quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A ação proposta contra o agente público que praticou ato de tortura durante o regime militar é imprescritível?

A AÇÃO DE INDENIZAÇÃO PROPOSTA CONTRA A UNIÃO POR DANOS DECORRENTES DE TORTURA OCORRIDA DURANTE O REGIME MILITAR É IMPRESCRITÍVEL (SÚMULA 647-STJ)

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi vítima de intensa perseguição política praticada pelo governo federal durante a época do regime militar instalado no Brasil em 1964.

Ele sofreu prejuízos econômicos em razão dessas perseguições, além de ter sido torturado.

Esses fatos ocorreram em 1969.

Em 2001, João ajuizou ação de indenização contra a União pedindo a reparação pelos danos morais e materiais que sofreu durante o período.

A União alegou que a pretensão estaria prescrita, considerando que as ações contra o Poder Público devem ser propostas dentro do prazo de 5 anos, nos termos do art. 1º do Decreto 20.910/1932.

 

A pretensão encontra-se prescrita?

NÃO.

As ações de indenização por danos morais e materiais decorrentes de perseguição, tortura e prisão, por motivos políticos, ocorridas durante o regime militar, são imprescritíveis.

Para esses casos, não se aplica o prazo prescricional de 5 anos previsto no art. 1º do Decreto 20.910/1932.

Tais demandas são imprescritíveis porque se referem a um período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção, tendo havido incontáveis abusos e violações dos direitos fundamentais, especialmente do direito à dignidade da pessoa humana (STJ. 1ª Turma. AgRg no Ag 1391062/RS, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 09/08/2011).

Nessa época, as vítimas não tinham a plena liberdade para exercer suas pretensões, razão pela qual não há que se falar em prescrição.

O STJ editou uma súmula espelhando essa conclusão:

Súmula 647-STJ: São imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar.

 

A AÇÃO DE INDENIZAÇÃO PROPOSTA CONTRA O AGENTE PÚBLICO TORTURADOR ESTÁ SUJEITA A PRAZO PRESCRICIONAL

Imagine a seguinte situação hipotética:

Pedro foi jornalista entre os anos de 1968 e 1971 (ditadura militar) e era integrante do Partido Operário Comunista.

Em 15/07/1971, Pedro foi levado à força por agentes do DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), órgão subordinado ao Exército.

A família de Pedro não teve notícias dele até que, quatro dias depois, soube de seu falecimento.

Posteriormente, foi constatado que Pedro foi torturado por Antônio (comandante do DOI-CODI) e seus subordinados, durante vinte e quatro horas, no “pau-de-arara”, tendo morrido em razão dos ferimentos.

A Lei nº 6.683/79 anistiou todos os que cometeram crimes políticos ou praticados por motivação política no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.

Em 2010, Francisca, companheira de Pedro, ajuizou ação de indenização por danos morais contra Antônio.

Na petição inicial, defendeu a imprescritibilidade da pretensão.

Em contestação, o réu alegou, dentre outros argumentos, a ocorrência da prescrição.

 

O que decidiu o STJ? Essa pretensão é imprescritível?

NÃO.

Em decorrência da natureza abjeta, repugnante e revoltante dos atos de tortura praticados por razões políticas, foi editada a Súmula nº 647/STJ: São imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar.

Vale ressaltar, contudo, que a imprescritibilidade não se aplica às ações em que se pretende a responsabilização direta do agente público que praticou o ato de tortura. Não se pode dizer que essa pretensão seja imprescritível porque isso ensejaria a perpetuidade dos conflitos entre indivíduos, recaindo as condenações sobre os herdeiros do causador do dano nos limites das forças da herança. Ademais, decidir pela imprescritibilidade seria ignorar a luta histórica pela conquista da anistia e a redemocratização do País e desprezar os princípios de reconciliação e de pacificação nacional, expressamente previstos nos art. 2º da Lei nº 9.140/95, e art. 1º da Lei nº 12.528/2011:

Art. 2º A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia.

 

Art. 1º É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

 

A interpretação de que essa pretensão seria imprescritível contraria a essência de todo o processo histórico que culminou com a edição da Lei nº 6.683/79, sem a qual possivelmente não teria havido na época a transição pacífica para a democracia, nem a Constituição de 1988 e muito menos as leis posteriores, nas quais o Poder Público reconheceu a prática dos gravíssimos atos praticados por seus agentes e assumiu a responsabilidade pelo pagamento das indenizações ao atingido ou seus familiares.

A pretendida imprescritibilidade de pretensões condenatórias, no âmbito do direito privado, atua contra a paz social, ensejando exatamente o efeito inverso ao que visou a Lei da Anistia.

Nesse sentido, o STF, ao julgar sob o rito da repercussão geral o RE 669.069MG (Tema 666), assentou que a regra constitucional de imprescritibilidade da pretensão de ressarcimento da Fazenda em face de qualquer agente, servidor ou não, que cause prejuízo ao erário (art. 37, § 5º, da CF/88) não se aplica à reparação de danos decorrente de ilícito civil.

 

Em suma:

A imprescritibilidade não se aplica às ações em que se pretende a responsabilização direta do agente público que praticou ato de tortura durante o regime militar. 

STJ. 4ª Turma. REsp 2.054.390-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. para acórdão Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 29/11/2023 (Info 799).

 

Voltando ao caso concreto:

A ação foi ajuizada no dia 23/8/2010, mais de 22 anos depois da Constituição.

O art. 8º do ADCT concedeu anistia, com os direitos dela decorrentes, aos prejudicados por atos de exceção e de perseguição política, como foi o caso de Pedro. Logo, não havia obstáculo algum que impedisse a viúva de ter ingressado com a ação logo após a promulgação da CF/88.

 

DOD Plus – informações complementares

No caso concreto, a autora buscava uma sentença condenatória.

Se a pretensão fosse meramente declaratória, não haveria que se falar em prescrição, conforme já decidiu o próprio STJ:

(...) 2. Prescrição: Inocorrência de prescrição de pretensão meramente declaratória da existência de atos ilícitos e de relação jurídica de responsabilidade do réu por danos morais decorrentes da prática de tortura. Conforme a jurisprudência do STJ, mesmo as pretensões reparatórias por violações a direitos humanos, como as decorrentes de tortura, não se revelam prescritíveis. Com maior razão, é imprescritível a pretensão meramente declaratória nesses casos.

3. Legitimidade e interesse na apuração da verdade: Conjugação dos esforços estatal e individual na apuração dos graves fatos ocorridos, após 1964, no período do regime militar brasileiro. Nesse desiderato comum de apuração da verdade, criaram-se a "Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos", mediante a Lei 9.140/1995, e a "Comissão da Verdade", com o objetivo de promover a busca de informações e instrumentos para elucidar as graves violações contra os direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar brasileira. A par dessa missão institucional assumida pela União, deve ser reconhecido também o direito individual daqueles que sofreram diretamente as arbitrariedades cometidas durante o regime militar de buscar a plena apuração dos fatos, com a declaração da existência de tortura e da responsabilidade daqueles que a perpetraram.

4. Lei da Anistia: O âmbito de incidência da regra do art. 1º da Lei 6.683/79 restringe-se aos crimes políticos ou (crimes) conexos com estes e aos crimes eleitorais. Obstada, pois, a persecução penal daqueles que cometeram crimes contra seus opositores ou pretensos opositores políticos. A interpretação da Lei de Anistia, porém, deve ficar restrita às hipóteses expressamente estabelecidas pelo legislador, não podendo o Poder Judiciário ampliar o espectro de alcance do ato anistiador a situações que sequer foram cogitadas no momento da edição da Lei 6.683/79.

STJ. 3ª Turma. REsp 1434498-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 09/12/2014.


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