Imagine a seguinte situação
hipotética:
João é empresário que atua no
ramo de centros comerciais.
Em 2013, ele firmou contrato de
financiamento com o Banco da Amazônia (BASA), no valor de aproximadamente 55
milhões de reais, com o objetivo de construir um grande shopping center em uma
cidade no interior do Estado.
Segundo o contrato, o dinheiro
deveria ser aplicado exclusivamente na construção do empreendimento, cujas
etapas estavam detalhadas e condicionadas à liberação de parcelas.
Com o tempo, no entanto, a obra
foi paralisada e, após fiscalização do banco em 2019, foi constatado que os
trabalhos estavam abandonados há anos.
O Ministério Público Federal
ofereceu denúncia contra João imputando-lhe o crime previsto no art. 20 da Lei nº
7.492/86 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro), acusando-o de ter
aplicado os recursos do financiamento em finalidade diversa da prevista no
contrato.
O juiz, contudo, rejeitou a
denúncia. O magistrado entendeu que o MPF não havia descrito na peça acusatória
como e onde, de fato, os recursos teriam sido aplicados. Ou seja, a denúncia
afirmava apenas que a obra não foi concluída e que parte do dinheiro “não foi
usada na construção”, sem indicar qual teria sido a destinação alternativa dada
aos valores.
O TRF manteve a decisão de
rejeição da denúncia. O Tribunal entendeu que a denúncia narrava conduta
atípica, pois o crime previsto no art. 20 exige uma ação comissiva. É
necessário que o agente aplique os recursos em uma finalidade diversa, e não
apenas deixe de utilizá-los conforme previsto.
Inconformado, o Ministério
Público Federal recorreu ao STJ, sustentando que o crime se consuma com a não
aplicação dos recursos conforme o contrato.
O STJ concordou com o MPF?
NÃO.
O art. 20 da Lei nº 7.492/1986
descreve uma conduta comissiva, ou seja, exige que o agente atue de forma
ativa, desviando de fato os recursos para outro fim.
O tipo penal não se refere
simplesmente ao “não uso” ou ao “abandono” do dinheiro, tampouco à sua retenção
ou inércia. O crime exige que haja uma aplicação concreta dos recursos em
finalidade distinta da contratada. Assim, é imprescindível que a denúncia do
Ministério Público narre expressamente onde e em que esses recursos foram
utilizados de forma indevida.
No caso concreto, a denúncia
apenas afirmava que parte do dinheiro financiado não foi usado na construção do
shopping, sem indicar para onde esses recursos teriam ido ou como teriam sido
usados. Essa lacuna compromete a descrição da conduta típica exigida pelo art.
20 da Lei nº 7.492/1986.
Embora esse crime seja formal (ou
seja, não dependa da ocorrência de um prejuízo efetivo para se consumar), ainda
assim requer a demonstração da ação típica, que é a aplicação dos recursos em
finalidade diversa. Isso significa que não basta afirmar genericamente que os
valores não foram usados conforme o contrato. É necessário indicar, ainda que
de forma indiciária, qual foi o uso indevido.
Além disso, ao não descrever
adequadamente os fatos, a denúncia violou o art. 41 do CPP, que exige que a
peça acusatória traga a exposição do fato criminoso com todas as suas
circunstâncias. Essa omissão compromete o direito de defesa do acusado, que
precisa saber do que está sendo efetivamente acusado para poder se defender.
Vigora o princípio da legalidade
estrita no Direito Penal, segundo o qual a acusação não pode ampliar ou
modificar os elementos do tipo penal por meio de presunções ou interpretações
extensivas. Ou seja, não cabe ao Ministério Público presumir que houve desvio
só porque parte do dinheiro não foi usada na obra. É preciso narrar qual foi a
destinação concreta dos valores.
Dessa forma, como a denúncia não
especificava onde e em que os recursos teriam sido aplicados em desvio do
contrato, o STJ concluiu que a conduta narrada era atípica, mantendo o
trancamento da ação penal.
Em suma:
A denúncia que imputa a conduta prevista no art. 20
da Lei n. 7.492/1986 deve descrever, de forma clara e pormenorizada, a
destinação dos recursos aplicados em finalidade diversa da lei ou contrato,
para que seja possível a configuração típica do crime.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no AREsp 2.830.889-PA, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em
5/8/2025 (Info 865).

