Dizer o Direito

sábado, 1 de novembro de 2025

A denúncia pelo crime do art. 20 da Lei 7.492/86 deve descrever de forma clara onde e em que finalidade os recursos foram aplicados, não bastando afirmar que foram desviados ou deixaram de ser usados

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é empresário que atua no ramo de centros comerciais.

Em 2013, ele firmou contrato de financiamento com o Banco da Amazônia (BASA), no valor de aproximadamente 55 milhões de reais, com o objetivo de construir um grande shopping center em uma cidade no interior do Estado.

Segundo o contrato, o dinheiro deveria ser aplicado exclusivamente na construção do empreendimento, cujas etapas estavam detalhadas e condicionadas à liberação de parcelas.

Com o tempo, no entanto, a obra foi paralisada e, após fiscalização do banco em 2019, foi constatado que os trabalhos estavam abandonados há anos.

O Ministério Público Federal ofereceu denúncia contra João imputando-lhe o crime previsto no art. 20 da Lei nº 7.492/86 (Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro), acusando-o de ter aplicado os recursos do financiamento em finalidade diversa da prevista no contrato.

O juiz, contudo, rejeitou a denúncia. O magistrado entendeu que o MPF não havia descrito na peça acusatória como e onde, de fato, os recursos teriam sido aplicados. Ou seja, a denúncia afirmava apenas que a obra não foi concluída e que parte do dinheiro “não foi usada na construção”, sem indicar qual teria sido a destinação alternativa dada aos valores.

O TRF manteve a decisão de rejeição da denúncia. O Tribunal entendeu que a denúncia narrava conduta atípica, pois o crime previsto no art. 20 exige uma ação comissiva. É necessário que o agente aplique os recursos em uma finalidade diversa, e não apenas deixe de utilizá-los conforme previsto.

Inconformado, o Ministério Público Federal recorreu ao STJ, sustentando que o crime se consuma com a não aplicação dos recursos conforme o contrato.

 

O STJ concordou com o MPF?

NÃO.

O art. 20 da Lei nº 7.492/1986 descreve uma conduta comissiva, ou seja, exige que o agente atue de forma ativa, desviando de fato os recursos para outro fim.

O tipo penal não se refere simplesmente ao “não uso” ou ao “abandono” do dinheiro, tampouco à sua retenção ou inércia. O crime exige que haja uma aplicação concreta dos recursos em finalidade distinta da contratada. Assim, é imprescindível que a denúncia do Ministério Público narre expressamente onde e em que esses recursos foram utilizados de forma indevida.

No caso concreto, a denúncia apenas afirmava que parte do dinheiro financiado não foi usado na construção do shopping, sem indicar para onde esses recursos teriam ido ou como teriam sido usados. Essa lacuna compromete a descrição da conduta típica exigida pelo art. 20 da Lei nº 7.492/1986.

Embora esse crime seja formal (ou seja, não dependa da ocorrência de um prejuízo efetivo para se consumar), ainda assim requer a demonstração da ação típica, que é a aplicação dos recursos em finalidade diversa. Isso significa que não basta afirmar genericamente que os valores não foram usados conforme o contrato. É necessário indicar, ainda que de forma indiciária, qual foi o uso indevido.

Além disso, ao não descrever adequadamente os fatos, a denúncia violou o art. 41 do CPP, que exige que a peça acusatória traga a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Essa omissão compromete o direito de defesa do acusado, que precisa saber do que está sendo efetivamente acusado para poder se defender.

Vigora o princípio da legalidade estrita no Direito Penal, segundo o qual a acusação não pode ampliar ou modificar os elementos do tipo penal por meio de presunções ou interpretações extensivas. Ou seja, não cabe ao Ministério Público presumir que houve desvio só porque parte do dinheiro não foi usada na obra. É preciso narrar qual foi a destinação concreta dos valores.

Dessa forma, como a denúncia não especificava onde e em que os recursos teriam sido aplicados em desvio do contrato, o STJ concluiu que a conduta narrada era atípica, mantendo o trancamento da ação penal.

 

Em suma:

A denúncia que imputa a conduta prevista no art. 20 da Lei n. 7.492/1986 deve descrever, de forma clara e pormenorizada, a destinação dos recursos aplicados em finalidade diversa da lei ou contrato, para que seja possível a configuração típica do crime. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.830.889-PA, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 5/8/2025 (Info 865).


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