Dizer o Direito

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Candidato aprovado dentro do número de vagas pode deixar de ser nomeado se o cargo for extinto, dentro do prazo de prazo de validade do concurso, em razão da superação do limite prudencial de gastos com pessoal

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi aprovado em 2º lugar no concurso público realizado pela Prefeitura de Belém (PA) para o cargo de soldador. O edital previa a existência de 6 vagas.

O concurso foi homologado em 10/05/2013 e tinha validade de 2 (dois) anos, podendo ser prorrogado por igual período. Como não houve prorrogação, o prazo final para a nomeação dos aprovados seria até 10/05/2015.

João não foi nomeado dentro desse prazo.

Diante disso, em 05/08/2015, ele ajuizou ação pedindo a sua nomeação, sob o argumento de que foi aprovado dentro do número de vagas e que, portanto, tinha direito subjetivo à nomeação, conforme entendimento do STF firmado no Tema 161:

O candidato aprovado em concurso público dentro do número de vagas previsto no edital possui direito subjetivo à nomeação.

STF. Plenário. RE 598.099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/08/2011 (Repercussão Geral - Tema 161).

 

O juiz julgou o pedido procedente, condenando o Município a nomear João.

A Fazenda Pública interpôs apelação argumentando que:

• estava enfrentando grave crise financeira, com redução significativa de receitas;

• o percentual de gastos com pessoal já estava próximo do limite prudencial estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (51,30% da receita corrente líquida);

• havia editado a Lei Municipal nº 9.203/2016, que extinguiu diversos cargos, incluindo o de soldador, como forma de reestruturar o quadro de servidores e adequar as despesas aos limites legais;

• a extinção do cargo decorreu de cumprimento de Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministério Público em 13/02/2015.

 

O Tribunal de Justiça do Pará manteve a sentença favorável a João, alegando que:

• João foi aprovado dentro do número de vagas;

• a Lei nº 9.203/2016, que extinguiu o cargo, foi criada após a homologação do concurso e após o ajuizamento da ação;

• tratava-se de fato superveniente que não tinha o condão de elidir (suprimir) o direito de João;

• as limitações orçamentárias previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal não podem servir de fundamento para o não cumprimento de direito subjetivo.

 

O Município interpôs então recurso extraordinário insistindo nos argumentos já apresentados.

 

O que o STF decidiu?

Vamos entender com calma.

 

Em regra, candidato aprovado dentro do número de vagas possui direito subjetivo à nomeação

O candidato aprovado dentro do número de vagas possui, em regra, direito subjetivo à nomeação.

Destaco novamente o Tema 161 do STF que afirma esse direito:

O candidato aprovado em concurso público dentro do número de vagas previsto no edital possui direito subjetivo à nomeação.

STF. Plenário. RE 598.099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/08/2011 (Repercussão Geral - Tema 161).

 

A força normativa do princípio do concurso público decorre da conjugação entre os princípios da segurança jurídica e da boa-fé administrativa.

O dever de boa-fé impõe à Administração Pública o respeito incondicional às regras estabelecidas no edital, inclusive no que diz respeito à previsão das vagas oferecidas. Esse dever também resulta da observância necessária e inafastável ao princípio da segurança jurídica, enquanto fundamento essencial do Estado de Direito.

Nesse contexto, a segurança jurídica manifesta-se como princípio de proteção à confiança legítima.

Quando a Administração Pública publica um edital de concurso, convocando os cidadãos a participarem de um processo seletivo para o provimento de determinadas vagas no serviço público, cria-se uma expectativa de que seu comportamento se guiará estritamente pelas regras estabelecidas nesse edital.

Os candidatos que decidem se inscrever e participar do certame depositam sua confiança na conduta do Estado administrador. Este, por sua vez, deve pautar-se por uma atuação responsável, obedecendo às normas previamente fixadas e adotando o princípio da segurança jurídica como parâmetro de comportamento.

Em outras palavras, a conduta da Administração Pública durante todas as etapas do concurso público deve observar a boa-fé, tanto em seu aspecto objetivo (de atuação leal, transparente e previsível) quanto no aspecto subjetivo (de respeito à confiança que os administrados nela depositam).

No exato momento em que transcorre o prazo de validade do concurso surge o direito adquirido do candidato à nomeação. Até este momento o direito subjetivo à nomeação permanece em estado de latência. Nesse sentido:

Enquanto não expirado o prazo de validade do concurso público, o candidato aprovado dentro do número de vagas possui mera expectativa de direito à nomeação, sujeita à discricionariedade da Administração Pública, salvo em caso de preterição comprovada.

STJ. 1ª Turma. AgInt no RMS 63.207/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21/9/2020.

 

A regra acima exposta (Tema 161) é absoluta ou existem exceções?

Existem exceções. Não é absoluta.

No julgamento do RE 598.099 (Tema 161), o STF afirmou que existem algumas situações excepcionalíssimas nas quais o candidato não será nomeado mesmo tendo sido aprovado dentro do número de vagas. Veja:

Quando se afirma que a Administração Pública tem a obrigação de nomear os aprovados dentro do número de vagas previsto no edital, deve-se levar em consideração a possibilidade de situações excepcionalíssimas que justifiquem soluções diferenciadas, devidamente motivadas de acordo com o interesse público.

Não se pode ignorar que determinadas situações excepcionais podem exigir a recusa da Administração Pública de nomear novos servidores.

Para justificar o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de nomeação por parte da Administração Pública, é necessário que a situação justificadora seja dotada das seguintes características:

a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma situação excepcional devem ser necessariamente posteriores à publicação do edital do certame público;

b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis à época da publicação do edital;

c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis devem ser extremamente graves, implicando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras do edital;

d) Necessidade: a solução drástica e excepcional de não cumprimento do dever de nomeação deve ser extremamente necessária, de forma que a Administração somente pode adotar tal medida quando absolutamente não existirem outros meios menos gravosos para lidar com a situação excepcional e imprevisível.

De toda forma, a recusa de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas deve ser devidamente motivada e, dessa forma, passível de controle pelo Poder Judiciário.

STF. Plenário. RE 598099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/08/2011.

 

Extrapolação do limite prudencial de gastos com pessoal (arts. 19 e 20, LRF/2000) como justificativa para não nomear

A Lei Complementar nº 101/2000 estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Ela é popularmente conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”.

A LRF (LC 101/2000) foi editada com fundamento no art. 163 da CF/88:

Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não pode exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

 

A LRF estabelece, nos arts. 18 e seguintes, os limites de gastos com pessoal para cada ente da Federação, em termos globais e setoriais, bem como as correspondentes exceções.

Além disso, a Lei criou medidas de controle das despesas caso esses gastos se aproximem ou ultrapassem os tetos impostos.

No art. 19 da LRF são previstas as despesas totais com pessoal da União, dos Estados e dos Municípios:

Art. 19. Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados:

I - União: 50% (cinquenta por cento);

II - Estados: 60% (sessenta por cento);

III - Municípios: 60% (sessenta por cento).

(…)

 

No art. 20, por sua vez, estão elencados os limites globais de gastos com pessoal de cada Poder.

 

Mas afinal de contas, o que é esse limite prudencial da LRF?

O limite prudencial é aquele previsto no parágrafo único do art. 22 da LRF e que, se for ultrapassado, impõe uma série de vedações:

Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.

Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:

I - concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;

II - criação de cargo, emprego ou função;

III - alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV - provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;

V - contratação de hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição e as situações previstas na lei de diretrizes orçamentárias.

 

Assim, a LC 101/2000 determina que seja verificado se a despesa de cada Poder ou órgão com pessoal (limite específico) se mantém inferior a 95% do seu limite. Isso porque, em caso de excesso, há um conjunto de vedações que deve ser observado exclusivamente pelo Poder ou pelo órgão que houver incorrido no excesso, como visto no art. 22 da LC 101/2000.

 

Márcio, você falou sobre a LRF e o limite prudencial, mas não respondeu a pergunta: o poder público pode extinguir cargos que foram oferecidos no concurso alegando que já atingiu o limite de gastos com pessoal e, com isso, deixar de nomear candidatos aprovados dentro do número de vagas do concurso?

A Administração Pública pode deixar de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas se:

• o cargo for extinto em razão da superação do limite prudencial de despesas com pessoal;

• a extinção do cargo ocorrer antes do término do prazo de validade do concurso;

• houver motivação expressa e adequada, com demonstração da superveniência, imprevisibilidade, gravidade e necessidade da situação excepcional; e

• a decisão administrativa estiver fundamentada no interesse público, sendo sujeita a controle jurisdicional.

 

Essa foi a tese fixada pelo STF no Tema 1164:

A superveniente extinção dos cargos oferecidos em edital de concurso público em razão da superação do limite prudencial de gastos com pessoal, previsto em lei complementar regulamentadora do art. 169 da Constituição Federal, desde que anterior ao término do prazo de validade do concurso e devidamente motivada, justifica a mitigação do direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado dentro do número de vagas.

STF. Plenário. RE 1.316.010/PA, Rel. Min. Flávio Dino, julgado em 13/10/2025 (Repercussão Geral – Tema 1.164) (Info 1194).

 

O cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal é uma obrigação constitucional e a extrapolação desses limites pode, em tese, configurar uma situação excepcional que justifique a não nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas. Afinal, como observou o Ministro Flávio Dino, seria contraditório reconhecer um direito subjetivo de nomear quando a satisfação desse direito implica violação da ordem jurídica (violação da responsabilidade fiscal).

Para o STF, se a Administração está realmente impedida pela Lei de Responsabilidade Fiscal de realizar novas contratações, e se essa situação é superveniente, imprevisível, grave e necessária, então os quatro requisitos da excepcionalidade estão presentes.

Além disso, o STF possui jurisprudência consolidada no sentido de que o estágio probatório não protege o servidor público contra eventual extinção do cargo, conforme se extrai da Súmula 22:

Súmula 22: o estágio probatório não protege o funcionário contra a extinção do cargo.

 

Essa súmula é antiga (ela é de 1963), mas continua sendo aplicada ainda hoje:

O estágio probatório não protege o servidor público da eventual extinção do cargo, nos termos do que dispõe a Súmula 22 do STF.

STF. 2ª Turma. ARE 1309402 ED-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 20/9/2021.

 

Portanto, considerando que o STF reconhece a possibilidade de extinção de cargo público mesmo quando este se encontra ocupado por servidor em estágio probatório, com ainda mais razão deve-se admitir a possibilidade de extinção do cargo antes de seu efetivo provimento. Essa extinção, contudo, deve sempre estar fundamentada na salvaguarda do interesse público.

Por outro lado, a possibilidade de restrição ao direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em concurso público (dentro do número de vagas previsto no edital) em razão da extinção do cargo ou do atingimento do limite prudencial de despesas com pessoal, deve ser admitida apenas com a observância de parâmetros que coíbam abusos.

 

No caso concreto, o STF concordou com o Município de Belém (PA)?

Não, mas por conta de uma peculiaridade do caso concreto.

A extinção do cargo público para o qual João foi aprovado (soldador) somente ocorreu depois do fim do prazo de validade do concurso. Conforme vimos na tese fixada pelo STF, a extinção do cargo deve acontecer antes do término de validade do concurso. Isso porque se o concurso expirar o prazo sem que o candidato aprovado tenha sido nomeado, neste instante, surge o direito adquirido do candidato a ser nomeado.


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