terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

A Cooperativa de Trabalho Médico pode limitar o ingresso de médicos em seus quadros?

 

Imagine a seguinte situação hipotética:

Pedro, médico oftalmologista, juntamente com outros profissionais da mesma especialidade, pediram para ingressar na Unimed (cooperativa de médicos).

A Unimed negou o pedido afirmando que não tem mais condições financeiras para o custeio de novos associados.

Diante disso, Pedro e os demais oftalmologistas ingressaram com ação de obrigação de fazer, pedindo que a Unimed fosse condenada a aceitá-los.

Os autores argumentaram que essa recusa seria abusiva porque o art. 4º, I e o art. 29, da Lei nº 5.764/71 (Lei das Cooperativas) preveem o princípio das portas abertas, de forma que o ingresso nas cooperativas é livre a todos os que desejaram utilizar os serviços prestados pela sociedade.

 

Impossibilidade técnica

Foi designada uma perícia que constatou que a Unimed estava funcionando no limite e que o ingresso de novos médicos nessa especialidade poderia comprometer o equilíbrio econômico-financeiro da cooperativa.

O perito consignou que a admissão de novos cooperados deve ser precedida de uma avaliação de mercado, objetivando-se conhecer as demandas que a clientela está sinalizando. O aumento do número de cooperados ocasiona um aumento das despesas administrativas da cooperativa. Por isso, se a admissão de novos cooperados na Unimed for unilateral, ou seja, apenas pelo desejo dos que pretendem se associar, a cooperativa corre o risco de admitir profissionais médicos de especialidades que não tragam, em consequência, aumento de receitas, correndo risco de não mais conseguir cobrir seus custos.

Diante disso, o magistrado julgou o pedido improcedente, tendo a sentença sido mantida pelo TJ/PE.

Houve, então, recurso especial.

 

O STJ concordou com o entendimento do TJ/PE? A recusa da Unimed foi legítima?

SIM.

A Cooperativa de Trabalho Médico pode limitar, justificada e objetivamente, nos termos de seu estatuto, o ingresso de médicos em seus quadros sob o argumento de necessidade de preservação de equilíbrio econômico-financeiro, nos termos do art. 4º, I, e art. 29 da Lei nº 5.764/71.

Vamos entender.

 

O que é uma cooperativa?

Cooperativas são sociedades de pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de lucro.

 

A admissão de associados pode ser restringida?

SIM. A admissão dos associados poderá ser restrita, a critério do órgão normativo respectivo, às pessoas que exerçam determinada atividade ou profissão ou estejam vinculadas a determinada entidade. Ex: na cooperativa de médicos somente podem ingressar os profissionais regularmente habilitados como médicos.

 

Como funcionam as cooperativas de trabalho?

Nas cooperativas de trabalho, como a de médicos, a produção (ou o oferecimento de serviço) é realizada em conjunto pelos associados, sob a proteção da própria cooperativa.

Assim, a cooperativa coloca à disposição do mercado a força de trabalho, cujo produto da venda - após a dedução de despesas - é distribuído, por equidade, aos associados, ou seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado (número de consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Essas cooperativas têm como finalidade melhorar os salários e as condições de trabalho pessoal de seus associados, dispensando, mediante ajuda mútua, a intervenção de um patrão ou empresário, procurando sempre o justo preço, já que a entidade não busca o lucro: a sobra apurada em suas operações é distribuída em função do montante operacional de cada associado.

 

O que faz uma cooperativa de trabalho médico?

A cooperativa de trabalho, como a de médicos, coloca à disposição do mercado a força de trabalho.

O produto arrecadado com a prestação desses serviços é utilizado para pagamento das despesas da própria cooperativa e, em seguida, é distribuído, por equidade, entre os associados, ou seja, cada um receberá proporcionalmente ao trabalho efetuado (número de consultas, complexidade do tratamento, entre outros parâmetros).

Conforme explica a doutrina especializada:

“8.1. A realidade brasileira ostenta um expressivo conjunto de cooperativas de serviços, constituídas por médicos, que celebram contratos para que beneficiários contratuais recebam assistência médica por parte de cooperados.

8.2. Têm elas dupla qualificação. São cooperativas, constituídas conforme o Código Civil e a Lei nº 5.764 de 1971 e, igualmente, operadoras de planos de saúde, como tais definidas pela Lei nº 9.656, a lei dos planos de saúde.

8.3. As cooperativas de serviços médicos foram criadas na década de 1970, como movimento classista contra a massificação e o aviltamento financeiro decorrentes da estatização forçada da atividade médica e surgimento de empresas que compravam trabalho médico e revendiam com lucro.

8.4. Os sócios dessas cooperativas oferecem, coletivamente, na forma de convênios, a preços acessíveis, suas clínicas privadas, aos interessados, num atendimento que sobrepuja, em qualidade, o dispensado nas filas previdenciárias e nos ambulatórios das medicinas de grupo. Daí o sucesso crescente do empreendimento que, salvo alguns percalços, espraia-se hoje por toda a geografia brasileira, assumindo a feição de autêntica instituição nacional.” (ROSE, Marco Túlio de. Cooperativas Médicas, Saúde Suplementar e Colisão (Cap. X). In: Comentários à Legislação das Sociedades Cooperativas: Tomo II. KRUEGER, G.; MIRANDA, A. B. (Coord.), Belo Horizonte: Mandamentos, 2007, págs. 284/285)

 

Princípio cooperativista da adesão livre (princípio da livre adesão voluntária)

O princípio cooperativista da adesão livre desdobra-se em dois outros:

a) o princípio da voluntariedade, em que ninguém deve ser coagido a ingressar em uma sociedade cooperativa, de modo que o pedido de ingresso deve partir da vontade livre e desembaraçada do proponente; e

b) o princípio da porta aberta, o qual prega que a adesão deve ser aberta a todas as pessoas que aceitem as responsabilidades próprias da filiação e tenham a possibilidade de usufruir as utilidades da cooperativa.

 

Desse modo, o ingresso nas cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas no estatuto.

Em regra, não há limitação quanto ao número de associados.

Exceção: podem ser impostas restrições se houver impossibilidade técnica de prestação de serviços.

Veja os dispositivos da Lei nº 5.764/71 que tratam sobre o tema:

Art. 4º As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:

I - adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibilidade técnica de prestação de serviços;

(...)

 

Art. 29. O ingresso nas cooperativas é livre a todos que desejarem utilizar os serviços prestados pela sociedade, desde que adiram aos propósitos sociais e preencham as condições estabelecidas no estatuto, ressalvado o disposto no artigo 4º, item I, desta Lei.

 

Princípio da porta aberta

Por força do princípio da porta aberta, consectário do princípio da livre adesão, não podem existir restrições arbitrárias e discriminatórias à livre entrada de novo membro na cooperativa, devendo a regra limitativa da impossibilidade técnica de prestação de serviços ser interpretada segundo a natureza da sociedade cooperativa, sobretudo porque a cooperativa não visa o lucro, além de ser um empreendimento que possibilita o acesso ao mercado de trabalhadores com pequena economia, promovendo, portanto, a inclusão social.

A proibição imotivada de novos cooperados é proibido pela lei porque o incentivo ao cooperativismo é de interesse público, tal como preconizado pelo art. 174, § 2º da Constituição Federal:

Art. 174 (...)

§ 2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

 

Logo, não atingida a capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, que deverá ser aferida por critérios técnicos e verossímeis, pois isso a impediria de cumprir sua finalidade de colocar suas atividades à disposição de seus componentes, é vedada a recusa de admissão de novos associados qualificados (STJ. 4ª Turma. REsp nº 661.292/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 8/6/2010).

Em outras palavras, a recusa de ingresso de profissional na cooperativa de trabalho médico não pode se dar sem haver estudos técnicos de viabilidade, somente em razão de presunções acerca da suficiência numérica de associados na região exercendo a mesma especialidade.

A simples inconveniência para cooperados que já compõem o quadro associativo (eventual diminuição de lucros para eles) não caracteriza motivo técnico suficiente para impedir o ingresso de novos cooperados (STJ. 3ª Turma. REsp nº 1.479.561/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 28/11/2014).

 

Princípio da porta aberta não é absoluto

O princípio da porta aberta (livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico, que também é uma operadora de plano de saúde, velar por sua qualidade de atendimento e situação financeira estrutural, até porque pode ser condenada solidariamente por atos danosos de cooperados a usuários do sistema (a exemplo de erros médicos), o que impossibilitaria a sua viabilidade de prestação de serviços.

Dessa forma, se for atingida a capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, aferível por critérios objetivos e verossímeis, é possível a recusa de novos associados já que o número acima do tolerado impediria a cooperativa de cumprir as suas finalidades.

 

Duas restrições

As restrições ao ingresso na cooperativa são de duas ordens:

a) a primeira, contida no art. 4º, I, referente à própria logística de prestação de serviços previstos pela sociedade, que pode encontrar limites operacionais de ordem técnica; e

b) a segunda, relacionada aos propósitos sociais da cooperativa e ao preenchimento, pelo aspirante, das condições estabelecidos no estatuto, as quais podem versar, inclusive, sobre restrições a categorias de atividade ou profissão.

 

Atingida a capacidade máxima, é possível a recusa de novos associados

Diante do híbrido regime jurídico ao qual as Cooperativas de Trabalho Médico estão sujeitas (Lei nº 5.764/71 e Lei nº 9.656/98), é juridicamente legítima a limitação, de forma impessoal e objetiva, do número de médicos cooperados, tendo em vista o mercado para a especialidade e o necessário equilíbrio financeiro da cooperativa.

A interpretação harmônica das duas leis de regência consolida o interesse público que permeia a atuação das cooperativas médicas e viabiliza a continuidade das suas atividades, mormente ao se considerar a responsabilidade solidária existente entre médicos cooperados e cooperativa e o possível desamparo dos beneficiários que necessitam do plano de saúde.

Assim, é admissível a recusa de novos associados se for atingida a capacidade máxima de prestação de serviços pela cooperativa, o que deve ser aferido por critérios objetivos e verossímeis. Neste caso, a recusa é legítima porque a entrada de novos sócios pode comprometer o equilíbrio econômico-financeiro da cooperativa, impedindo-a de cumprir sua finalidade.

O princípio da porta aberta (livre adesão) não é absoluto, devendo a cooperativa de trabalho médico, que também é uma operadora de plano de saúde, velar por sua qualidade de atendimento e situação financeira estrutural, até porque pode ser condenada solidariamente por atos danosos de cooperados a usuários do sistema (a exemplo de erros médicos), o que impossibilitaria a sua viabilidade de prestação de serviços. Nesse sentido: STJ. 3ª Turma. REsp 1.901.911/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 24/8/2021.

 

Em suma:

A Cooperativa de Trabalho Médico pode limitar, justificada e objetivamente, o ingresso de médicos em seus quadros.

STJ. 4ª Turma. REsp 1.396.255-SE, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 07/12/2021 (Info 723).

 

Vale ressaltar que o eventual insucesso no processo de seleção realizado pela cooperativa, atendidos critérios objetivos, não impede o exercício da profissão médica em variados estabelecimentos de saúde, e nem a prestação de serviço como credenciado de outras operadoras de planos de assistência à saúde.


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