Dizer o Direito

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

A organização religiosa pode se recusar a fornecer os documentos do procedimento disciplinar eclesiástico que foi instaurado contra a autoridade religiosa (ex: padre)

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carlos foi coroinha de uma paróquia durante sua adolescência.

Quando tinha 17 anos, Carlos procurou o bispo responsável pela Arquidiocese e denunciou que foi vítima de abuso praticado por um dos padres da paróquia.

A denúncia motivou a instauração de um processo disciplinar eclesiástico (também denominado processo penal canônico) perante o Tribunal Eclesiástico Interdiocesano, regido pelo Código de Direito Canônico, para apurar a conduta do padre.

O processo eclesiástico tramitou sob sigilo, conforme as normas internas da Igreja Católica.

Durante o procedimento, foram colhidas provas, ouvidas testemunhas (sacerdotes e fiéis que conheciam os fatos), e o próprio padre foi interrogado no âmbito religioso.

Ao final do processo eclesiástico, o Tribunal Eclesiástico concluiu que ficaram comprovados “comportamentos e atos de cunho homossexual e de infidelidade à promessa do celibato, com escândalo”, mas não ficaram comprovados delitos de abuso.

Como sanção, o padre foi condenado à pena de suspensão das ordens sacerdotais por três anos e obrigado a se recolher, por ao menos um ano, em instituição de ajuda a sacerdotes, com acompanhamento espiritual e psicológico.

 

Ação de exibição de documentos proposta por Carlos

Insatisfeito com a falta de acesso às informações do processo eclesiástico e desejando reunir elementos para eventual ação judicial na esfera estatal (cível, trabalhista ou criminal), Carlos ingressou com ação de exibição de documentos contra a Arquidiocese, requerendo acesso integral aos autos do processo disciplinar eclesiástico.

 

Arquidiocese é uma divisão territorial da Igreja Católica, como se fosse uma “sede regional” da Igreja em uma grande cidade ou região importante. É comandada por um arcebispo e pode coordenar outras dioceses menores ao redor. Possui personalidade jurídica própria.

A arquidiocese é considerada uma organização religiosa com existência legal própria, podendo, por exemplo ter CNPJ, ser proprietária de bens, contratar funcionários e, inclusive, responder judicialmente (como aconteceu no caso julgado pelo STJ).

 

A Arquidiocese contestou sustentando que o processo eclesiástico é protegido por sigilo, uma vez que se tratava de um procedimento interno, fundado em ritos religiosos e voltado à aplicação de penas espirituais, não à responsabilização jurídica estatal. Argumentou ainda que forçar a exibição violaria o direito à liberdade religiosa, a privacidade do sacerdote envolvido e o sigilo inerente às confissões e depoimentos ali colhidos.

O juiz julgou o pedido procedente e determinou que a Arquidiocese exibisse integralmente o processo eclesiástico.

O Tribunal de Justiça manteve a sentença, entendendo que o direito de Carlos ao acesso à prova deveria prevalecer sobre o sigilo do procedimento religioso.

A Arquidiocese interpôs recurso especial alegando violação à liberdade de organização religiosa e ao sigilo inerente aos ritos eclesiásticos, protegidos constitucionalmente.

 

O STJ acolheu os argumentos da Arquidiocese ou de Carlos?

Da Arquidiocese.

 

O direito à prova não é absoluto

O direito à produção de provas, como a exibição de documentos, não é absoluto. Esse direito pode ser limitado quando entra em conflito com outros direitos fundamentais igualmente protegidos pela Constituição.

O art. 404 do CPC prevê hipóteses nas quais a parte pode legitimamente se recusar a exibir documentos em determinadas situações:

Art. 404. A parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa se:

I - concernente a negócios da própria vida da família;

II - sua apresentação puder violar dever de honra;

III - sua publicidade redundar em desonra à parte ou ao terceiro, bem como a seus parentes consanguíneos ou afins até o terceiro grau, ou lhes representar perigo de ação penal;

IV - sua exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo;

V - subsistirem outros motivos graves que, segundo o prudente arbítrio do juiz, justifiquem a recusa da exibição;

VI - houver disposição legal que justifique a recusa da exibição.

Parágrafo único. Se os motivos de que tratam os incisos I a VI do caput disserem respeito a apenas uma parcela do documento, a parte ou o terceiro exibirá a outra em cartório, para dela ser extraída cópia reprográfica, de tudo sendo lavrado auto circunstanciado.

 

Isso significa que o próprio legislador já reconheceu que o direito à prova deve conviver com outros valores igualmente importantes, estabelecendo regras claras sobre quando a exibição de documentos pode ser legitimamente negada.

 

Liberdade religiosa como direito fundamental amplo

No caso concreto, o STJ entendeu que a recusa em fornecer os documentos era legítima com base na liberdade religiosa, prevista no art. 5º, VI da Constituição:

Art. 5º (...)

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

 

A liberdade religiosa não se limita apenas à liberdade de crer ou de frequentar cultos. Ela engloba também a liberdade de organização religiosa, que é a prerrogativa das instituições religiosas de estruturarem seus ritos, procedimentos e regras internas sem interferência estatal.

Essa liberdade religiosa é expressão direta da dignidade da pessoa humana e está historicamente ligada aos direitos fundamentais de primeira geração, aqueles que estabelecem limites à intervenção do Estado na esfera de liberdade individual.

A Constituição (art. 19, I) é explícita ao vedar que o Estado embarace o funcionamento das organizações religiosas, e o Código Civil reforça esse princípio ao garantir que são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas.

 

O processo eclesiástico como exercício da liberdade religiosa

A sujeição de sacerdotes e fiéis ao processo eclesiástico representa, ela própria, uma manifestação do exercício da liberdade religiosa de todos os envolvidos.

Quando um sacerdote se submete a um processo disciplinar canônico, participa do rito, aceita e cumpre as penas impostas, ele não está sendo coagido por uma autoridade estatal dotada de poder de império.

Ele está, na verdade, exercitando sua fé, aceitando voluntariamente submeter-se às normas de sua comunidade religiosa.

Diferentemente da jurisdição estatal, que possui as características da imperatividade e da inafastabilidade, o processo eclesiástico só tem eficácia porque o próprio apenado concorda voluntariamente em se submeter a ele, movido por sua crença religiosa de que o fim último da pena é a salvação de sua alma.

 

A severidade das penas eclesiásticas comprova a natureza voluntária do processo

O STJ destacou que o processo eclesiástico pode resultar em penas graves: privação do exercício do sacerdócio, transferência para outro ofício, demissão do estado clerical, proibição de residir em determinado lugar, ou ordem de recolhimento em instituição por período determinado. Algumas dessas penas até restringem a liberdade de locomoção.

Ora, se essas penas graves só podem ser efetivamente cumpridas mediante a concordância voluntária do apenado (já que a Igreja não dispõe de poder coercitivo estatal para executá-las), isso comprova que todo o processo é permeado pelo exercício da liberdade religiosa.

O sacerdote aceita submeter-se a essas restrições severas porque sua consciência religiosa assim o determina, confiando que está cumprindo um caminho de expiação dentro de sua fé.

 

Risco de violação do direito de não se autoincriminar

Na jurisdição estatal brasileira, o réu tem direito ao silêncio e não pode ser obrigado a confessar (garantia constitucional do “nemo tenetur se detegere”). Mas no processo eclesiástico, a dinâmica é completamente diferente: existe um verdadeiro incentivo à confissão, pois o Código de Direito Canônico estabelece que a parte legitimamente interrogada deve responder e expor toda a verdade.

Essa regra reflete valores morais e religiosos, esperando que o fiel seja sincero mesmo quando é sujeito passivo do processo, confiando justamente no sigilo religioso para se abrir espiritualmente.

Se um sacerdote confessou fatos prejudiciais a si mesmo dentro do procedimento canônico - confiando no sigilo inerente àquela jurisdição apartada da estatal -, a quebra desse sigilo para uso em processo judicial estatal violaria frontalmente a garantia constitucional que lhe assegura o direito de não se autoincriminar.

 

Proteção das testemunhas e da confiança depositada na instituição

A quebra do sigilo coloca em risco a proteção de informações íntimas e sensíveis não apenas do sacerdote, mas de todas as testemunhas que depuseram no processo.

No procedimento canônico, comumente são os próprios sacerdotes e fiéis frequentadores do espaço religioso que prestam depoimentos, pois são eles que conhecem os fatos. Essas pessoas comparecem ao Tribunal Eclesiástico por livre e espontânea vontade considerando que não existe condução coercitiva como no processo penal estatal. Logo, essas pessoas participam atendendo a um imperativo de fé. Elas falam abertamente porque confiam no sigilo do ambiente religioso. Expor esses depoimentos violaria a confiança depositada na organização religiosa e poderia inibir futuros testemunhos em casos semelhantes.

Diversas normas legais protegem o sigilo religioso

O art. 13 do Decreto nº 7.107/2010, que internalizou o Acordo entre o Brasil e a Santa Sé, garante expressamente “o segredo do ofício sacerdotal”, sendo que o exercício da atividade de julgamento das infrações eclesiásticas está inserido nesse ofício sacerdotal.

O art. 154 do Código Penal criminaliza a revelação de segredo do qual a pessoa tem ciência em razão de ministério, demonstrando que o sigilo ministerial é um valor constitucionalmente protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

O art. 207 do CPP estabelece restrições ao depoimento daqueles que, em razão de ministério, devam guardar segredo.

Todas essas normas convergem no sentido de prestigiar o sigilo das atividades religiosas, configurando hipóteses legais de recusa à exibição nos termos do art. 404, IV, V e VI do CPC.

 

Em suma:

Organização religiosa pode recusar o acesso a procedimento disciplinar eclesiástico instaurado em face de autoridade religiosa. 

STJ. 4ª Turma. Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 14/10/2025 (Info 868).


Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJSP

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJSP.

Bons estudos.



 

Revisão para o concurso de Promotor de Justiça do Espírito Santo (MP/ES)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Promotor do Espírito Santo (MP/ES).

Bons estudos.

 


domingo, 23 de novembro de 2025

Compete ao juizado da infância e juventude decidir sobre o pedido de suprimento judicial de autorização para viagem internacional, ainda que ausente situação de risco

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e Regina foram casados e tiveram uma filha, Luísa, atualmente com 14 anos.

O divórcio foi muito conturbado. Ainda hoje, João e Regina não possuem uma boa convivência.

João planejou uma viagem internacional para comemorar os 15 anos de Luísa na Disney, em Orlando, nos Estados Unidos.

A adolescente iria acompanhada do pai e dos avós paternos.

Para realizar a viagem internacional, Luísa precisava da companhia ou da autorização de ambos os pais, nos termos do art. 84 do ECA:

Art. 84. Quando se tratar de viagem ao exterior, a autorização é dispensável, se a criança ou adolescente:

I - estiver acompanhado de ambos os pais ou responsável;

II - viajar na companhia de um dos pais, autorizado expressamente pelo outro através de documento com firma reconhecida.

 

João solicitou formalmente a autorização da mãe de Luísa, mas ela negou, sem apresentar qualquer justificativa.

Diante da negativa, Luísa, assistida por João, ingressou com ação de suprimento de consentimento materno no Juizado da Infância e da Juventude, argumentando que a recusa contrariava o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

O juiz do Juizado da Infância e da Juventude reconheceu sua competência para processar e julgar o pedido.

Regina recorreu sustentando que o caso deveria ser julgado pela Vara de Família, e não pelo Juizado da Infância e da Juventude. Segundo ela, não havia qualquer “situação de risco” envolvendo Luísa. A adolescente não estava abandonada, não sofria maus-tratos e tinha todos os seus direitos fundamentais assegurados pela mãe, com quem residia.

O Tribunal de Justiça manteve a competência do Juizado da Infância e da Juventude.

Regina interpôs então recurso especial sustentando que a competência do juizado da infância e juventude depende da comprovação de situação de risco envolvendo a criança ou adolescente, o que não estaria presente no caso concreto.

Ponderou que o juizado da infância e juventude é competente para conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou materna em relação ao exercício do poder familiar, mas apenas quando há ameaça ou violação de direitos, conforme o art. 98 do ECA.

 

O STJ acolheu o recurso Regina?

NÃO.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), em consonância com o art. 227 da Constituição Federal, consagrou a doutrina da proteção integral, superando a ultrapassada doutrina da situação irregular do revogado Código de Menores.

Isso significa que a atuação da Justiça especializada (Juizado da Infância e Juventude) não se restringe a situações de abandono, risco ou vulnerabilidade. A competência do Juizado da Infância e Juventude se faz presente sempre que for necessário resguardar, prevenir ou assegurar o exercício pleno dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, em atenção ao princípio do melhor interesse e ao art. 98 do ECA:

Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados:

I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;

II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

III - em razão de sua conduta.

 

O art. 148, parágrafo único, alínea “d”, do ECA estabelece a competência do juizado da infância e juventude para conhecer de pedidos veiculados em ações civis fundada em interesses individuais afetos à criança, bem como pleitos baseados em discordância paterna ou materna no exercício do poder familiar, sempre que a divergência repercutir no exercício de direitos pela criança ou adolescente:

Art. 148. A Justiça da Infância e da Juventude é competente para:

(...)

IV - Conhecer de ações civis fundadas em interesses individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao adolescente, observado o disposto no art. 209 Parágrafo único. Quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do art. 98, é também competente a Justiça da Infância e da Juventude para o fim de:

(...)

d) conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou materna, em relação ao exercício do poder familiar.

 

As leis locais de organização judiciária podem afastar a competência estabelecida pelo ECA?

Não. A competência das varas especializadas em direito de família decorre da delimitação da organização judiciária local, que não possui força normativa para afastar a competência instituída pelo ECA, que é lei federal.

Os regimentos internos e as leis locais de organização do poder judiciário determinaram a especialização das varas de acordo com os critérios previamente estabelecidos, a exemplo do tamanho da comarca, acervo processual, disponibilidade de servidores e magistrados, bem como por meio da regionalização de determinadas matérias. 

De todo modo, existindo a distribuição da competência na comarca por meio da especialização de varas e havendo juizado da infância e juventude, será deste a competência para julgar as questões disciplinadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, notadamente, aquelas que contenham pretensão baseada na discordância paterna ou materna no exercício do poder familiar cuja repercussão alcance o exercício de direitos pela criança ou adolescente.

É certo que, nas comarcas nas quais existam varas especializadas em direito de família, os juízos correspondentes detêm competência para processar e julgar ações de guarda, alimentos e demais questões atinentes às relações familiares. Todavia, tal competência não atinge as matérias do juizado da infância e da juventude, tendo em vista que estas estão previstas em lei federal e aquelas decorrem da delimitação da organização judiciária local, a qual não possui força normativa a afastar a competência instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.

Registra-se que o pedido de suprimento de autorização paterna ou materna para viagem internacional não se confunde com litígios sobre guarda ou visitas, mas representa providência específica de jurisdição voluntária vinculada diretamente à proteção e ao exercício de direitos da criança e do adolescente, razão pela qual a competência é do juizado da infância e da juventude, em caráter absoluto.

A própria estrutura judiciária revela a atenção à opção legislativa, ao instituir juizados da infância e da juventude inclusive em diversos aeroportos e rodoviárias, a fim de assegurar solução célere e efetiva para demandas dessa natureza, garantindo, de modo imediato, a salvaguarda dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes em hipóteses de deslocamento internacional e nacional, na forma prevista nos arts. 83 a 85 do ECA.

Ainda que se afirme inexistir situação de risco ou ameaça direta à integridade física ou psicológica da criança, tal circunstância não é suficiente para afastar a competência do juizado da infância e da juventude. A negativa de um dos genitores em autorizar a viagem internacional, quando não fundada em justificativa plausível, configura óbice ao exercício de direitos fundamentais da criança, como o direito à convivência familiar, ao lazer, à cultura e à liberdade de locomoção.

 

Em suma:

A ausência de situação de risco nos pedidos de suprimento de autorização paterna/materna para viagem internacional de criança/adolescente não afasta a competência do juizado da infância e juventude para processar e julgar. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.062.293-DF, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 16/9/2025 (Info 868).


sábado, 22 de novembro de 2025

Sentença trabalhista só pode ser executada contra empresa do grupo que integrou a fase de conhecimento, salvo sucessão ou abuso de personalidade com observância do incidente de desconsideração

Imagine a seguinte situação hipotética:

João trabalhou por três anos como motorista de caminhão para a empresa Transporte Rápido Ltda.

Ele foi demitido, sem justa causa, mas não recebeu as verbas rescisórias devidas.

Diante disso, ajuizou uma reclamação trabalhista contra a empresa Transporte Rápido Ltda.

O juiz julgou o pedido procedente e condenou a empresa Transporte Rápido Ltda ao pagamento de R$ 100.000,00 em verbas trabalhistas. A sentença transitou em julgado.

 

Cumprimento de sentença trabalhista

João pediu o cumprimento da sentença trabalhista.

Constatou-se, contudo, que a Transporte Rápido Ltda. não possuía bens em seu nome para satisfazer a dívida.

Foi então que o advogado de João descobriu que a Transporte Rápido Ltda. fazia parte de um grupo econômico controlado pela logística Alvorada S.A.

Havia evidências de que essas empresas compartilhavam o mesmo endereço, tinham sócios em comum, usavam os mesmos equipamentos e recursos, e atuavam de forma coordenada.

Diante disso, João pediu a execução fosse redirecionada contra a Logística Alvorada S.A. alegando que ele e a executada integravam o mesmo grupo econômico.

Vale ressaltar, contudo, que a Logística Alvorada S.A não participou da fase de conhecimento do processo.

O juiz do trabalho acolheu o pedido, determinando, de forma direta, a inclusão da Logística Alvorada S.A. no polo passivo da execução e a penhora de seus bens, sem instaurar incidente de desconsideração da personalidade jurídica ou oportunizar prazo para defesa.

O magistrado fundamentou sua decisão no art. 2º, § 2º da CLT, que prevê a responsabilidade solidária entre empresas de um mesmo grupo econômico:

Art. 2º (...)

§ 2º Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)

 

A Logística Alvorada S.A. só foi intimada depois que seus bens já haviam sido penhorados.

A empresa apresentou então embargos à execução alegando que nunca participou do processo de conhecimento e que não teve oportunidade de se defender antes da constrição de seu patrimônio. Argumentou ainda que não ficou caracterizado nenhum abuso da personalidade jurídica, havendo apenas vínculos societários legítimos entre as empresas.

Os embargos foram rejeitados pelo juiz e o Tribunal Regional do Trabalho manteve a decisão, entendendo que não era necessário instaurar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, pois a responsabilidade solidária no grupo econômico trabalhista já decorreria automaticamente da lei.

A Logística Alvorada S.A. recorreu ao TST, que também manteve o entendimento.

Por fim, a empresa interpôs recurso extraordinário ao STF, alegando violação aos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

O caso hipotético acima trata de uma situação muito comum na Justiça do Trabalho: um trabalhador ganha uma ação contra seu ex-empregador, mas quando vai executar a sentença trabalhista, descobre que a empresa que figurou na fase de conhecimento não tem patrimônio suficiente. Aí surge a tentativa de incluir, na fase de execução, outras empresas do mesmo grupo econômico para pagar a dívida.

 

Isso é possível? É possível incluir uma empresa na execução, bloquear seus bens, sem que ela tenha participado do processo desde o início e sem dar a ela uma chance prévia de se defender? Foi correta a decisão da Justiça do Trabalho?

NÃO.

O processo trabalhista tem suas particularidades. Ele existe para proteger o trabalhador, que geralmente é a parte mais fraca da relação de emprego. Os direitos trabalhistas têm natureza alimentar e, por isso, a tramitação precisa ser mais célere e efetiva.

Por conta disso, o princípio da razoável duração do processo é muito importante no âmbito trabalhista, ou seja, o processo precisa ter uma rápida tramitação para que o trabalhador não fique anos esperando para receber seus direitos.

Isso, contudo, não significa que a celeridade possa eliminar a necessidade de observância das outras garantias constitucionais. A celeridade não é um valor absoluto que pode passar por cima do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

 

A teoria do empregador único e a responsabilidade solidária no âmbito do grupo econômico

A CLT, em seu art. 2º, §§ 2º e 3º, reconhece expressamente a responsabilidade solidária das empresas que integram um grupo econômico pelas obrigações trabalhistas assumidas por qualquer uma delas. Essa previsão normativa dá suporte à chamada teoria do empregador único, segundo a qual o conjunto de empresas integrantes do grupo é tratado, para fins trabalhistas, como se fosse um único empregador.

 

Jurisprudência trabalhista e conflito com garantias constitucionais

A Súmula nº 205 do TST dizia o seguinte: “O responsável solidário, integrante do grupo econômico que não participou da relação processual como reclamado e que, portanto, não consta no título executivo judicial como devedor, não pode ser sujeito passivo na execução.”

Ocorre que esse enunciado foi cancelado pelo TST em 2003. A partir daí, consolidou-se na prática da Justiça do Trabalho a inclusão de empresas no polo passivo da execução com fundamento direto na solidariedade prevista no art. 2º, § 2º, da CLT, sem necessidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

O STF entendeu, contudo, que esse entendimento da Justiça do Trabalho afronta as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

A inclusão de nova pessoa jurídica na execução exige:

1) participação prévia dessa empresa no processo;

2) oportunidade para se defender e produzir provas;

3) possibilidade de discutir os fundamentos da responsabilização solidária.

 

Introdução do incidente de desconsideração no processo do trabalho

Com a Reforma Trabalhista, o art. 855-A foi incluído na CLT, reconhecendo expressamente a aplicabilidade, no processo trabalhista, do incidente de desconsideração da personalidade jurídica disciplinado nos arts. 133 a 137 do CPC/2015:

Art. 855-A. Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 - Código de Processo Civil.

§ 1º Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente:

I - na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do § 1o do art. 893 desta Consolidação;

II - na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia do juízo;

III - cabe agravo interno se proferida pelo relator em incidente instaurado originariamente no tribunal.

§ 2º A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

 

Vale ressaltar, contudo, que o art. 855-A da CLT, incluído pela Lei nº 13.467/2017, não criou um novo mecanismo, mas apenas deixou clara a sua obrigatoriedade, que já decorria da aplicação subsidiária do CPC. Assim, mesmo antes da Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017), a instauração do incidente já era necessária para assegurar o devido processo legal.

 

A necessidade do abuso da personalidade jurídica

O STF foi além e estabeleceu que não basta demonstrar que existe grupo econômico. É preciso também demonstrar abuso da personalidade jurídica, conforme o art. 50 do Código Civil.

Por quê? Porque a personalidade jurídica (o fato de a empresa ter existência própria, separada de seus sócios) é uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento econômico. Ela protege o patrimônio pessoal dos empresários e incentiva as pessoas a assumirem riscos ao abrir negócios.

A desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional, que só deve acontecer quando há abuso. O art. 50 do Código Civil diz que há abuso quando existe:

• Desvio de finalidade: usar a empresa para fins ilícitos ou contrários ao contrato social;

• Confusão patrimonial: misturar o patrimônio da empresa com o dos sócios ou de outras empresas.

 

Exemplos de abuso:

• Empresas do grupo que compartilham o mesmo endereço, mesmos equipamentos e recursos;

• Sócios "laranjas" que só existem no papel;

• Transferência fraudulenta de bens entre empresas para fugir de credores;

• Subcapitalização deliberada (deixar a empresa sem patrimônio de propósito).

 

É preciso harmonizar os princípios constitucionais: de um lado, valorizar o trabalho e proteger o trabalhador; de outro, garantir a livre iniciativa e a segurança jurídica para as empresas.

Permitir que qualquer empresa de um grupo seja incluída na execução apenas por fazer parte do grupo, sem demonstrar abuso, criaria enorme insegurança jurídica e prejudicaria o ambiente de negócios, o que, no fim, prejudica também os trabalhadores (menos empresas, menos empregos).

 

Em suma:

O cumprimento de sentença trabalhista pode ser promovido somente contra empresa do grupo econômico que participou da fase de conhecimento do processo, exceto nas hipóteses de sucessão empresarial (art. 448-A, CLT) ou de abuso de personalidade jurídica (art. 50, CC), situações excepcionais em que deverá ser observado o procedimento de desconsideração da personalidade jurídica (art. 855-A, CLT e arts. 133 a 137, CPC).

STF. Plenário. RE 1.387.795/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/10/2025 (Repercussão Geral – Tema 1.232) (Info 1194).

 

TEMA 1232

É possível redirecionar a execução trabalhista para empresa do mesmo grupo econômico que não participou da fase de conhecimento, desde que observadas garantias constitucionais mínimas?

Regra geral:

O cumprimento de sentença não pode ser promovido contra empresa que não participou da fase de conhecimento.

Assim, o reclamante deve indicar, já na petição inicial, todas as pessoas jurídicas que pretende responsabilizar solidariamente, inclusive aquelas integrantes de grupo econômico (art. 2º, §§ 2º e 3º, CLT), devendo demonstrar concretamente os requisitos legais dessa solidariedade.

Exceções:

O redirecionamento da execução é admitido somente em duas situações:

1) Sucessão empresarial (art. 448-A da CLT);

2) Abuso da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil).

 

Nessas hipóteses, deve-se observar o procedimento formal de desconsideração da personalidade jurídica previsto no art. 855-A da CLT e nos arts. 133 a 137 do CPC.

Aplicação temporal:

Em regra, o entendimento acima também vale para execuções anteriores à Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017).

O entendimento acima não se aplica em caso de:

• processos já transitados em julgado;

• créditos já pagos;

• execuções encerradas ou arquivadas definitivamente.

 

Tese fixada:

1 - O cumprimento da sentença trabalhista não poderá ser promovido em face de empresa que não tiver participado da fase de conhecimento do processo, devendo o reclamante indicar na petição inicial as pessoas jurídicas corresponsáveis solidárias contra as quais pretende direcionar a execução de eventual título judicial, inclusive nas hipóteses de grupo econômico (art. 2°, §§ 2° e 3°, da CLT), demonstrando concretamente, nesta hipótese, a presença dos requisitos legais;

2 - Admite-se, excepcionalmente, o redirecionamento da execução trabalhista ao terceiro que não participou do processo de conhecimento nas hipóteses de sucessão empresarial (art. 448-A da CLT) e abuso da personalidade jurídica (art. 50 do CC), observado o procedimento previsto no art. 855-A da CLT e nos arts. 133 a 137 do CPC;

3 - Aplica-se tal procedimento mesmo aos redirecionamentos operados antes da Reforma Trabalhista de 2017, ressalvada a indiscutibilidade relativa aos casos já transitados em julgado, aos créditos já satisfeitos e às execuções findas ou definitivamente arquivadas.

STF. Plenário. RE 1.387.795/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/10/2025 (Repercussão Geral – Tema 1.232) (Info 1194).

 

Voltando ao caso concreto:

Aplicando tudo isso ao caso concreto, o STF constatou que:

• a empresa recorrente (Logística Alvorada S.A.) foi incluída na execução sem qualquer procedimento prévio;

• não foi instaurado incidente de desconsideração;

• a empresa só pôde se manifestar depois, em embargos à execução, com todas as limitações dessa via;

• isso violou flagrantemente o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

 

Por isso, o STF deu provimento ao recurso e excluiu a empresa do polo passivo da execução, anulando todos os atos executivos praticados contra ela.


sexta-feira, 21 de novembro de 2025

INFORMATIVO Comentado 868 (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

þ Baixar versão COMPLETA:



 



þ Baixar versão RESUMIDA:



 



Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 868 DO STJ


DIREITO ADMINISTRATIVO

SERVIDORES PÚBLICOS

§  Servidores do Poder Judiciário da União lotados no setor de transporte que exerçam atividades relacionadas à segurança têm direito à Gratificação de Atividade de Segurança (GAS), mesmo que não estejam formalmente enquadrados na especialidade de segurança.

 

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

COMPETÊNCIA

§  Compete ao juizado da infância e juventude decidir sobre o pedido de suprimento judicial de autorização para viagem internacional, ainda que ausente situação de risco.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

PROVAS

§  A organização religiosa pode se recusar a fornecer os documentos do procedimento disciplinar eclesiástico que foi instaurado contra a autoridade religiosa (ex: padre).

 

OUTROS TEMAS

§  O prazo para agravo de instrumento contra decisão de saneamento do processo inicia-se apenas após a estabilização do ato, que ocorre com a decisão sobre pedido de esclarecimentos ou com o transcurso do prazo de 5 dias previsto no art. 357, § 1º, do CPC.

 

RECURSOS

§  Recursos interpostos antes da Lei 14.939/2024 podem ter feriados locais comprovados posteriormente para demonstrar tempestividade, aplicando-se a lei nova aos processos pendentes.

 

JUIZADOS ESPECIAIS

§  É cabível mandado de segurança, a ser impetrado no TJ ou TRF, com a finalidade de promover o controle da competência dos Juizados Especiais; no entanto, não será cabível o MS se já tiver havido o trânsito em julgado.

 

DIREITO PENAL

CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO

§  Roubo praticado mediante uma única conduta contra vítimas distintas, ainda que da mesma família, configura concurso formal de crimes.

 

LEI DE DROGAS

§  Para o reconhecimento da causa de diminuição de pena por colaboração premiada no tráfico de drogas, é necessário o cumprimento cumulativo dos requisitos previstos no art. 41 da Lei 11.343/2006 (identificação de coautores e a apreensão de drogas).

§  A perda da propriedade rural em favor da União pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes deve se compatibilizar com a boa-fé de terceiros, o princípio da intranscendência da pena e outros valores constitucionais relevantes.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

PROVAS

§  A atuação de ofício do juiz na fase investigativa para deferir busca e apreensão domiciliar e quebra de sigilo telemático, sem provocação dos órgãos de persecução penal, viola o sistema acusatório.

§  O juiz pode restringir o acesso da defesa aos e-mails da vítima, permitindo o acesso apenas aos e-mails que os peritos analisaram e consideraram relacionados com o caso.


Servidores efetivos do Poder Judiciário podem ser nomeados para cargos comissionados dentro do Poder Judiciário, mesmo sendo parentes de magistrados, desde que não haja subordinação direta e sejam observados requisitos de qualificação

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

A Lei estadual nº 7.451/1991, de São Paulo, criou os cargos de Assistente Jurídico do Tribunal de Justiça do Estado, que atuam assessorando os Desembargadores.

Trata-se de cargo em comissão, de livre nomeação e exoneração pelo Presidente do TJ/SP.

O art. 4º, parágrafo único, dessa Lei prevê que não pode ser nomeado para o cargo de Assistente Jurídico quem for cônjuge ou parente de qualquer integrante do Poder Judiciário paulista.

Veja a redação do dispositivo:

Artigo 4º O Assistente Jurídico será nomeado em comissão pelo Presidente do Tribunal de Justiça, mediante indicação do Desembargador interessado.

Parágrafo único - É vedada a nomeação de cônjuge, de afim e de parente em linha reta ou colateral, até o 3º grau, inclusive, de qualquer dos integrantes do Poder Judiciário do Estado de São Paulo.

 

ADI

O Procurador-Geral da República (PGR) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra esse referido dispositivo.

O PGR pediu que o STF declarasse a sua inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, a fim de excluir da vedação os servidores públicos efetivos da carreira judiciária, admitidos por concurso público, desde que não haja subordinação ao magistrado de quem decorre a incompatibilidade.

O autor alegou que:

• a proibição genérica fere o princípio da isonomia, ao tratar de forma igual situações desiguais;

• a vedação também afronta o princípio da acessibilidade aos cargos públicos, previsto no art. 37, I, da Constituição Federal;

• servidores efetivos, aprovados em concurso público, não deveriam ser alcançados pela proibição, exceto quando o cargo em comissão estivesse subordinado ao magistrado de quem decorre a relação de parentesco;

• a norma estadual contraria a Lei federal nº 9.421/1996 e o art. 355, § 8º, do Regimento Interno do STF, que reconhecem a possibilidade de nomeação de servidores efetivos para cargos comissionados mesmo quando parentes, desde que atendidos critérios técnicos e de não subordinação direta;

• a norma, ao vedar de forma absoluta a nomeação de parentes mesmo qualificados, extrapola a vedação ao nepotismo, afastando, sem justificativa constitucional suficiente, servidores efetivos que tenham passado por processo seletivo objetivo.

 

O STF concordou com os argumentos invocados pelo PGR?

SIM.

O STF, por maioria, julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.451/1991 do Estado de São Paulo.

O STF disse que não está sujeito a essa proibição o servidor ocupante de cargo de provimento efetivo, admitido por concurso público, desde que observadas:

i) a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo de origem

ii) a qualificação profissional do servidor e

iii) a complexidade inerente ao cargo de assistente jurídico.

 

É vedada, em todo caso, a nomeação quando o cargo for subordinado ao membro do Poder Judiciário determinante da situação de incompatibilidade.

 

Vamos entender com calma.

 

O art. 4º, parágrafo único, da Lei estadual tem um propósito legítimo: combater o nepotismo, prática que fere os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa, além de não ser republicana.

Nomeações fundadas em vínculos pessoais ou familiares podem configurar confusão entre o público e o privado, comprometendo a ética, a eficiência e a legitimidade da administração pública.

O STF já consolidou o entendimento de que a vedação ao nepotismo decorre diretamente da Constituição Federal, não sendo necessária lei específica para proibi-lo. Esse entendimento está cristalizado na Súmula Vinculante nº 13, que proíbe a nomeação de cônjuges, companheiros ou parentes até o terceiro grau para cargos em comissão ou funções gratificadas em toda a Administração Pública:

Súmula vinculante 13-STF: A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na Administração Pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.

 

Contudo, a vedação absoluta prevista na lei paulista viola a Constituição Federal quando aplicada indistintamente a servidores efetivos do Poder Judiciário, aprovados por concurso público. Isso porque, conforme o art. 37, I, da Constituição Federal, os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros que preencham os requisitos legais, sendo o concurso público a forma legítima de aferir essa qualificação.

Há uma diferença muito grande entre a nomeação de um parente sem qualquer vínculo com a Administração Pública (caso clássico de nepotismo) e aquela de um servidor de carreira, aprovado por concurso e tecnicamente apto para a função.

Se o indivíduo é servidor de carreira ele pode ser nomeado para o cargo de Assistente Jurídico mesmo sendo cônjuge ou parente de algum membro do Poder Judiciário, desde que se verifiquem três requisitos:

1) não pode haver subordinação direta do servidor ao magistrado com quem possua vínculo familiar ou afetivo, pois isso sim poderia configurar favorecimento e comprometer a imparcialidade e a ética na administração. Ex: não se pode nomear o servidor efetivo para ser Assistente Jurídico lotado no gabinete da sua mãe, que é Desembargadora. Por outro lado, se o filho de um Desembargador é servidor efetivo do Tribunal, ele pode ser nomeado Assistente Jurídico de outro Desembargador completamente diferente.

2) deve existir compatibilidade entre o grau de escolaridade exigido no cargo efetivo e o cargo comissionado. Ex: não se pode nomear o servidor concursado para o cargo de motorista do TJ para o cargo em comissão de Assistente Jurídico.

3) o servidor deve possuir qualificação profissional e capacidade técnica compatíveis com a complexidade das atribuições do cargo comissionado. Ex: não se pode nomear o servidor efetivo que não é bacharel em Direito para o cargo de Assistente Jurídico.

 

A Resolução n. 7/2005 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já prevê essa exceção, permitindo a nomeação de servidores efetivos, desde que observadas as mesmas condições (qualificação, compatibilidade e ausência de subordinação):

Art. 2º Constituem práticas de nepotismo, dentre outras:

I - o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados;

(...)

§ 1º Ficam excepcionadas, nas hipóteses dos incisos I, II e III deste artigo, as nomeações ou designações de servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo das carreiras judiciárias, admitidos por concurso público, observada a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo de origem, a qualificação profissional do servidor e a complexidade inerente ao cargo em comissão a ser exercido, e que o outro servidor também seja titular de cargo de provimento efetivo das carreiras jurídicas, vedada, em qualquer caso a nomeação ou designação para servir subordinado ao magistrado ou servidor determinante da incompatibilidade. (Redação dada pela Resolução nº 181, de 17.10.2013)

 

Essa resolução, inclusive, foi declarada constitucional no julgamento da ADC 12:

Os condicionamentos impostos pela Resolução nº 7/2005 do CNJ, que disciplina o exercício de cargos, empregos e funções por parentes, cônjuges e companheiros de magistrados e servidores, não atentam contra a liberdade de prover e desprover cargos em comissão e funções de confiança, pois concretizam os princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade previstos na Constituição de 1988.

O CNJ, como órgão do Poder Judiciário, possui competência para expedir atos regulamentares no âmbito administrativo, não havendo violação aos princípios da separação dos poderes e do federalismo.

A resolução é compatível com a Constituição Federal e tem aplicação imediata em todo o Poder Judiciário nacional.

STF. Plenário. ADC 12, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 18/12/2009.

 

O STF concluiu que a vedação absoluta contida na lei paulista restringe indevidamente o acesso de pessoas qualificadas aos cargos em comissão, especialmente quando essas pessoas já demonstraram sua capacitação técnica ao serem aprovadas em concurso público. Essa restrição excessiva viola o direito constitucional de acesso aos cargos públicos.

Diante disso, o STF utilizou a técnica da “declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução de texto”. Essa técnica permite que o STF declare inconstitucional apenas uma das interpretações possíveis da lei, mantendo o texto original. Assim, a lei continua valendo, mas não pode mais ser interpretada de forma a proibir absolutamente a nomeação de servidores efetivos.

 

Em suma:

É constitucional a nomeação de servidor público efetivo de carreira judiciária, admitido via concurso público, para o cargo em comissão de assistente jurídico de desembargador — ainda que o servidor seja cônjuge, afim ou parente de algum integrante do órgão —, desde que:

i) inexista subordinação direta do servidor ao magistrado com quem possui laços prévios; e

ii) sejam observadas a compatibilidade do grau de escolaridade do cargo de origem, a qualificação profissional do servidor e a complexidade inerente ao cargo em comissão a ser exercido.

Essas ressalvas visam prestigiar a efetividade do serviço prestado e maximizar a acessibilidade a cargo público.

STF. Plenário. ADI 3.496/SP, Rel. Min. Nunes Marques, julgado em 13/10/2025 (Info 1194)


quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Candidato aprovado dentro do número de vagas pode deixar de ser nomeado se o cargo for extinto, dentro do prazo de prazo de validade do concurso, em razão da superação do limite prudencial de gastos com pessoal

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi aprovado em 2º lugar no concurso público realizado pela Prefeitura de Belém (PA) para o cargo de soldador. O edital previa a existência de 6 vagas.

O concurso foi homologado em 10/05/2013 e tinha validade de 2 (dois) anos, podendo ser prorrogado por igual período. Como não houve prorrogação, o prazo final para a nomeação dos aprovados seria até 10/05/2015.

João não foi nomeado dentro desse prazo.

Diante disso, em 05/08/2015, ele ajuizou ação pedindo a sua nomeação, sob o argumento de que foi aprovado dentro do número de vagas e que, portanto, tinha direito subjetivo à nomeação, conforme entendimento do STF firmado no Tema 161:

O candidato aprovado em concurso público dentro do número de vagas previsto no edital possui direito subjetivo à nomeação.

STF. Plenário. RE 598.099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/08/2011 (Repercussão Geral - Tema 161).

 

O juiz julgou o pedido procedente, condenando o Município a nomear João.

A Fazenda Pública interpôs apelação argumentando que:

• estava enfrentando grave crise financeira, com redução significativa de receitas;

• o percentual de gastos com pessoal já estava próximo do limite prudencial estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (51,30% da receita corrente líquida);

• havia editado a Lei Municipal nº 9.203/2016, que extinguiu diversos cargos, incluindo o de soldador, como forma de reestruturar o quadro de servidores e adequar as despesas aos limites legais;

• a extinção do cargo decorreu de cumprimento de Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministério Público em 13/02/2015.

 

O Tribunal de Justiça do Pará manteve a sentença favorável a João, alegando que:

• João foi aprovado dentro do número de vagas;

• a Lei nº 9.203/2016, que extinguiu o cargo, foi criada após a homologação do concurso e após o ajuizamento da ação;

• tratava-se de fato superveniente que não tinha o condão de elidir (suprimir) o direito de João;

• as limitações orçamentárias previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal não podem servir de fundamento para o não cumprimento de direito subjetivo.

 

O Município interpôs então recurso extraordinário insistindo nos argumentos já apresentados.

 

O que o STF decidiu?

Vamos entender com calma.

 

Em regra, candidato aprovado dentro do número de vagas possui direito subjetivo à nomeação

O candidato aprovado dentro do número de vagas possui, em regra, direito subjetivo à nomeação.

Destaco novamente o Tema 161 do STF que afirma esse direito:

O candidato aprovado em concurso público dentro do número de vagas previsto no edital possui direito subjetivo à nomeação.

STF. Plenário. RE 598.099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/08/2011 (Repercussão Geral - Tema 161).

 

A força normativa do princípio do concurso público decorre da conjugação entre os princípios da segurança jurídica e da boa-fé administrativa.

O dever de boa-fé impõe à Administração Pública o respeito incondicional às regras estabelecidas no edital, inclusive no que diz respeito à previsão das vagas oferecidas. Esse dever também resulta da observância necessária e inafastável ao princípio da segurança jurídica, enquanto fundamento essencial do Estado de Direito.

Nesse contexto, a segurança jurídica manifesta-se como princípio de proteção à confiança legítima.

Quando a Administração Pública publica um edital de concurso, convocando os cidadãos a participarem de um processo seletivo para o provimento de determinadas vagas no serviço público, cria-se uma expectativa de que seu comportamento se guiará estritamente pelas regras estabelecidas nesse edital.

Os candidatos que decidem se inscrever e participar do certame depositam sua confiança na conduta do Estado administrador. Este, por sua vez, deve pautar-se por uma atuação responsável, obedecendo às normas previamente fixadas e adotando o princípio da segurança jurídica como parâmetro de comportamento.

Em outras palavras, a conduta da Administração Pública durante todas as etapas do concurso público deve observar a boa-fé, tanto em seu aspecto objetivo (de atuação leal, transparente e previsível) quanto no aspecto subjetivo (de respeito à confiança que os administrados nela depositam).

No exato momento em que transcorre o prazo de validade do concurso surge o direito adquirido do candidato à nomeação. Até este momento o direito subjetivo à nomeação permanece em estado de latência. Nesse sentido:

Enquanto não expirado o prazo de validade do concurso público, o candidato aprovado dentro do número de vagas possui mera expectativa de direito à nomeação, sujeita à discricionariedade da Administração Pública, salvo em caso de preterição comprovada.

STJ. 1ª Turma. AgInt no RMS 63.207/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 21/9/2020.

 

A regra acima exposta (Tema 161) é absoluta ou existem exceções?

Existem exceções. Não é absoluta.

No julgamento do RE 598.099 (Tema 161), o STF afirmou que existem algumas situações excepcionalíssimas nas quais o candidato não será nomeado mesmo tendo sido aprovado dentro do número de vagas. Veja:

Quando se afirma que a Administração Pública tem a obrigação de nomear os aprovados dentro do número de vagas previsto no edital, deve-se levar em consideração a possibilidade de situações excepcionalíssimas que justifiquem soluções diferenciadas, devidamente motivadas de acordo com o interesse público.

Não se pode ignorar que determinadas situações excepcionais podem exigir a recusa da Administração Pública de nomear novos servidores.

Para justificar o excepcionalíssimo não cumprimento do dever de nomeação por parte da Administração Pública, é necessário que a situação justificadora seja dotada das seguintes características:

a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma situação excepcional devem ser necessariamente posteriores à publicação do edital do certame público;

b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis à época da publicação do edital;

c) Gravidade: os acontecimentos extraordinários e imprevisíveis devem ser extremamente graves, implicando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo impossibilidade de cumprimento efetivo das regras do edital;

d) Necessidade: a solução drástica e excepcional de não cumprimento do dever de nomeação deve ser extremamente necessária, de forma que a Administração somente pode adotar tal medida quando absolutamente não existirem outros meios menos gravosos para lidar com a situação excepcional e imprevisível.

De toda forma, a recusa de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas deve ser devidamente motivada e, dessa forma, passível de controle pelo Poder Judiciário.

STF. Plenário. RE 598099, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10/08/2011.

 

Extrapolação do limite prudencial de gastos com pessoal (arts. 19 e 20, LRF/2000) como justificativa para não nomear

A Lei Complementar nº 101/2000 estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Ela é popularmente conhecida como “Lei de Responsabilidade Fiscal”.

A LRF (LC 101/2000) foi editada com fundamento no art. 163 da CF/88:

Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo e pensionistas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não pode exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

 

A LRF estabelece, nos arts. 18 e seguintes, os limites de gastos com pessoal para cada ente da Federação, em termos globais e setoriais, bem como as correspondentes exceções.

Além disso, a Lei criou medidas de controle das despesas caso esses gastos se aproximem ou ultrapassem os tetos impostos.

No art. 19 da LRF são previstas as despesas totais com pessoal da União, dos Estados e dos Municípios:

Art. 19. Para os fins do disposto no caput do art. 169 da Constituição, a despesa total com pessoal, em cada período de apuração e em cada ente da Federação, não poderá exceder os percentuais da receita corrente líquida, a seguir discriminados:

I - União: 50% (cinquenta por cento);

II - Estados: 60% (sessenta por cento);

III - Municípios: 60% (sessenta por cento).

(…)

 

No art. 20, por sua vez, estão elencados os limites globais de gastos com pessoal de cada Poder.

 

Mas afinal de contas, o que é esse limite prudencial da LRF?

O limite prudencial é aquele previsto no parágrafo único do art. 22 da LRF e que, se for ultrapassado, impõe uma série de vedações:

Art. 22. A verificação do cumprimento dos limites estabelecidos nos arts. 19 e 20 será realizada ao final de cada quadrimestre.

Parágrafo único. Se a despesa total com pessoal exceder a 95% (noventa e cinco por cento) do limite, são vedados ao Poder ou órgão referido no art. 20 que houver incorrido no excesso:

I - concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a qualquer título, salvo os derivados de sentença judicial ou de determinação legal ou contratual, ressalvada a revisão prevista no inciso X do art. 37 da Constituição;

II - criação de cargo, emprego ou função;

III - alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV - provimento de cargo público, admissão ou contratação de pessoal a qualquer título, ressalvada a reposição decorrente de aposentadoria ou falecimento de servidores das áreas de educação, saúde e segurança;

V - contratação de hora extra, salvo no caso do disposto no inciso II do § 6º do art. 57 da Constituição e as situações previstas na lei de diretrizes orçamentárias.

 

Assim, a LC 101/2000 determina que seja verificado se a despesa de cada Poder ou órgão com pessoal (limite específico) se mantém inferior a 95% do seu limite. Isso porque, em caso de excesso, há um conjunto de vedações que deve ser observado exclusivamente pelo Poder ou pelo órgão que houver incorrido no excesso, como visto no art. 22 da LC 101/2000.

 

Márcio, você falou sobre a LRF e o limite prudencial, mas não respondeu a pergunta: o poder público pode extinguir cargos que foram oferecidos no concurso alegando que já atingiu o limite de gastos com pessoal e, com isso, deixar de nomear candidatos aprovados dentro do número de vagas do concurso?

A Administração Pública pode deixar de nomear candidato aprovado dentro do número de vagas se:

• o cargo for extinto em razão da superação do limite prudencial de despesas com pessoal;

• a extinção do cargo ocorrer antes do término do prazo de validade do concurso;

• houver motivação expressa e adequada, com demonstração da superveniência, imprevisibilidade, gravidade e necessidade da situação excepcional; e

• a decisão administrativa estiver fundamentada no interesse público, sendo sujeita a controle jurisdicional.

 

Essa foi a tese fixada pelo STF no Tema 1164:

A superveniente extinção dos cargos oferecidos em edital de concurso público em razão da superação do limite prudencial de gastos com pessoal, previsto em lei complementar regulamentadora do art. 169 da Constituição Federal, desde que anterior ao término do prazo de validade do concurso e devidamente motivada, justifica a mitigação do direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado dentro do número de vagas.

STF. Plenário. RE 1.316.010/PA, Rel. Min. Flávio Dino, julgado em 13/10/2025 (Repercussão Geral – Tema 1.164) (Info 1194).

 

O cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal é uma obrigação constitucional e a extrapolação desses limites pode, em tese, configurar uma situação excepcional que justifique a não nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas. Afinal, como observou o Ministro Flávio Dino, seria contraditório reconhecer um direito subjetivo de nomear quando a satisfação desse direito implica violação da ordem jurídica (violação da responsabilidade fiscal).

Para o STF, se a Administração está realmente impedida pela Lei de Responsabilidade Fiscal de realizar novas contratações, e se essa situação é superveniente, imprevisível, grave e necessária, então os quatro requisitos da excepcionalidade estão presentes.

Além disso, o STF possui jurisprudência consolidada no sentido de que o estágio probatório não protege o servidor público contra eventual extinção do cargo, conforme se extrai da Súmula 22:

Súmula 22: o estágio probatório não protege o funcionário contra a extinção do cargo.

 

Essa súmula é antiga (ela é de 1963), mas continua sendo aplicada ainda hoje:

O estágio probatório não protege o servidor público da eventual extinção do cargo, nos termos do que dispõe a Súmula 22 do STF.

STF. 2ª Turma. ARE 1309402 ED-AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 20/9/2021.

 

Portanto, considerando que o STF reconhece a possibilidade de extinção de cargo público mesmo quando este se encontra ocupado por servidor em estágio probatório, com ainda mais razão deve-se admitir a possibilidade de extinção do cargo antes de seu efetivo provimento. Essa extinção, contudo, deve sempre estar fundamentada na salvaguarda do interesse público.

Por outro lado, a possibilidade de restrição ao direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em concurso público (dentro do número de vagas previsto no edital) em razão da extinção do cargo ou do atingimento do limite prudencial de despesas com pessoal, deve ser admitida apenas com a observância de parâmetros que coíbam abusos.

 

No caso concreto, o STF concordou com o Município de Belém (PA)?

Não, mas por conta de uma peculiaridade do caso concreto.

A extinção do cargo público para o qual João foi aprovado (soldador) somente ocorreu depois do fim do prazo de validade do concurso. Conforme vimos na tese fixada pelo STF, a extinção do cargo deve acontecer antes do término de validade do concurso. Isso porque se o concurso expirar o prazo sem que o candidato aprovado tenha sido nomeado, neste instante, surge o direito adquirido do candidato a ser nomeado.


Dizer o Direito!