Dizer o Direito

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

O acesso a bens digitais do falecido, quando não se conhece a senha, deve ocorrer por incidente processual específico no inventário, desde que resguardados os direitos à intimidade e à privacidade

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, um rico empresário, faleceu em um acidente.

Ele deixou três herdeiros: sua esposa Regina e os dois filhos Tiago e Henrique.

A viúva deu início ao processo de inventário.

Regina sabia que João administrava ativos digitais importantes por meio de seu iPhone e iPad (aplicações financeiras, contratos em nuvem, criptoativos etc.). Ocorre que ela não tinha as senhas dos aparelhos.

Diante disso, a requerimento de Regina (inventariante), o juiz do inventário expediu ofício requisitando da Apple as senhas para acessar os dispositivos.

A empresa respondeu com termos técnicos, afirmando que, por questões de segurança e criptografia, não possuía as senhas nem poderia desbloquear os dispositivos.

Inconformada com a resposta pouco clara, Regina pediu a expedição de um novo ofício, com respostas mais objetivas e linguagem acessível.

O juiz indeferiu o pedido, alegando que a discussão sobre o conteúdo dos dispositivos eletrônicos constituía questão de alta indagação, que exigia dilação probatória e, portanto, deveria ser remetida às vias ordinárias.

O Tribunal de Justiça manteve a decisão, considerando que outras diligências seriam necessárias para averiguar o conteúdo dos dispositivos, procedimentos que seriam estranhos ao rito especial do inventário.

Regina interpôs, então, recurso especial.

 

O STJ deu provimento ao recurso de Regina?

SIM.

 

Inventário

Inventário é o processo instaurado com o objetivo de se apurar quais foram os bens deixados pelo falecido e, após isso, realizar a partilha entre os herdeiros.

Consiste, portanto, na descrição pormenorizada dos bens da herança, tendente a possibilitar o recolhimento de tributos, o pagamento de credores e, por fim, a partilha.

 

Espécies de inventário

• Inventário judicial: é um processo judicial.

• Inventário extrajudicial: é o inventário realizado por meio de escritura pública. O referido procedimento foi regulamentado pela Resolução 35/2007, posteriormente alterada pela Resolução 571/2024, ambas do CNJ.

 

Questões que podem ser solucionadas no processo do inventário judicial

O inventário consiste no procedimento especial destinado a identificar e partilhar os bens que integram o acervo patrimonial deixado pelo falecido e separá-los daqueles que pertencem à meação do cônjuge ou companheiro, bem como analisar se o acervo patrimonial é suficiente para pagamento das dívidas e, por fim, partilhar o restante dos bens entre os herdeiros.

O juízo que conduz o processo do inventário poderá ter que decidir questões jurídicas relacionadas com a definição de quais bens integram a herança e sobre quem são os herdeiros.

 

O juízo do inventário poderá decidir toda e qualquer questão jurídica relacionada com a herança ou com os herdeiros?

NÃO.

• O juízo do inventário decide todas as questões que dependerem apenas de prova documental.

• Se os fatos precisarem ser comprovados por outros meios de prova (exs: testemunha, perícia etc.), então, neste caso, deverão ser decididas pelas vias ordinárias (ex: vara cível, vara de família etc, a depender da lei de organização judiciária). É o que prevê o art. 612 do CPC/2015:

Art. 612. O juiz decidirá todas as questões de direito desde que os fatos relevantes estejam provados por documento, só remetendo para as vias ordinárias as questões que dependerem de outras provas.

 

Essa regra existe porque o procedimento especial de inventário não foi feito para nele haver dilação probatória. As provas produzidas e analisadas são apenas documentais.

Vale ressaltar que, se a questão envolver tema jurídico de alta complexidade, mas que possa ser decidido apenas com base em prova documental, neste caso deverá ser decidida no juízo do inventário.

Questões denominadas de alta indagação, que exijam ampla cognição probatória para serem apuradas e julgadas, devem ser decididas em ação própria.

Naturalmente, isso só acontecerá com as questões de complexidade fática e carecedora de provas. Em outras palavras, quando a questão demandar a produção de provas, o juiz a remeterá para as vias ordinárias.

 

Acesso e arrecadação dos bens digitais não é considerado questão de alta indagação para que se tenha que remeter às vias ordinárias

O acesso e arrecadação de bens digitais não se enquadram como questão de alta indagação.

São atos integrativos do procedimento do inventário que não carecem de outras provas além da documental.

O acesso dos herdeiros aos bens digitais deixados pelo falecido não precisa da prolação de nenhuma decisão de alta complexidade porque esses bens pertencem ao falecido.

Não se trata de questão de alta indagação, porque basta que o juiz determine atos executórios para se identificar, classificar e avaliar os bens digitais encontrados no computador do falecido.

 

Impacto da era digital no direito sucessório

A era digital provocou no comportamento social uma profunda modificação no modo de aquisição, armazenamento, posse e uso de bens. Como consequência, altera-se também o modo de os identificar e os partilhar. São os chamados bens digitais, que merecem ser reconhecidos juridicamente.

Considerando que os aparelhos eletrônicos em que armazenados os bens digitais costumam ser protegidos por senhas, muitas vezes não compartilhadas pelo falecido com seus herdeiros, a atividade judicial em Direito Sucessório deve garantir que não haja prejuízo ocasionado pela impossibilidade de acesso aos bens digitais.

 

Transmissibilidade dos bens digitais

Vale ressaltar que nem todos os bens digitais poderão ser transmitidos: o limite é o respeito à intimidade e à vida privada do falecido e de terceiros.

Bens digitais que possam ferir os direitos da personalidade não poderão ser entregues aos herdeiros. Como se vê, a alteração provocada pela era digital é tão profunda que afetou, inclusive, o princípio da Saisine.

É necessário, portanto, equilibrar dois direitos fundamentais: o direito dos herdeiros à transmissão de todos os bens do falecido (art. 5º, XXX, da CF) e o respeito aos direitos de personalidade do falecido e de terceiros.

Como fazer isso já que existe previsão na lei de um procedimento nesse sentido? Como os herdeiros podem acessar os bens digitais deixados por uma pessoa falecida, especialmente quando esses bens estão protegidos por senhas e armazenados em dispositivos eletrônicos, como computadores e celulares?

 

Incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais

Como a legislação brasileira ainda não regulamenta de forma específica essa situação, a Ministra Nancy Andrighi sugeriu que, sempre que os herdeiros precisarem acessar bens digitais e não tiverem a senha do falecido, o juiz do inventário deve instaurar um incidente processual específico dentro do próprio processo de inventário. Esse incidente se chamaria “incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais”.

A finalidade desse incidente seria permitir o acesso controlado ao conteúdo dos dispositivos do falecido, como forma de apurar a existência de bens com valor patrimonial, como contas em serviços de armazenamento, criptoativos, contratos digitais ou até mesmo informações financeiras relevantes.

 

Mas o que é esse incidente processual?

No direito processual, um incidente é uma espécie de procedimento acessório dentro de outro processo maior (no caso, o inventário) que serve para resolver uma questão específica sem interromper o andamento do processo principal. É como se o juiz abrisse uma “aba paralela” no processo apenas para tratar de um assunto específico, que precisa de atenção especial.

Nesse incidente, o juiz pode, por exemplo, nomear um profissional especializado em tecnologia da informação, chamado de inventariante digital. Esse profissional não substitui o inventariante principal (que é quem administra a herança), mas atua como um auxiliar técnico do juiz, com a tarefa de acessar os dispositivos do falecido de forma técnica e sigilosa, elaborar um relatório sobre o que foi encontrado e identificar quais bens digitais podem ser partilhados e quais não podem ser transmitidos por envolverem aspectos íntimos ou personalíssimos.

Nas palavras da Ministra:

“o incidente processual, devidamente apensado aos autos (associado à aba do processo eletrônico) de inventário, será conduzido pelo juiz, paralelo ao inventário, com assessoria de profissional, com expertise digital adequada para buscar bens digitais no computador do falecido, que por ora pode-se denominar inventariante digital.”

 

A criação desse incidente seria fundamentada no poder geral do juiz de adequar o processo (art. 139 do CPC). Com a sua instauração seria possível que:

• O inventário principal continue tramitando normalmente quanto aos bens analógicos;

• Os dispositivos eletrônicos sejam analisados por um especialista em ambiente controlado;

• O juiz faça a triagem entre conteúdos transmissíveis e não transmissíveis;

• Os herdeiros recebam acesso apenas aos bens digitais que não violem direitos de personalidade.

 

Como funciona esse inventariante digital?

O inventariante digital aproxima-se analogicamente à figura do perito judicial, embora nessa hipótese não se trate de tradicional perícia, mas de procedimentos de acesso técnico e identificação de todos os bens digitais encontrados no aparelho pertencente ao falecido.

O inventariante digital não se confunde com o inventariante expressamente previsto no Código de Processo Civil, nomeado no processo de inventário para representar o espólio e cuidar da partilha. Por isso, o inventariante digital não se submeterá à ordem de preferência prevista no art. 617 do CPC. O profissional deverá ter especial expertise digital e ser da confiança do juiz. Haverá, pois, dois inventariantes, com encargos específicos, porque as funções são diferenciadas, devendo haver respeito aos limites de atividade de cada um.

O inventariante digital terá acesso franqueado a todos os bens digitais do falecido para preparar minucioso relatório de tudo o que encontrar no computador. Referido relatório deverá ser encaminhado ao juiz do inventário, que fará a identificação e classificação dos bens digitais encontrados e, após, decidirá quais serão transmissíveis e quais não poderão ser transmitidos aos herdeiros, porque violam os direitos da personalidade do falecido ou de terceiros.

A função do inventariante digital é muito específica, porque ele tomará conhecimento de todo o conteúdo existente no aparelho do falecido.

O exercício da atividade de inventariante digital exige respeito à confidencialidade, podendo ele ser responsabilizado civil e criminalmente por eventual violação ao segredo de justiça.

Outro traço que diferencia o inventariante digital é o fato de ele não representar o espólio, mas prestar o serviço especializado ao juiz do inventário.

O STJ entendeu que NÃO se trata de questão de alta indagação. A Corte reconheceu que o acesso a bens digitais integra o escopo do inventário, pois todos os bens — inclusive os digitais — devem ser identificados, classificados e avaliados.

Assim, a solução foi estabelecer a possibilidade de instauração de um incidente processual, dentro do próprio inventário, para que um inventariante digital, com conhecimento técnico adequado, auxilie o juiz na identificação de bens digitais, respeitando a intimidade do falecido e de terceiros.

Portanto, não é necessário ingressar com uma nova ação judicial apenas para acessar os dispositivos — o próprio juízo do inventário pode (e deve) resolver essa questão por meio desse novo mecanismo processual.

 

Em suma:

Na hipótese de o falecido deixar bens digitais dos quais os herdeiros não tenham a senha de acesso, necessário se faz a instauração de incidente processual de identificação, classificação e avaliação de bens digitais, paralelo ao processo de inventário, a fim de que o juízo possa analisar e diligenciar acerca do conteúdo e da possibilidade de partilha de eventuais bens digitais localizados. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.124.424-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 9/9/2025 (Info 862).

 

Caso concreto

No caso concreto, o STJ deu parcial provimento ao recurso para que os autos retornem ao primeiro grau de jurisdição e ali seja instaurado o incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais titularizados pelos falecidos.


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