Dizer o Direito

sábado, 4 de outubro de 2025

Embriaguez ao volante e lesão corporal culposa configuram concurso formal ou material?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João saiu de uma confraternização na casa de amigos após ingerir várias doses de bebida alcoólica.

Mesmo embriagado, decidiu assumir a direção de seu carro e seguir para casa.

No momento em que ligou o veículo e começou a conduzi-lo pelas ruas da cidade, já estava configurado o crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB), pois assumiu a direção em estado alterado, independentemente de causar qualquer acidente:

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 

Alguns minutos depois, ao chegar a um cruzamento, João não respeitou a placa de “PARE” e avançou sem nenhum cuidado colidindo com outro carro. Em razão do impacto, os ocupantes do veículo atingido sofreram lesões corporais culposas (art. 303 do CTB). Esse segundo crime se consumou com o resultado lesivo nas vítimas:

Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:

Penas - detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

 

O juiz, contudo, entendeu que, como os dois delitos decorreram de uma “mesma ação” (dirigir embriagado e causar acidente), haveria concurso formal, ou seja, uma só conduta gerando dois crimes:

Concurso formal

Art. 70. Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Parágrafo único. Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.

 

O Ministério Público recorreu ao STJ, sustentando que se tratava de concurso material (art. 69 do CP), pois havia dois crimes autônomos:

• um consumado no momento em que João começou a dirigir embriagado;

• e outro, apenas depois, com a colisão que feriu as vítimas.

 

Concurso material

 Art. 69 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela

 

O STJ concordou com os argumentos do MP?

SIM.

Os crimes de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor possuem momentos consumativos distintos e tutelam bens jurídicos diversos:

Embriaguez ao volante

(art. 306 do CTB)

Lesão corporal culposa na direção do veículo automotor (art. 303 do CTB)

Consuma-se no momento em que o agente, após a ingestão de bebida alcoólica, assume a direção do veículo automotor com capacidade psicomotora alterada.

Consuma-se quando efetivamente ocorre a lesão corporal na vítima, em decorrência de conduta culposa do agente na direção do veículo automotor.

Trata-se de crime de perigo abstrato que se perfaz com a simples condução do veículo em estado de embriaguez, independentemente da ocorrência de qualquer resultado lesivo.

É um crime de resultado que exige a efetiva ofensa à integridade física de terceiro.

 

Dessa forma, no presente caso, o réu, ao ingerir bebida alcoólica e assumir a direção do veículo, consumou previamente o delito de embriaguez ao volante. Posteriormente, em outro momento, ao avançar o cruzamento sem observar a placa de parada obrigatória, causou a colisão que resultou nas lesões corporais nas vítimas, consumando então o crime do art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro.

Esse é o entendimento consolidado no STJ:

Os crimes de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor e de embriaguez ao volante são autônomos, pois tutelam bens jurídicos diversos e possuem momentos consumativos distintos, razão pela qual incide o concurso material (art. 69 do CP).

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1.048.627/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 19/5/2020.

 

Tese de julgamento:

Os crimes de embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor configuram concurso material de crimes, pois possuem momentos consumativos distintos e tutelam bens jurídicos diversos.

STJ. 6ª Turma. REsp 2.198.744-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/8/2025 (Info 860).


sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A qualificadora da ‘paga ou promessa de recompensa’, prevista no inciso I do § 2º do art. 121 do CP, também se comunica ao MANDANTE do crime?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João ofereceu R$ 10 mil para Pedro matar Carlos, o que foi feito.

O Ministério Público denunciou João (mandante) e Pedro (executor) imputando a ambos o crime de homicídio qualificado, com base no art. 121, § 2º, I, do CP:

Homicídio qualificado

§ 2º Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

 

Esta espécie de homicídio é chamada pela doutrina de “homicídio mercenário” ou “por mandato remunerado”. O objetivo do legislador foi o de punir mais gravosamente a pessoa que comete o delito pela “cupidez, isto é, pela ambição desmedida, pelo desejo imoderado de riquezas.” (MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado. São Paulo: Método, 2014).

 

Tese da defesa do mandante

A defesa de João (mandante) alegou que não poderia ser a ele imputado o inciso I do § 2º do art. 121 do CP porque esta qualificadora (mediante paga ou promessa de recompensa) diz respeito ao executor, sendo uma circunstância subjetiva, de caráter pessoal, e que, portanto, não se comunica ao mandante. Invocou, para tanto, o art. 30 do CP:

Art. 30. Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.

 

A qualificadora da “paga ou promessa de recompensa” prevista no inciso I do § 2º do art. 121 do CP é aplicada, sem dúvidas, ao executor do crime. No entanto, indaga-se: essa qualificadora também se comunica ao MANDANTE do homicídio?

Não necessariamente.

 

A qualificadora do homicídio praticado mediante paga ou promessa de recompensa não se comunica automaticamente ao mandante do crime. 

STJ. 3ª Seção. EAREsp 1.322.867-SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 13/8/2025 (Info 860).

 

O art. 30 do Código Penal prevê que:

Art. 30. Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.

 

Desse modo, aquilo que é pessoal e subjetivo de um agente (como sua motivação, condição ou característica pessoal) não passa automaticamente para os demais coautores. Só se comunica se for algo elementar para a definição do crime. Exemplo: se um policial comete crime em razão do cargo, essa condição não se transfere ao comparsa que não é policial.

As circunstâncias relacionadas à motivação do crime constituem elemento acidental e, portanto, não se comunicam automaticamente aos coautores. Tal comunicação somente ocorrerá se restar comprovado que o corréu tinha ciência do motivo e com ele anuiu. Em palavras mais simples: os motivos do homicídio (ódio, vingança, paga, promessa etc.) têm caráter eminentemente subjetivo e, dessa forma, não se comunicam necessariamente entre os coautores. Só se aplica a outro coautor se ficar provado que ele sabia do motivo e concordou com ele.

Especificamente sobre a qualificadora da paga, essa circunstância se aplica somente aos executores diretos do homicídio, porque são eles que, propriamente, cometem o crime “mediante paga ou promessa de recompensa”. Como consequência, o mandante do delito não incorre na referida qualificadora, já que sua contribuição para o cometimento do homicídio em concurso de pessoas, na forma de autoria mediata, é a própria contratação e pagamento do assassinato.

Assim, embora o homicídio mercenário pressuponha concurso de agentes, o motivo torpe atribuído ao mandante não se transfere automaticamente aos executores.

Os motivos do mandante - pelo menos em tese - podem até ser nobres ou mesmo se enquadrar no privilégio do § 1º do art. 121, já que o autor intelectual não age motivado pela recompensa; somente o executor direto é quem, recebendo o pagamento ou a promessa, a tem como um dos motivos determinantes de sua conduta.

Existem situações em que o mandante, movido por relevante valor moral, contrata alguém para matar o estuprador de sua filha. Nesse caso, a motivação não se revela torpe, sendo incompatível com a qualificadora, que incidirá apenas sobre o executor, que recebeu a paga ou promessa de recompensa (STJ. 6ª Turma. REsp 1.209.852/PR, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 2/2/2016).

Há, assim, uma diferenciação relevante entre as condutas de mandante e executor: para o primeiro, a paga é a própria conduta que permite seu enquadramento no tipo penal enquanto coautor, na modalidade de autoria mediata; para o segundo, a paga é, efetivamente, o motivo (ou um dos motivos) pelo qual aderiu ao concurso de agentes e executou a ação nuclear típica (STJ. 5ª Turma. REsp 1.973.397/MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 15/9/2022).

Como se sabe, a qualificadora prevista no inciso I do art. 121, § 2º, do CP, diz respeito à motivação do agente, tendo a lei utilizado, ali, a técnica da interpretação analógica. Vale dizer: o homicídio é qualificado sempre que seu motivo for torpe, o que acontece exemplificativamente nas situações em que o crime é praticado mediante paga ou promessa de recompensa, ou por motivos assemelhados a estes.

Como a paga não é o motivo da conduta do mandante, mas sim o meio de sua exteriorização, referida qualificadora não se aplica a ele.

 

• Para o executor direto (quem mata): a paga é o motivo torpe da conduta. Ele age porque recebe ou espera receber algo. Então, nesse caso, aplica-se a qualificadora.

• Para o mandante (quem contrata): o pagamento não é o motivo pelo qual ele age, mas sim o meio de executar sua vontade (contratar alguém). Logo, a qualificadora não se aplica automaticamente a ele. Poderá ser aplicada a qualificadora para o mandante se ficar comprovado que ele também agiu por outro motivo torpe (ex.: mandou matar para ficar com a herança da vítima).

 

O direito penal é regido pelo princípio da legalidade, de modo que considerações sobre justiça e equidade, ponderáveis que sejam, não autorizam o julgador a suplantar eventuais deficiências do tipo penal.

Diante disso, a interpretação mais adequada é a de que, por não se tratar de elementar do tipo penal, a qualificadora da paga ou promessa de pagamento atribuída ao executor não se estende automaticamente ao mandante. Esta somente poderá incidir se restar demonstrado que o mandante agiu também por motivo pessoal torpe.

 

Exemplos práticos:

1) Pai contrata alguém para matar o estuprador da filha.

O mandante não responde por motivo torpe, pois sua motivação apresenta uma justificativa de valor moral (ainda que continue sendo ilícito).

O executor, por sua vez, responde com a qualificadora da paga, porque agiu pelo dinheiro.

 

2) Empresário contrata alguém para matar concorrente por disputa comercial.

Mandante: responde por motivo torpe, pois sua motivação é reprovável.

Executor: responde pela paga, porque agiu pela recompensa.

 

Algumas conclusões:

• a motivação é subjetiva e não se comunica automaticamente;

• a qualificadora da paga só atinge o executor direto;

• o mandante só será punido pela qualificadora se ele próprio agir por motivo torpe (não pelo simples fato de ter pago).


quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Nos processos eletrônicos, a sentença condenatória interrompe a prescrição quando é disponibilizada nos autos digitais, não quando publicada no Diário da Justiça

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina praticou um crime de trânsito em 01 de setembro de 2017.

Ela foi denunciada pelo Ministério Público.

A denúncia foi recebida pelo juiz em 2 de agosto de 2018.

O recebimento da denúncia interrompe a prescrição, na forma do art. 117, I, do Código Penal:

Art. 117 - O curso da prescrição interrompe-se:

I - pelo recebimento da denúncia ou da queixa;

(...)

 

Isso significa que, nesta data (recebimento da denúncia), o prazo prescricional recomeçou do zero.

Em 28 de julho de 2021, o juiz proferiu sentença condenando Regina a 9 meses de detenção.

Como o processo era eletrônico, a sentença foi assinada digitalmente pelo magistrado e automaticamente disponibilizada nos autos digitais nessa mesma data.

Contudo, a sentença só foi publicada no Diário da Justiça Eletrônico muito tempo depois, em 30 de junho de 2022.

 

Marcos temporais relevantes:

• Recebimento da denúncia: 2 de agosto de 2018.

• Disponibilização da sentença nos autos digitais: 28 de julho de 2021.

• Publicação no Diário da Justiça: 30 de junho de 2022.

• Prazo prescricional para a pena aplicada em concreto: 3 anos, nos termos do art. 109, VI, do CP.

 

A defesa de Regina, percebendo essa diferença de datas, alegou que havia ocorrido prescrição da pretensão punitiva retroativa.

Como entre o recebimento da denúncia (2 de agosto de 2018) e a publicação da sentença no Diário da Justiça (30 de junho de 2022) transcorreram quase 4 anos, teria ocorrido a prescrição.

A defesa sustentou que, em processos eletrônicos, a data que deve ser considerada para interrupção da prescrição é a publicação no Diário da Justiça, conforme a Lei nº 11.419/2006, que estabelece que os atos judiciais são considerados publicados no primeiro dia útil seguinte à disponibilização eletrônica.

O Ministério Público se insurgiu alegando que, nos processos eletrônicos, a prescrição se interrompe no momento em que a sentença é assinada e disponibilizada nos autos digitais, e não na data da publicação no Diário da Justiça. Logo, teria havido a interrupção da prescrição em 28 de julho de 2021, antes de se passarem 3 anos do recebimento da denúncia.

 

O que decidiu o STJ? Em processos eletrônicos, qual é o marco interruptivo da prescrição: a data da disponibilização da sentença nos autos digitais ou a data de sua publicação no Diário da Justiça?

A data em que a sentença é assinada e disponibilizada nos autos digitais (o STJ concordou com o MP).

 

A defesa sustentou a tese de que a sentença interrompe o curso da prescrição a partir do primeiro dia útil seguinte à sua publicação no Diário da Justiça Eletrônico, nos termos do art. 4º, § 3º, da Lei nº 11.419/2006:

Lei nº 11.419/2006 (Lei do Processo Eletrônico)

Art. 4º Os tribunais poderão criar Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral.

(...)

§ 3º Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico.

 

No entanto, esse preceito legal se refere ao início da contagem dos prazos processuais para as partes.

Para os fins do art. 107, IV, do Código Penal, considera-se publicada a sentença, no âmbito dos processos eletrônicos, quando disponibilizada nos autos digitais. Com base em que dispositivo? No art. 389 do CPP:

Art. 389. A sentença será publicada em mão do escrivão, que lavrará nos autos o respectivo termo, registrando-a em livro especialmente destinado a esse fim.

 

“Em mão do escrivão”: o que significa isso?

Na época do processo físico, “em mão do escrivão” significava quando a sentença saía do gabinete do juiz e era entregue ao escrivão ou diretor de secretaria, sendo isso consignado (“registrado”) nos autos por termo.

Ocorre que o art. 389 do CPP deve ser interpretado de forma contemporânea, segundo a realidade processual digital.

O referido preceito legal deve ser adaptado ao contexto atual do processo eletrônico, no qual o registro e a disponibilização nos autos ocorrem automaticamente, de forma simultânea à assinatura digital da sentença pelo magistrado.

Nos processos eletrônicos, não se lavra termo nos autos nem há registro em livro de sentenças, instrumentos que foram substituídos pelo sistema digital.

No caso dos autos, segundo informação impressa à margem direita da sentença, ela foi assinada e disponibilizada nos autos no dia 28 de julho de 2021, constituindo essa data o marco interruptivo da prescrição, nos termos do art. 117, IV, do Código Penal. Logo, não se consumou a prescrição retroativa.

A data de publicação da sentença no Diário da Justiça não é a data que interrompe a prescrição. Nos processos digitais, a sentença interrompe a prescrição no dia em que ela é disponibilizada nos autos.

 

Em suma:

O marco interruptivo da prescrição, nos processos eletrônicos, ocorre na data em que a sentença é assinada e disponibilizada nos autos digitais, equiparando-se a disponibilização eletrônica da sentença à entrega física ao escrivão. 

STJ. 5ª Turma. AgRg nos EDcl no REsp 2.086.256-SP, Rel. Min. Carlos Cini Marchionatti (Desembargador convocado do TJRS), julgado em 19/8/2025 (Info 860).


quarta-feira, 1 de outubro de 2025

O dolo eventual é compatível com o reconhecimento de desígnios autônomos, justificando a aplicação do concurso formal impróprio

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carlos dirigia embriagado em alta velocidade numa madrugada quando perdeu o controle do veículo e colidiu frontalmente com outro carro.

No acidente, morreram os dois ocupantes do outro veículo: Regina (que estava no banco do passageiro) e João (que dirigia o automóvel).

Carlos foi denunciado e pronunciado por dois homicídios dolosos, praticados com dolo eventual.

Durante a sessão do Tribunal do Júri, o Conselho de Sentença foi questionado sobre a modalidade do dolo.

Os jurados responderam que Carlos agiu com dolo eventual em relação à morte de ambas as vítimas - ou seja, reconheceram que ele previu como possível o resultado morte e assumiu o risco de produzi-lo.

 

Na dosimetria da pena, deve ser aplicada a regra do concurso formal próprio ou impróprio?

O Ministério Público pediu o reconhecimento do concurso formal IMPRÓPRIO, argumentando que Carlos assumiu o risco em relação a cada vítima de forma autônoma, o que justificaria uma punição mais severa (soma das penas de cada crime).

A defesa, por sua vez, sustentou que seria caso de concurso formal PRÓPRIO, aplicando a regra mais benéfica ao réu (aumento de apenas metade da pena base). O fundamento foi que Carlos não tinha “desígnios autônomos”, ou seja, não teria havido intenção separada para cada morte, mas sim uma única conduta imprudente que resultou em dois óbitos.

 

Para relembrar:

Ocorre o concurso formal quando o agente, mediante uma única conduta, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. O concurso formal está previsto no art. 70 do CP:

Concurso formal

Art. 70 - Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.

Parágrafo único. Não poderá a pena exceder a que seria cabível pela regra do art. 69 deste Código.

 

Requisitos:

• Uma única conduta (uma única ação ou omissão);

• Pluralidade de crimes (dois ou mais crimes praticados).

 

CONCURSO FORMAL

PERFEITO (normal, próprio)

IMPERFEITO (anormal, impróprio)

O agente produziu dois ou mais resultados criminosos, mas não tinha o desígnio de praticá-los de forma autônoma.

Quando o agente, com uma única conduta, pratica dois ou mais crimes dolosos, tendo o desígnio de praticar cada um deles (desígnios autônomos).

Ex1: João atira para matar Maria, acertando-a. Ocorre que, por culpa, atinge também Pedro, causando-lhe lesões corporais. João não tinha o desígnio de ferir Pedro.

Ex2: motorista causa acidente e mata 3 pessoas. Não havia o desígnio autônomo de praticar os diversos homicídios.

Ex1: Jack quer matar Bill e Paul, seus inimigos. Para tanto, Jack instala uma bomba no carro utilizado pelos dois, causando a morte de ambos. Jack matou dois coelhos com uma cajadada só.

Ex2: Rambo vê seu inimigo andando de mãos dadas com a namorada. Rambo pega seu fuzil e resolve atirar em seu inimigo. Alguém alerta Rambo: “não atire agora, você poderá acertar também a namorada”, mas Rambo responde: “eu só quero matá-lo, mas se pegar nela também tanto faz. Não estou nem aí”. Rambo, então, desfere um único tiro que perfura o corpo do inimigo e acerta também a namorada. Ambos morrem.

Pode ocorrer em duas situações:

• DOLO + CULPA: quando o agente tinha dolo de praticar um crime e os demais delitos foram praticados por culpa (exemplo 1);

• CULPA + CULPA: quando o agente não tinha a intenção de praticar nenhum dos delitos, tendo todos eles ocorrido por culpa (exemplo 2).

Ocorre, portanto, quando o sujeito age com dolo em relação a todos os crimes produzidos.

 

Aqui é DOLO + DOLO. Pode ser:

• Dolo direto + dolo direto (exemplo 1);

• Dolo direto + dolo eventual (exemplo 2).

• Dolo eventual + dolo eventual.

 

Fixação da pena:

Regra geral: exasperação da pena:

• Aplica-se a maior das penas, aumentada de 1/6 até 1/2.

• Para aumentar mais ou menos, o juiz leva em consideração a quantidade de crimes.

 

Exceção: concurso material benéfico

O montante da pena para o concurso formal não pode ser maior do que a que seria aplicada se fosse feito o concurso material de crimes (ou seja, se fossem somados todos os crimes).

É o caso do exemplo 1, que demos acima, sobre João. A pena mínima para o homicídio simples de Maria é 6 anos. A pena mínima para a lesão corporal culposa de Pedro é 2 meses.

Se fôssemos aplicar a pena do homicídio aumentada de 1/6, totalizaria 7 anos.

Se fôssemos somar as penas do homicídio com a lesão corporal, daria 6 anos e 2 meses.

Logo, nesse caso, é mais benéfico para o réu aplicar a regra do concurso material (que é a soma das penas). É o que a lei determina que se faça (art. 70, parágrafo único, do CP) porque o concurso formal foi idealizado para ajudar o réu.

Fixação da pena

No caso de concurso formal imperfeito, as penas dos diversos crimes são sempre SOMADAS. Isso porque o sujeito agiu com desígnios autônomos.

 

O que decidiu o STJ: é caso de concurso formal próprio ou impróprio?

Impróprio.

O Conselho de Sentença reconheceu, de forma expressa, a prática de dois homicídios dolosos, ao responder afirmativamente aos quesitos relativos à existência de dolo eventual em relação a cada uma das vítimas fatais.

Tal conclusão revela que o agente, ao praticar a conduta, previu como possíveis os resultados de morte e, ainda assim, assumiu o risco de produzi-los, nos termos do art. 18, inciso I, segunda parte, do Código Penal:

Art. 18 - Diz-se o crime:

Crime doloso

I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

(...)

 

Dessa forma, sendo ambos os homicídios praticados com dolo, ainda que eventual, conclui-se que estavam presentes desígnios autônomos em relação a cada uma das condutas delituosas.

Em palavras mais simples, poderíamos dizer que, se Carlos previu que poderia matar pessoas ao dirigir embriagado em alta velocidade e mesmo assim assumiu esse risco (dolo eventual), isso significa que ele tinha um desígnio separado em relação a cada possível vítima. Ele não simplesmente causou mortes acidentais. Ele conscientemente assumiu o risco de matar quantas pessoas estivessem no caminho.

Assim, fica afastada a possibilidade de aplicação da regra do concurso formal próprio (art. 70, caput, parte final, do CP), uma vez que tal modalidade pressupõe a ausência de vontade autônoma para cada resultado.

A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, quando o agente, ainda que mediante uma única conduta, anui com a produção de múltiplos resultados, revela-se caracterizada a existência de desígnios autônomos, o que impõe o reconhecimento do concurso formal impróprio:

O concurso formal próprio ou perfeito somente é possível se os crimes forem todos culposos, ou se um for doloso e o outro culposo.

Assim, se o agente pretende alcançar mais de um resultado ou anui com tal possibilidade, configura-se o concurso formal impróprio ou imperfeito, pois caracterizados os desígnios autônomos.

Os desígnios autônomos que caracterizam o concurso formal impróprio referem-se a qualquer forma de dolo, direto ou eventual.

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.521.343-SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/9/2024 (Info 827).

 

A partir do momento em que os jurados reconhecem o dolo eventual em relação a ambas as vítimas, deve-se obrigatoriamente reconhecer que havia desígnios autônomos.

Assim, a aplicação do concurso formal impróprio revela-se não apenas adequada, mas necessária à correta individualização da pena, em consonância com o que restou soberanamente decidido pelo Tribunal do Júri.

 

Teses de julgamento:

1. O dolo eventual é compatível com o reconhecimento de desígnios autônomos, justificando a aplicação do concurso formal impróprio.

2. A decisão do Tribunal do Júri que reconhece dolo eventual vincula as instâncias superiores quanto à configuração de desígnios autônomos.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.052.416-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 20/8/2025 (Info 860).


terça-feira, 30 de setembro de 2025

Mulheres presas têm direito à remição de pena pelo período dedicado aos cuidados de seus filhos na unidade prisional

Imagine a seguinte situação hipotética:

Larissa é uma mulher de 25 anos que foi condenada a 5 anos de prisão em regime fechado por tráfico de drogas. Durante o cumprimento da pena, ela engravidou e deu à luz a um menino chamado Gabriel.

Conforme previsto na Lei de Execução Penal, Larissa foi transferida para a ala de amamentação do presídio feminino, onde permaneceu cuidando integralmente de Gabriel por 6 meses.

Durante esse período, ela se dedicava 24 horas por dia aos cuidados do bebê: amamentação, troca de fraldas, banho, acalento quando chorava durante a madrugada, estimulação do desenvolvimento infantil e todos os demais cuidados necessários a um recém-nascido.

Devido à necessidade de cuidar do filho, Larissa não pôde participar das atividades de trabalho ou estudo oferecidas pelo estabelecimento prisional durante esses 6 meses.

Após o período de amamentação, quando Gabriel foi entregue aos cuidados de familiares, Larissa solicitou ao juízo da execução que reconhecesse o período de cuidados maternos como trabalho para fins de remição de pena, baseando-se na “teoria da economia do cuidado”, que reconhece o valor econômico e social das atividades de cuidado tradicionalmente não remuneradas.

 

Abrindo um parêntese: o que é a teoria da economia do cuidado?

Este conceito foi inicialmente formulado pela cientista política Joan Tronto em 1993, definindo-o como “todo tipo de trabalho, remunerado ou não, motivado pelo objetivo de melhorar a vida de outra pessoa”.

A teoria da economia do cuidado defende que atividades como amamentar, cuidar de crianças, idosos ou doente, geralmente realizadas dentro de casa e sem remuneração, devem ser reconhecidas como trabalho. Essas tarefas, embora não sejam formalmente inseridas no mercado ou no cálculo do PIB, exigem tempo, esforço físico e emocional, sendo fundamentais para o funcionamento da sociedade.

Tradicionalmente, esse cuidado é exercido por mulheres, o que contribui para a desigualdade de gênero, já que elas ficam sobrecarregadas com tarefas invisibilizadas e têm menos oportunidades de educação, emprego e renda.

Essa teoria busca chamar atenção para o valor econômico e social do cuidado, propondo que ele seja dividido de forma mais justa entre homens, mulheres, Estado e instituições, além de ser reconhecido em políticas públicas, como previdência, salário-maternidade ou, como no caso analisado pelo STJ, remição de pena.

Ao reconhecer os cuidados maternos no cárcere como forma de trabalho, a Justiça aplica a economia do cuidado para garantir igualdade de condições às mulheres presas, muitas vezes impedidas de trabalhar ou estudar por estarem dedicadas exclusivamente aos filhos.

 

Voltando ao caso concreto:

O juiz negou o pedido, argumentando que os cuidados maternos constituem dever constitucional e legal da mãe, não podendo ser equiparados ao trabalho voluntário previsto no art. 126 da LEP.

O Tribunal de Justiça manteve a decisão, entendendo que não há previsão legal para considerar os cuidados maternos como trabalho ensejador de remição.

A Defensoria Pública impetrou habeas corpus no STJ, alegando que a interpretação restritiva do conceito de “trabalho” gera desigualdade de gênero no acesso à remição, já que mulheres encarceradas com filhos ficam impedidas de trabalhar ou estudar durante o período de amamentação, sendo prejudicadas em relação aos demais apenados.

 

A Terceira Seção do STJ acolheu os argumentos da Defensoria Pública? A amamentação e os cuidados maternos podem ser reconhecidos como formas de trabalho para remição de pena?

SIM.

Equiparar a amamentação e os cuidados maternos ao trabalho é medida não apenas justa, mas também juridicamente admissível, à luz da interpretação sistemática das normas que disciplinam a licença-maternidade e dos instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil.

A Constituição Federal expressamente conferiu ao período pós-parto natureza de afastamento laboral protegido, ao assegurar, no art. 7º, XVIII, da CF/88, o direito à estabilidade no emprego e à percepção de salário durante 120 dias após o parto. Essa proteção ultrapassa o campo trabalhista, alcançando o previdenciário, uma vez que o período é computado como tempo de contribuição para fins de aposentadoria (art. 19-C, II, do Decreto n. 3.048/1999 e art. 24, § 5º, da Instrução Normativa n. 77/2015, do INSS).

Esse tratamento não se restringe às seguradas em liberdade. Há base constitucional sólida para tutelar o período puerperal e os cuidados com o recém-nascido, reconhecendo sua singularidade e relevância para o desenvolvimento da criança.

No plano internacional, o artigo 24 da Convenção sobre os Direitos da Criança (Decreto nº 99.710/1990) comprometeu o Brasil a adotar medidas que assegurem a nutrição adequada da criança, incluindo o aleitamento materno. Já o artigo 11.2 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Decreto nº 4.377/2002) elevou a licença-maternidade a mecanismo essencial de combate à discriminação de gênero e de garantia ao direito ao trabalho.

A jurisprudência tem flexibilizado a aplicação do art. 126 da LEP, admitindo a remição da pena por atividades não expressamente previstas em lei, como leitura, estudo autônomo e artesanato. Nesse sentido, o STJ reconheceu que não é razoável afastar a remição por atividades laborais devidamente certificadas pelo estabelecimento prisional: STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 922.428/RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 9/9/2024.

Nos termos do art. 32 da LEP, o trabalho deve ser atribuído levando em conta as condições pessoais do preso. No caso das mães encarceradas, isso exige considerar as responsabilidades relacionadas ao cuidado de filhos, especialmente quando permanecem com elas no cárcere. A Resolução CNJ nº 369/2021 reforça a necessidade de políticas específicas para maternidade no sistema prisional.

O STF já reconheceu que mulheres presas com seus filhos exercem a chamada “hipermaternidade”, permanecendo integralmente dedicadas aos cuidados maternos, sem acesso a atividades escolares ou laborais, o que pode dificultar o trabalho ou estudo.

Daí a necessidade de interpretação extensiva do art. 126 da LEP, para incluir a amamentação e os cuidados maternos como formas de trabalho. Essas atividades exigem esforço, dedicação contínua e são indispensáveis ao desenvolvimento saudável da criança.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, editado pelo CNJ, orienta a magistratura a considerar as desigualdades de gênero, combatendo estereótipos que influenciam decisões judiciais. Nesse contexto, é imprescindível reconhecer que as mulheres assumem, de forma desproporcional, tarefas domésticas e maternas, o que reforça sua posição de vulnerabilidade.

No julgamento do HC 143.641/SP, o STF fixou parâmetros claros ao afastar fundamentos discriminatórios que inviabilizavam a concessão da prisão domiciliar a mulheres gestantes ou mães, como a exigência de prova de dependência da criança ou a ausência de trabalho formal.

Por fim, o art. 83, § 2º, da LEP prevê que estabelecimentos penais destinados a mulheres devem contar com berçário, a fim de possibilitar o cuidado e a amamentação dos filhos até os seis meses de idade, reforçando a ideia de que o cuidado materno é atividade reconhecida pelo próprio ordenamento jurídico.

 

Teses de julgamento:

1. A interpretação extensiva do termo “trabalho” no art. 126 da LEP inclui os cuidados maternos como atividade para fins de remição de pena.

2. A amamentação e os cuidados maternos são reconhecidos como formas de trabalho para remição de pena, considerando sua importância para o desenvolvimento da criança.

3. As desigualdades de gênero devem ser consideradas nas decisões judiciais, eliminando estereótipos que influenciam negativamente as decisões.

STJ. 3ª Seção. HC 920.980-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/8/2025 (Info 859).


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A leitura pode gerar remição da pena, desde que haja avaliação por comissão oficial instituída pelo juízo da execução

LEP não fala expressamente em remição pela leitura de livros

A Lei de Execução Penal – LEP (Lei nº 7.210/1984), no art. 126, prevê a remição de pena pelo trabalho e pelo estudo. A LEP não menciona explicitamente a leitura de livros como forma de remição.

Mesmo assim, o CNJ fez uma intepretação extensiva do art. 126 da LEP e editou dois atos normativos permitindo a remição pela leitura, desde que cumpridos certos procedimentos.

Em 2013, o CNJ publicou a Recomendação nº 44/2013, que já admitia a remição pela leitura, de forma complementar ao estudo.

Em 2021, a Resolução nº 391 foi além: institucionalizou a leitura como prática social educativa autônoma, com regras claras (4 dias de remição por livro, até 12 livros/ano).

 

Resolução CNJ nº 391/2021

A Resolução nº 391/2021, do CNJ, estabelece procedimentos para o reconhecimento do direito à remição de pena por meio de práticas sociais educativas. Esta Resolução prevê expressamente a remição da pena pela leitura de livros.

Regras principais do art. 5º da Resolução sobre a remição pela leitura:

• Caráter voluntário: a leitura não é obrigatória, mas quem desejar pode pegar livros da biblioteca da unidade prisional.

• Comprovação da leitura: a pessoa registra o empréstimo e tem entre 21 e 30 dias para ler. Depois, deve apresentar um relatório de leitura (em até 10 dias), seguindo um roteiro fornecido pelo juiz ou comissão.

• Cômputo da remição: cada livro lido e validado equivale a 4 dias de pena a menos. O limite é de 12 livros por ano, totalizando até 48 dias de remição por leitura anual. Com isso, o preso tem de 21 a 30 dias para ler a obra e mais 10 dias para apresentar o relatório, sempre utilizando livros do acervo oficial da biblioteca da unidade prisional.

• Comissão de validação: o Juízo competente instituirá Comissão de Validação, com atribuição de analisar o relatório de leitura. Essa análise não é como uma prova escolar. A comissão apenas verifica se a leitura foi realizada.

• Composição da comissão: a Comissão de Validação será composta por membros do Poder Executivo, especialmente aqueles ligados aos órgãos gestores da educação nos Estados e Distrito Federal e responsáveis pelas políticas de educação no sistema prisional da unidade federativa ou União, incluindo docentes e bibliotecários que atuam na unidade, bem como representantes de organizações da sociedade civil, de iniciativas autônomas e de instituições de ensino públicas ou privadas, além de pessoas privadas de liberdade e familiares.

• Inclusão e acessibilidade: pessoas em alfabetização ou com deficiência podem comprovar a leitura por meio de relatórios orais, audiobooks, leitura compartilhada ou até desenhos.

• O Estado deve disponibilizar livros em braile e outros formatos acessíveis.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

João estava cumprindo pena de 8 anos de reclusão em regime fechado na Penitenciária.

Durante sua permanência no cárcere, ele desenvolveu o hábito da leitura como forma de ocupar o tempo e melhorar sua formação pessoal.

João conseguiu ler diversas obras literárias e elaborou resenhas detalhadas sobre cada uma delas.

Para validar suas leituras, João adotou duas estratégias diferentes:

• Para um primeiro grupo de livros, ele seguiu rigorosamente o procedimento previsto na Resolução: registrou o empréstimo na biblioteca da unidade prisional, leu as obras dentro do prazo estabelecido e submeteu suas resenhas à Comissão de Validação.

• Para um segundo grupo de livros, João contratou uma pedagoga particular para avaliar suas resenhas e atestar a qualidade de sua leitura.

 

João terá como obter a remição de pena pela leitura dos livros?

Parcialmente. Apenas para o primeiro grupo de livros.

 

Interpretação extensiva do conceito de “estudo” previsto no art. 126 da LEP

O STJ entendeu que, embora a LEP não mencione expressamente a leitura, seria um contrassenso não considerá-la uma forma de estudo, já que ler é o principal método para estudar e aprender.

Deve-se aplicar o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que determina que o juiz deve atender aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum. Nesse contexto, os fins sociais da execução penal incluem necessariamente a ressocialização, e a leitura contribui diretamente para esse objetivo.

O próprio STF foi quem determinou ao CNJ que regulamentasse a remição pela leitura, o que resultou na Resolução nº 391/2021.

A leitura é especialmente relevante considerando o “Estado de Coisas Inconstitucionais” do sistema carcerário brasileiro, reconhecido pelo STF na ADPF nº 347. Nesse contexto, qualquer medida que possa melhorar as condições do sistema prisional deve ser incentivada, não obstaculizada.

 

Entendimento está alinhado com diretrizes internacionais

As diretrizes internacionais, como as Regras de Mandela e as Regras de Bangkok, estabelecem princípios para o tratamento de presos.

A educação, incluindo a leitura, é vista como direito fundamental que deve ser garantido mesmo durante o cumprimento da pena, como forma de preparar o indivíduo para o retorno à sociedade.

 

Vale ressaltar que apenas a leitura supervisionada por órgão oficial pode gerar remição

A Resolução nº 391/2021 do CNJ exige que uma Comissão de Validação, instituída pelo juízo da execução, avalie os relatórios de leitura. Essa comissão deve ser composta por membros do Poder Executivo, especialmente ligados aos órgãos gestores da educação, incluindo docentes e bibliotecários da unidade prisional, além de representantes da sociedade civil.

A razão para essa exigência está na necessidade de garantir a imparcialidade da avaliação e evitar fraudes.

Aceitar atestados de profissionais contratados pelo próprio apenado comprometeria a credibilidade do sistema e poderia abrir precedentes perigosos. A validação deve seguir critérios objetivos que considerem o grau de letramento do preso, a fidedignidade do relatório e a demonstração efetiva de compreensão da obra lida.

Em síntese, o STJ reconheceu que a leitura pode sim gerar remição de pena, mas apenas quando realizada dentro de um sistema oficial de controle e validação, rejeitando qualquer forma de atestação particular ou informal.

 

Em suma:

Em decorrência dos objetivos da execução penal, a leitura pode resultar na remição de pena, com fundamento no art. 126 da Lei de Execução Penal, desde que observados os requisitos previstos para sua validação, não podendo ser acolhido o atestado realizado por profissional contratado pelo apenado. 

STJ. 3ª Seção. REsp 2.121.878-SP, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 13/8/2025 (Recurso Repetitivo - Tema 1278) (Info 859).


domingo, 28 de setembro de 2025

Revisão para o concurso de Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul (MP/RS)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Promotor de Justiça do Rio Grande do Sul (MP/RS).

Bons estudos.



sábado, 27 de setembro de 2025

O verbo ‘trazer consigo’ do art. 33 da Lei de Drogas inclui também a posse imediata da substância, ainda que sem contato físico direto

Imagine a seguinte situação hipotética (diferente do caso concreto):

João e mais dois amigos foram abordados pela polícia em um terreno baldio, sentados em cima de um tablado de madeira.

No chão, a poucos passos de onde eles estavam, havia uma mochila aberta contendo várias porções de maconha e cocaína.

João e os outros dois indivíduos foram denunciados pelo crime de tráfico de drogas, tipificado no art. 33 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

 

A defesa alegou que João não poderia ser condenado pelo crime porque a sua conduta não se amoldava em nenhum dos verbos do art. 33 da Lei de Drogas. Logo, sua conduta seria atípica.

 

O STJ concordou com esse argumento da defesa?

NÃO. O STJ entendeu que a conduta do réu se enquadrava no verbo nuclear “trazer consigo”.

No caso, analisando os 18 núcleos do tipo (importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer), a conduta dos acusados (aglomerados ao redor de um tablado com a droga) só pode se amoldar a “trazer consigo”.

Como a apreensão ocorreu no espaço público, isso exclui os núcleos “ter em depósito” ou “guardar”. E como nenhum ato de comercialização ou preparo foi visualizado, isso também exclui os demais núcleos.

 

Mas a droga não estava fisicamente com João. Ela estava em uma mochila próxima dele... Mesmo assim, é possível considerar que ele praticou o verbo “trazer consigo”?

SIM. O “trazer consigo” não se limita aos casos de contato físico com a droga. Engloba também a disponibilidade da droga.

Ainda que somente um acusado eventualmente tenha levado o entorpecente para aquele local, no momento da apreensão todos já estavam na disponibilidade da droga disposta no tablado em frente de todos. Como todos estavam aglomerados ao redor da droga, todos “traziam consigo”.

A adoção de interpretação diversa levaria à conclusão de atipicidade da conduta e, consequentemente, à absolvição dos acusados, diante da ausência de prova quanto à identidade do responsável por levar a droga ao local. Tal raciocínio, contudo, mostra-se inadequado e irrazoável.

Essa mesma lógica resultaria, ainda, na atipicidade de situações em que o entorpecente é encontrado próximo ao acusado em via pública, mas não em seu corpo, como nos casos em que a substância é escondida sob um muro, arbusto ou outro objeto. Bastaria, nessas circunstâncias, sustentar que a droga teria sido colocada previamente por terceiro e, portanto, sem o contato físico, não estaria “em poder” do acusado.

Além disso, a tese de atipicidade também se estenderia às hipóteses de uso pessoal. Isso porque, nem mesmo no art. 28 da Lei nº 11.343/2006, seria possível subsumir a conduta, já que não se ajustaria a nenhum dos núcleos típicos descritos (adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo). Em outras palavras, bastaria que o agente permanecesse despercebido durante o transporte até o local público, ainda que a droga continuasse sob sua esfera de disponibilidade, para assegurar a absolvição por falta de provas.

Dessa forma, reconhecido que os réus estavam reunidos em torno de um tablado de madeira sobre o qual se encontravam as drogas, conclui-se que todos, em concurso de vontades, mantinham a posse conjunta do entorpecente. A presença das substâncias à frente dos acusados, dentro de sua esfera de disponibilidade e com o intuito de repartição entre si, revela-se suficiente para caracterizar o núcleo típico da conduta.

 

Em suma:

O verbo nuclear “trazer consigo” previsto no art. 33 da Lei nº 11.343/2006 não se limita à conduta de manter contato direto com a droga junto ao próprio corpo, pois também abrange a conduta de ter os entorpecentes à sua imediata disposição, ainda que sem contato corporal imediato. 

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 2.791.130-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 19/8/2025 (Info 859).


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