terça-feira, 4 de novembro de 2025
Lei estadual que obriga a manutenção da Bíblia em espaços públicos viola a laicidade estatal e a isonomia; no entanto, em vez de declarar inconstitucional, deve-se dar interpretação conforme para dizer que a lei permite, mas não impõe a aquisição e manutenção da Bíblia
O caso concreto foi o seguinte:
A Lei estadual nº 8.415/2003, do Rio Grande do Norte,
determinava a inclusão de pelo menos dez exemplares da Bíblia no acervo de
todas as bibliotecas públicas do Estado. Veja:
Art. 1º Fica
determinada a inclusão, no acervo de todas as bibliotecas públicas do Estado do
Rio Grande do Norte, pelo menos, dez exemplares da Bíblia Sagrada, sendo quatro
delas em linguagem Braile.
Art. 2º
Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em
contrário.
O Procurador-Geral da República
ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra essa lei,
invocando os seguintes argumentos:
• Violação ao princípio da
isonomia (art. 5º, caput, da CF/88): a lei conferiria privilégio injustificado
a uma crença religiosa específica em detrimento das demais;
• Violação ao princípio da
laicidade estatal (art. 19, I, da CF/88): ao impor a obrigatoriedade de
manutenção de livro de cunho religioso em bibliotecas públicas às custas do
erário, o Estado estaria privilegiando determinada religião;
• Violação à liberdade religiosa
e à pluralidade de crenças: a imposição legal representaria tratamento
diferenciado entre as diversas manifestações religiosas existentes no país.
O que decidiu o STF?
O STF, por maioria e nos termos do voto médio do Ministro Cristiano Zanin,
julgou parcialmente procedente a ação para conferir interpretação conforme a
Constituição aos dispositivos da Lei nº 8.415/2003 do Estado do Rio Grande do
Norte.
Qual é a interpretação a ser dada: a lei estadual permite, mas não obriga,
que o Estado adquira e mantenha exemplares da Bíblia em bibliotecas públicas.
Vamos entender os argumentos do Min. Cristiano Zanin, redator para o
acórdão.
A Constituição
Federal de 1988 consagra, em seu art. 19, inciso I, o princípio da laicidade
estatal, vedando expressamente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los,
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles relações de dependência ou
aliança:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou
igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou
seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da
lei, a colaboração de interesse público;
(...)
Esse dispositivo impõe um dever de neutralidade religiosa ao Estado,
impedindo que ele adote postura de favorecimento, direta ou indireta, a
qualquer confissão religiosa.
A imposição legal da presença obrigatória de exemplares da Bíblia Sagrada
em todas as bibliotecas públicas estaduais, com estipulação de quantidade
mínima e formato acessível (Braile), configura privilégio indevido a uma
determinada religião em detrimento das demais, comprometendo a imparcialidade
do Estado e violando os princípios constitucionais da isonomia e da liberdade
religiosa, previstos no caput do art. 5º da Constituição.
Vale ressaltar, contudo, que a manutenção de livros religiosos em espaços
públicos como bibliotecas não é, por si só, incompatível com o modelo de
laicidade adotado pela Constituição. O vício de inconstitucionalidade decorre
da obrigatoriedade imposta por lei formal para a inclusão de um único texto
religioso, de modo exclusivo, nos acervos públicos. A Lei questionada
estabelece uma obrigação dirigida à Administração Pública que resulta em
favorecimento a uma manifestação religiosa específica (o Cristianismo),
conferindo-lhe status de referência obrigatória, com prejuízo da pluralidade de
crenças.
A laicidade estatal brasileira adota o modelo de laicidade colaborativa, o
que significa que o Estado reconhece a importância do fenômeno religioso na
sociedade e pode dialogar com as confissões religiosas, desde que de maneira
não exclusiva nem impositiva. A neutralidade estatal exige que a presença de
obras religiosas em bibliotecas públicas seja resultado de critérios técnicos,
culturais, históricos ou pedagógicos, e não de imposição normativa com foco em
um único texto sagrado.
A jurisprudência do STF já se consolidou no sentido da
inconstitucionalidade de leis estaduais que impõem a presença de exemplares da
Bíblia Sagrada em bibliotecas ou escolas públicas, por considerar que tais
normas violam os princípios constitucionais da laicidade estatal, isonomia e
liberdade religiosa. Nesse sentido:
A imposição legal de
manutenção de exemplares de Bíblias em escolas e bibliotecas públicas estaduais
configura contrariedade à laicidade estatal e à liberdade religiosa consagrada
pela Constituição da República de 1988.
STF. Plenário. ADI
5258/AM, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 12/4/2021 (Info 1012).
STF. Plenário. ADI
5.256/MT, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 5/11/2021.
A aquisição e disponibilização da Bíblia ou de qualquer outro texto
religioso pode ser legítima, desde que não seja compulsória nem resulte de
comando legal que imponha tal inclusão como obrigatória.
A Constituição permite, inclusive, o ensino religioso confessional em
escolas públicas (ADI 4.439/DF), o que demonstra que a presença de conteúdos
religiosos no espaço público não é, por si só, inconstitucional. O que se veda
é a atuação estatal seletiva e impositiva, que privilegie determinada crença,
convertendo uma manifestação cultural ou religiosa legítima em política pública
monoconfessional.
A interpretação conforme à Constituição, nos termos do voto prevalente, permite
que o Estado adquira e mantenha exemplares da Bíblia em bibliotecas públicas,
mas sem obrigação legal ou fixação de quantitativo mínimo, garantindo-se,
assim, o respeito à laicidade estatal e à pluralidade religiosa.
Em suma:
É constitucional — e não ofende os
princípios da isonomia (art. 5º, caput, CF/88), da liberdade religiosa (art.
5º, VI a VIII, CF/88) e da laicidade estatal (art. 19, I, CF/88) — norma
estadual que permite a aquisição e a manutenção de exemplares da Bíblia Sagrada
no acervo das bibliotecas públicas.
O que é vedado ao legislador é
obrigar (determinar) que se adquiram e/ou se mantenham livros religiosos em
espaços públicos
STF. Plenário. ADI 5.255/RN, Rel. Min.
Nunes Marques, redator do acórdão Min. Cristiano Zanin, julgado em 27/09/2025
(Info 1192).
Com base nesses e em outros
entendimentos, o Plenário, por maioria e nos termos do voto médio do Ministro
Cristiano Zanin, julgou parcialmente procedente a ação para conferir
interpretação conforme a Constituição aos dispositivos da Lei nº 8.415/2003 do Estado
do Rio Grande do Norte, para permitir (e não obrigar) o ente federado a
adquirir e manter a Bíblia Sagrada em bibliotecas públicas.

