Imagine a seguinte situação
hipotética:
João foi aprovado em 2º lugar no
concurso público realizado pela Prefeitura de Belém (PA) para o cargo de
soldador. O edital previa a existência de 6 vagas.
O concurso foi homologado em
10/05/2013 e tinha validade de 2 (dois) anos, podendo ser prorrogado por igual
período. Como não houve prorrogação, o prazo final para a nomeação dos
aprovados seria até 10/05/2015.
João não foi nomeado dentro desse
prazo.
Diante disso, em 05/08/2015, ele ajuizou
ação pedindo a sua nomeação, sob o argumento de que foi aprovado dentro do
número de vagas e que, portanto, tinha direito subjetivo à nomeação, conforme
entendimento do STF firmado no Tema 161:
O candidato aprovado em concurso público dentro do número de
vagas previsto no edital possui direito subjetivo à nomeação.
STF. Plenário. RE 598.099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/08/2011
(Repercussão Geral - Tema 161).
O juiz julgou o pedido
procedente, condenando o Município a nomear João.
A Fazenda Pública interpôs
apelação argumentando que:
• estava enfrentando grave crise
financeira, com redução significativa de receitas;
• o percentual de gastos com
pessoal já estava próximo do limite prudencial estabelecido pela Lei de
Responsabilidade Fiscal (51,30% da receita corrente líquida);
• havia editado a Lei Municipal
nº 9.203/2016, que extinguiu diversos cargos, incluindo o de soldador, como
forma de reestruturar o quadro de servidores e adequar as despesas aos limites
legais;
• a extinção do cargo decorreu de
cumprimento de Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministério Público
em 13/02/2015.
O Tribunal de Justiça do Pará
manteve a sentença favorável a João, alegando que:
• João foi aprovado dentro do
número de vagas;
• a Lei nº 9.203/2016, que
extinguiu o cargo, foi criada após a homologação do concurso e após o
ajuizamento da ação;
• tratava-se de fato
superveniente que não tinha o condão de elidir (suprimir) o direito de João;
• as limitações orçamentárias
previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal não podem servir de fundamento para
o não cumprimento de direito subjetivo.
O Município interpôs então recurso
extraordinário insistindo nos argumentos já apresentados.
O que o STF decidiu?
Vamos entender com calma.
Em regra, candidato
aprovado dentro do número de vagas possui direito subjetivo à nomeação
O candidato aprovado dentro do
número de vagas possui, em regra, direito subjetivo à nomeação.
Destaco novamente o Tema 161 do
STF que afirma esse direito:
O candidato aprovado em concurso público dentro do número de
vagas previsto no edital possui direito subjetivo à nomeação.
STF. Plenário. RE 598.099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em
10/08/2011 (Repercussão Geral - Tema 161).
A força normativa do princípio do
concurso público decorre da conjugação entre os princípios da segurança
jurídica e da boa-fé administrativa.
O dever de boa-fé impõe à
Administração Pública o respeito incondicional às regras estabelecidas no
edital, inclusive no que diz respeito à previsão das vagas oferecidas. Esse
dever também resulta da observância necessária e inafastável ao princípio da segurança
jurídica, enquanto fundamento essencial do Estado de Direito.
Nesse contexto, a segurança
jurídica manifesta-se como princípio de proteção à confiança legítima.
Quando a Administração Pública
publica um edital de concurso, convocando os cidadãos a participarem de um
processo seletivo para o provimento de determinadas vagas no serviço público,
cria-se uma expectativa de que seu comportamento se guiará estritamente pelas
regras estabelecidas nesse edital.
Os candidatos que decidem se
inscrever e participar do certame depositam sua confiança na conduta do Estado
administrador. Este, por sua vez, deve pautar-se por uma atuação responsável,
obedecendo às normas previamente fixadas e adotando o princípio da segurança
jurídica como parâmetro de comportamento.
Em outras palavras, a conduta da
Administração Pública durante todas as etapas do concurso público deve observar
a boa-fé, tanto em seu aspecto objetivo (de atuação leal, transparente e
previsível) quanto no aspecto subjetivo (de respeito à confiança que os
administrados nela depositam).
No exato momento em que transcorre o prazo de validade do concurso surge o
direito adquirido do candidato à nomeação. Até este momento o direito subjetivo
à nomeação permanece em estado de latência. Nesse sentido:
Enquanto não expirado
o prazo de validade do concurso público, o candidato aprovado dentro do número
de vagas possui mera expectativa de direito à nomeação, sujeita à
discricionariedade da Administração Pública, salvo em caso de preterição
comprovada.
STJ. 1ª Turma.
AgInt no RMS 63.207/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21/9/2020.
A regra acima exposta (Tema
161) é absoluta ou existem exceções?
Existem exceções. Não é absoluta.
No julgamento do RE 598.099 (Tema
161), o STF afirmou que existem algumas situações excepcionalíssimas nas quais
o candidato não será nomeado mesmo tendo sido aprovado dentro do número de
vagas. Veja:
Quando se afirma que a Administração Pública tem a obrigação de
nomear os aprovados dentro do número de vagas previsto no edital, deve-se levar
em consideração a possibilidade de situações excepcionalíssimas que justifiquem
soluções diferenciadas, devidamente motivadas de acordo com o interesse
público.
Não se pode ignorar que determinadas situações excepcionais
podem exigir a recusa da Administração Pública de nomear novos servidores.
Para justificar o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de
nomeação por parte da Administração Pública, é necessário que a situação
justificadora seja dotada das seguintes características:
a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma
situação excepcional devem ser necessariamente posteriores à publicação do
edital do certame público;
b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por
circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis à época da publicação do edital;
c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários e
imprevisíveis devem ser extremamente graves, implicando onerosidade excessiva,
dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras do
edital;
d) Necessidade: a solução drástica e excepcional de não
cumprimento do dever de nomeação deve ser extremamente necessária, de forma que
a Administração somente pode adotar tal medida quando absolutamente não
existirem outros meios menos gravosos para lidar com a situação excepcional e
imprevisível.
De toda forma, a recusa de nomear candidato aprovado dentro do
número de vagas deve ser devidamente motivada e, dessa forma, passível de
controle pelo Poder Judiciário.
STF. Plenário. RE 598099, Rel. Min. Gilmar Mendes,
julgado em 10/08/2011.
Extrapolação do limite
prudencial de gastos com pessoal (arts. 19 e 20, LRF/2000) como justificativa
para não nomear
A Lei Complementar nº 101/2000
estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na
gestão fiscal. Ela é popularmente conhecida como “Lei de Responsabilidade
Fiscal”.
A LRF (LC 101/2000) foi editada com fundamento no art. 163
da CF/88:
Art. 169. A despesa com pessoal ativo e
inativo e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios não pode exceder os limites estabelecidos em lei complementar.
A LRF estabelece, nos arts. 18 e
seguintes, os limites de gastos com pessoal para cada ente da Federação, em
termos globais e setoriais, bem como as correspondentes exceções.
Além disso, a Lei criou medidas
de controle das despesas caso esses gastos se aproximem ou ultrapassem os tetos
impostos.
No art. 19 da LRF são previstas as despesas totais com
pessoal da União, dos Estados e dos Municípios:
Art. 19. Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a
despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da
Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida, a
seguir discriminados:
I - União: 50% (cinquenta por cento);
II - Estados: 60% (sessenta por cento);
III - Municípios: 60% (sessenta por cento).
(…)
No art. 20, por sua vez, estão
elencados os limites globais de gastos com pessoal de cada Poder.
Mas afinal de contas, o que é
esse limite prudencial da LRF?
O limite prudencial é aquele previsto no parágrafo
único do art. 22 da LRF e que, se for ultrapassado, impõe uma série de
vedações:
Art. 22. A verificação do cumprimento
dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada
quadrimestre.
Parágrafo único. Se a despesa total com
pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados
ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:
I - concessão de vantagem, aumento,
reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de
sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão
prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;
II - criação de cargo, emprego ou
função;
III - alteração de estrutura de
carreira que implique aumento de despesa;
IV - provimento de cargo público,
admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição
decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação,
saúde e segurança;
V - contratação de hora extra, salvo no
caso do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição e as situações
previstas na lei de diretrizes orçamentárias.
Assim, a LC 101/2000 determina
que seja verificado se a despesa de cada Poder ou órgão com pessoal (limite
específico) se mantém inferior a 95% do seu limite. Isso porque, em caso de
excesso, há um conjunto de vedações que deve ser observado exclusivamente pelo
Poder ou pelo órgão que houver incorrido no excesso, como visto no art. 22 da
LC 101/2000.
Márcio, você falou sobre a
LRF e o limite prudencial, mas não respondeu a pergunta: o poder público pode
extinguir cargos que foram oferecidos no concurso alegando que já atingiu o
limite de gastos com pessoal e, com isso, deixar de nomear candidatos aprovados
dentro do número de vagas do concurso?
A Administração Pública pode
deixar de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas se:
• o cargo for extinto em razão da
superação do limite prudencial de despesas com pessoal;
• a extinção do cargo ocorrer
antes do término do prazo de validade do concurso;
• houver motivação expressa e
adequada, com demonstração da superveniência, imprevisibilidade, gravidade e
necessidade da situação excepcional; e
• a decisão administrativa
estiver fundamentada no interesse público, sendo sujeita a controle
jurisdicional.
Essa foi a tese fixada pelo STF no Tema 1164:
A
superveniente extinção dos cargos oferecidos em edital de concurso público em
razão da superação do limite prudencial de gastos com pessoal, previsto em lei
complementar regulamentadora do art. 169 da Constituição Federal, desde que
anterior ao término do prazo de validade do concurso e devidamente motivada,
justifica a mitigação do direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado
dentro do número de vagas.
STF. Plenário. RE 1.316.010/PA, Rel. Min. Flávio Dino,
julgado em 13/10/2025 (Repercussão Geral – Tema 1.164) (Info 1194).
O cumprimento da Lei de
Responsabilidade Fiscal é uma obrigação constitucional e a extrapolação desses
limites pode, em tese, configurar uma situação excepcional que justifique a não
nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas. Afinal, como
observou o Ministro Flávio Dino, seria contraditório reconhecer um direito
subjetivo de nomear quando a satisfação desse direito implica violação da ordem
jurídica (violação da responsabilidade fiscal).
Para o STF, se a Administração
está realmente impedida pela Lei de Responsabilidade Fiscal de realizar novas
contratações, e se essa situação é superveniente, imprevisível, grave e
necessária, então os quatro requisitos da excepcionalidade estão presentes.
Além disso, o STF possui
jurisprudência consolidada no sentido de que o estágio probatório não protege o
servidor público contra eventual extinção do cargo, conforme se extrai da
Súmula 22:
Súmula 22: o estágio
probatório não protege o funcionário contra a extinção do cargo.
Essa súmula é antiga (ela é de
1963), mas continua sendo aplicada ainda hoje:
O estágio probatório não protege o servidor público da eventual
extinção do cargo, nos termos do que dispõe a Súmula 22 do STF.
STF. 2ª Turma.
ARE 1309402 ED-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 20/9/2021.
Portanto, considerando que o STF reconhece a possibilidade de extinção de
cargo público mesmo quando este se encontra ocupado por servidor em estágio
probatório, com ainda mais razão deve-se admitir a possibilidade de extinção do
cargo antes de seu efetivo provimento. Essa extinção, contudo, deve sempre
estar fundamentada na salvaguarda do interesse público.
Por outro lado, a possibilidade de restrição ao direito subjetivo à
nomeação de candidato aprovado em concurso público (dentro do número de vagas
previsto no edital) em razão da extinção do cargo ou do atingimento do limite
prudencial de despesas com pessoal, deve ser admitida apenas com a observância
de parâmetros que coíbam abusos.
No caso concreto, o STF concordou com o Município
de Belém (PA)?
Não, mas por conta de uma peculiaridade do caso concreto.
A extinção do cargo público para o qual João foi aprovado (soldador) somente
ocorreu depois do fim do prazo de validade do concurso. Conforme vimos na tese
fixada pelo STF, a extinção do cargo deve acontecer antes do término de
validade do concurso. Isso porque se o concurso expirar o prazo sem que o
candidato aprovado tenha sido nomeado, neste instante, surge o direito
adquirido do candidato a ser nomeado.

