurídica para
as empresas.
Permitir que qualquer empresa de
um grupo seja incluída na execução apenas por fazer parte do grupo, sem
demonstrar abuso, criaria enorme insegurança jurídica e prejudicaria o ambiente
de negócios, o que, no fim, prejudica também os trabalhadores (menos empresas,
menos empregos).
Em suma:
O cumprimento de sentença trabalhista pode ser
promovido somente contra empresa do grupo econômico que participou da fase de
conhecimento do processo, exceto nas hipóteses de sucessão empresarial (art.
448-A, CLT) ou de abuso de personalidade jurídica (art. 50, CC), situações
excepcionais em que deverá ser observado o procedimento de desconsideração da
personalidade jurídica (art. 855-A, CLT e arts. 133 a 137, CPC).
STF.
Plenário. RE 1.387.795/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/10/2025
(Repercussão Geral – Tema 1.232) (Info 1194).
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TEMA 1232 É possível redirecionar a
execução trabalhista para empresa do mesmo grupo econômico que não participou
da fase de conhecimento, desde que observadas garantias constitucionais
mínimas? |
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Regra geral: |
O cumprimento de sentença não pode ser promovido
contra empresa que não participou da fase de conhecimento. Assim, o reclamante deve indicar, já na petição
inicial, todas as pessoas jurídicas que pretende responsabilizar
solidariamente, inclusive aquelas integrantes de grupo econômico (art. 2º, §§
2º e 3º, CLT), devendo demonstrar concretamente os requisitos legais dessa
solidariedade. |
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Exceções: |
O redirecionamento da execução é admitido somente
em duas situações: 1) Sucessão empresarial (art. 448-A da CLT); 2) Abuso da personalidade jurídica (art. 50 do
Código Civil). Nessas hipóteses, deve-se observar o procedimento
formal de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 855-A da
CLT e nos arts. 133 a 137 do CPC. |
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Aplicação temporal: |
Em regra, o entendimento acima
também vale para execuções anteriores à Reforma Trabalhista (Lei nº
13.467/2017). O entendimento acima não se
aplica em caso de: • processos já transitados em
julgado; • créditos já pagos; • execuções encerradas ou
arquivadas definitivamente. |
Tese fixada:
1 - O cumprimento da sentença trabalhista não poderá
ser promovido em face de empresa que não tiver participado da fase de
conhecimento do processo, devendo o reclamante indicar na petição inicial as
pessoas jurídicas corresponsáveis solidárias contra as quais pretende
direcionar a execução de eventual título judicial, inclusive nas hipóteses de
grupo econômico (art. 2°, §§ 2° e 3°, da CLT), demonstrando concretamente,
nesta hipótese, a presença dos requisitos legais;
2 - Admite-se, excepcionalmente, o redirecionamento
da execução trabalhista ao terceiro que não participou do processo de
conhecimento nas hipóteses de sucessão empresarial (art. 448-A da CLT) e abuso
da personalidade jurídica (art. 50 do CC), observado o procedimento previsto no
art. 855-A da CLT e nos arts. 133 a 137 do CPC;
3 - Aplica-se tal procedimento mesmo aos
redirecionamentos operados antes da Reforma Trabalhista de 2017, ressalvada a
indiscutibilidade relativa aos casos já transitados em julgado, aos créditos já
satisfeitos e às execuções findas ou definitivamente arquivadas.
STF.
Plenário. RE 1.387.795/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/10/2025
(Repercussão Geral – Tema 1.232) (Info 1194).
Voltando ao caso concreto:
Aplicando tudo isso ao caso concreto,
o STF constatou que:
• a empresa recorrente (Logística
Alvorada S.A.) foi incluída na execução sem qualquer procedimento prévio;
• não foi instaurado incidente de
desconsideração;
• a empresa só pôde se manifestar
depois, em embargos à execução, com todas as limitações dessa via;
• isso violou flagrantemente o
contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.
Por isso, o STF deu provimento ao
recurso e excluiu a empresa do polo passivo da execução, anulando todos os atos
executivos praticados contra ela.

