domingo, 25 de maio de 2025
Para a configuração do crime de prevaricação exige-se o dolo específico de satisfazer interesse ou sentimento pessoal de forma objetiva e concreta, não sendo suficiente a mera negligência, comodismo ou descompromisso
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João era Delegado titular da
delegacia de investigações sobre entorpecentes.
Em uma correição realizada na
Delegacia foram encontradas graves irregularidades administrativas.
Restou apurado que João:
• deixou sem andamento centenas
de boletins de ocorrência, alguns com despachos para instauração de inquérito,
mas sem nenhuma providência;
• não providenciou a incineração
de aproximadamente 5 toneladas de droga armazenada irregularmente na delegacia
por anos;
• não destinou adequadamente
dezenas de armas, munições e objetos relacionados;
• frequentava a academia durante
o horário de expediente, utilizando inclusive veículo oficial descaracterizado.
O Ministério Público entendeu que as condutas acima narradas
configuraram o crime de prevaricação, tendo oferecido denúncia contra João pelo
delito tipificado no art. 319 do Código Penal:
Prevaricação
Art. 319 - Retardar ou deixar de
praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição
expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de três meses a
um ano, e multa.
O réu foi condenado em primeira
instância e a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.
O TJ entendeu que as condutas
foram motivadas por “comodismo” e “descompromisso” e que o Delegado deixou de
praticar atos de ofício “para satisfazer interesse pessoal, que era o de
simplesmente não ter que trabalhar, honrar seus vencimentos e o cargo em que
foi investido”.
Inconformado, João interpôs
recurso especial alegando que não havia “dolo específico” de “satisfazer
interesse ou sentimento pessoal”, elemento necessário para configurar o crime
de prevaricação.
O STJ concordou com os
argumentos da defesa? O réu foi absolvido?
SIM.
O crime de prevaricação, previsto
no art. 319 do Código Penal, exige para sua configuração o dolo específico de
“satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, não sendo suficiente a mera
negligência, comodismo ou descompromisso.
É imprescindível que o agente se
abstenha de praticar ato de ofício “para satisfazer interesse ou sentimento
pessoal” de maneira objetiva e concreta.
No caso analisado, o Tribunal de
Justiça condenou o réu, Delegado de Polícia, por não adotar providências
necessárias para a apuração de crimes, não incinerar entorpecentes e não
destinar adequadamente armas e munições, além de omissões em boletins de ocorrência.
Dessa forma, nota-se que a
narrativa aponta para uma conduta pautada no comodismo e descompromisso,
situações que, embora caracterizem desídia, não evidenciam a satisfação de um
interesse pessoal específico ou um objetivo concreto de vantagem pessoal ou favorecimento
indevido.
Ainda que o uso do veículo
oficial para fins particulares e a frequência à academia durante o horário de
expediente possam indicar uma conduta administrativa inadequada, tais fatos,
isoladamente considerados, não são suficientes para caracterizar o dolo específico
exigido pela jurisprudência consolidada, qual seja, o de “satisfazer interesse
ou sentimento pessoal”.
Nesse sentido:
Para a configuração do crime de prevaricação, é necessário que o
agente retarde ou deixe de praticar, indevidamente, ou pratique contra
disposição expressa de lei, ato de ofício com a finalidade de satisfazer
interesse ou sentimento pessoal. Doutrina. Precedente.
No caso dos autos, o órgão ministerial cingiu-se a afirmar que o
paciente, Delegado da Polícia Federal, teria deixado de lavrar auto de prisão
em flagrante e de apreender a moeda estrangeira localizada com investigado pelo
crime de contrabando e descaminho por desídia, deixando de indicar qual
interesse ou sentimento pessoal buscava satisfazer, narrativa que se afigura
insuficiente para a configuração do tipo penal em exame.
Ordem concedida de ofício para determinar o trancamento da ação
penal em apreço.
STJ. 5ª Turma. HC 390.950/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em
16/5/2017.
Assim, o STJ afirmou que as
condutas praticadas são atípicas.
Em suma:
Para a configuração do crime de prevaricação exige-se
o dolo específico de satisfazer interesse ou sentimento pessoal de forma
objetiva e concreta, não sendo suficiente a mera negligência, comodismo ou
descompromisso.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no AREsp 2.693.820-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em
18/3/2025 (Info 846).
