Dizer o Direito

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Em comarcas onde houver sala passiva, cabe ao juiz deprecado apenas viabilizar a estrutura física e logística para a audiência, devendo o juiz que processa ouvir as partes e as testemunhas diretamente por meio de videoconferência

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina é trabalhadora rural que reside no município de Apiaí, no interior de São Paulo.

Ela ingressou com ação contra o INSS pedindo a concessão de aposentadoria rural por idade.

A ação foi proposta no Juizado Especial Federal de Itapeva.

 

No Município de Apiaí não tem Justiça Federal.

Itapeva é um município próximo a Apiaí.

De acordo com um Provimento do TRF3, a Vara Federal da Subseção Judiciária de Itapeva possui jurisdição sobre vários municípios próximos, dentre eles Apiaí.

Como Regina tem domicílio em Apiaí (que não tem vara federal), ela deve propor sua ação no JEF de Itapeva, que é a sede da Justiça Federal mais próxima com competência para julgar esse tipo de causa.

Se quiser entender melhor como funcionam essas regras de competência:

https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/8713/se-uma-acao-contra-o-inss-estava-tramitando-na-justica-estadual-por-forca-da-competencia-federal-delegada-art-109-3o-da-cf-as-alteracoes-promovidas-pela-lei-138762019-nao-irao-influenciar-neste-processo?palavra-chave=13.876%2F2019

 

Durante a instrução processual, o juiz federal de Itapeva expediu carta precatória ao Juízo de Direito da Vara Única de Apiaí (Justiça Estadual) para que este realizasse a oitiva das testemunhas arroladas por Regina, todas residentes naquele município.

 

Argumentos do juízo estadual de Apiaí para recusar o cumprimento da precatória

O juiz estadual de Apiaí, ao receber a carta precatória, recusou-se a cumpri-la nos termos solicitados.

O magistrado argumentou que não havia necessidade da carta, pois o juiz federal poderia ele mesmo realizar a oitiva das testemunhas por videoconferência, fazendo uso da sala passiva que existe no fórum da Comarca de Apiaí.

 

O que é a sala passiva?

A sala passiva é um espaço físico instalado dentro do fórum da comarca, equipado com recursos de videoconferência, utilizado para que as partes e testemunhas domiciliadas no município sejam ouvidas, por videoconferência, por juízes que estejam em outra comarca.

Essa sala funciona como uma extensão do juízo deprecante, permitindo que o magistrado responsável pelo processo conduza, à distância, atos instrutórios como oitivas, sem necessidade de deslocamento das partes até a sede da vara onde tramita a ação.

Na prática, a sala passiva conta com computador, câmera, microfone e conexão de internet adequada para transmissão em tempo real.

A testemunha ou a parte comparece à sala passiva na comarca de sua residência, enquanto o juiz deprecante permanece em sua sala na sede da vara, conduzindo a audiência por videoconferência. Um servidor do próprio fórum fica responsável por receber as pessoas, verificar a identidade, acomodá-las na sala e garantir o funcionamento dos equipamentos.

Essa estrutura visa preservar o princípio da identidade física do juiz, garantir maior celeridade processual e facilitar o acesso à justiça, especialmente em regiões com longas distâncias entre comarca de residência e sede da vara judicial.

A utilização da sala passiva pode ocorrer tanto entre juízes de diferentes comarcas da Justiça Estadual, quanto entre juízos federais e estaduais, dentro do regime de cooperação judiciária previsto nos arts. 67 a 69 do CPC.

 

Desse modo, o juiz de Apiaí argumentou que a Comarca possui sala passiva instalada e em pleno funcionamento. Isso significa que existia meio técnico adequado para que o juiz federal de Itapeva realizasse a oitiva das testemunhas diretamente, por videoconferência, sem necessidade de delegar a condução do ato ao juízo estadual.

Além disso, ele invocou a Resolução 105/2010 do CNJ, alterada pela Resolução 326/2020, que estabelece preferência pela inquirição por videoconferência quando a testemunha não residir na sede do juízo processante:

Art. 3º Quando a testemunha arrolada não residir na sede do juízo em que tramita o processo, deve-se dar preferência, em decorrência do princípio da identidade física do juiz, à expedição da carta precatória para a inquirição pelo sistema de videoconferência.

§ 1º O testemunho por videoconferência deve ser prestado na audiência una realizada no juízo deprecante, observada a ordem estabelecida no art. 400, caput, do Código de Processo Penal.

§ 2º A direção da inquirição de testemunha realizada por sistema de videoconferência será do juiz deprecante.

 

Juízo federal suscitou conflito

O juízo federal de Itapeva, por sua vez, suscitou conflito negativo de competência perante o STJ, alegando que o juízo deprecado não poderia recusar o cumprimento da carta precatória por motivo não previsto no art. 267 do CPC, que estabelece rol taxativo de hipóteses de recusa:

Art. 267. O juiz recusará cumprimento a carta precatória ou arbitral, devolvendo-a com decisão motivada quando:

I - a carta não estiver revestida dos requisitos legais;

II - faltar ao juiz competência em razão da matéria ou da hierarquia;

III - o juiz tiver dúvida acerca de sua autenticidade.

Parágrafo único. No caso de incompetência em razão da matéria ou da hierarquia, o juiz deprecado, conforme o ato a ser praticado, poderá remeter a carta ao juiz ou ao tribunal competente.

 

O STJ concordou com os argumentos do juízo federal ou estadual? Existindo sala passiva de videoconferência na comarca onde reside a testemunha, o juiz federal pode expedir carta precatória para que o juiz estadual realize a oitiva?

NÃO. No caso concreto, o STJ concordou com os argumentos do juízo estadual (deprecado).

Existindo sala passiva de videoconferência na comarca onde reside a testemunha, o juiz do local onde tramita o processo não pode expedir carta precatória para que o juiz estadual realize a oitiva.

Nesses casos, a carta precatória é expedida, mas apenas para que o juízo deprecado faça os atos preparatórios, ou seja, para que ele disponibilize a sala passiva no dia e hora agendados, faça a intimação das partes e testemunhas e, enfim, forneça o apoio logístico.

A condução da audiência propriamente dita, com a inquirição das testemunhas e a coleta dos depoimentos, deve ser realizada pelo próprio juiz federal deprecante, por videoconferência, a partir de sua sala na sede da vara.

Veja abaixo um resumo dos argumentos do STJ:

 

Jurisprudência anterior do STJ e distinguishing

Em casos análogos, o STJ vinha adotando o entendimento de que a prática de atos processuais por videoconferência seria faculdade do juízo deprecante, ou seja, ele poderia escolher se queria deprecar tudo (juízo estadual faça a oitiva também) ou apenas os atos de apoio à audiência por videoconferência.

Ocorre que, em julgamento ocorrido no dia 8 de maio de 2025, a Primeira Seção do STJ mudou de posição e passou a entender que, havendo sala passiva na comarca, os atos instrutórios devem ser realizados diretamente pelo juiz competente por meio de videoconferência, limitando-se a deprecação aos atos preparatórios:

Havendo sala passiva instalada na comarca, a deprecação deve limitar-se à disponibilização dessa estrutura e aos atos preparatórios necessários, cabendo ao juiz competente realizar diretamente a oitiva das partes e testemunhas por videoconferência.

A expedição excessiva e desproporcional de cartas precatórias, quando há meios tecnológicos disponíveis para a prática direta dos atos instrutórios pelo juízo competente, viola o dever de cooperação e representa indevida transferência de atribuições.

A realização de audiência por videoconferência com uso de sala passiva concretiza o princípio da identidade física do juiz, melhora o acesso à justiça e atende às diretrizes de organização judiciária decorrentes da Lei 13.876/2019 e da EC 103/2019.

STJ. 1ª Seção. CC 209.623/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 8/5/2025.

 

Princípio da cooperação nacional

O STJ fundamentou sua decisão no princípio da cooperação nacional previsto no art. 67 do CPC:

Art. 67. Aos órgãos do Poder Judiciário, estadual ou federal, especializado ou comum, em todas as instâncias e graus de jurisdição, inclusive aos tribunais superiores, incumbe o dever de recíproca cooperação, por meio de seus magistrados e servidores.

 

Esse princípio impõe aos órgãos do Poder Judiciário o dever de cooperar entre si para a prestação de uma tutela jurisdicional mais célere e efetiva, viabilizando a obtenção de resultados máximos com menor dispêndio de tempo e custos.

 

Resolução 105/2010 do CNJ e o princípio da identidade física do juiz

Deve-se mencionar também a Resolução 105/2010 do CNJ.

O art. 3º dessa resolução estabelece que, quando a testemunha arrolada não residir na sede do juízo em que tramita o processo, deve-se dar preferência, em decorrência do princípio da identidade física do juiz, à expedição de carta precatória para inquirição pelo sistema de videoconferência.

O § 2º do mesmo dispositivo é expresso ao determinar que a direção da inquirição de testemunha realizada por sistema de videoconferência será do juiz deprecante. Apenas de maneira excepcional, quando não for possível o cumprimento da carta precatória pelo sistema de videoconferência, é que se admite que o juiz deprecado proceda à inquirição da testemunha, conforme previsto no art. 3º, § 3º, III, da mesma resolução:

Art. 3º (...)

§ 3º A carta precatória deverá conter:

(...)

III – A ressalva de que, não sendo possível o cumprimento da carta precatória pelo sistema de videoconferência, o juiz deprecado proceda à inquirição da testemunha em data anterior à designada para a realização, no juízo deprecante, da audiência una. (Redação dada pela Resolução nº 326, de 26.6.2020). 

 

Essa resolução evidencia que se deve buscar a preservação do princípio da identidade física do juiz, segundo o qual o magistrado que colhe a prova oral deve ser, preferencialmente, o mesmo que proferirá a sentença. Esse princípio tem especial importância em ações previdenciárias de aposentadoria rural por idade, nas quais a prova testemunhal é frequentemente decisiva e a valoração da credibilidade das testemunhas depende da percepção direta do magistrado que conduz a audiência.

 

Limitação do objeto da carta precatória

Assim, nos locais em que existe sala passiva de videoconferência, a deprecação deve limitar-se à disponibilização dessa sala em data e hora previamente agendadas, à intimação das partes e testemunhas e aos demais atos preparatórios necessários.

A condução da audiência propriamente dita, com a inquirição das testemunhas e a coleta dos depoimentos, deve ser realizada pelo próprio juiz deprecante, por videoconferência, a partir de sua sala na sede da vara.

O magistrado efetivamente competente é quem deve cumprir, sequencialmente, seu dever de oitiva das partes e testemunhas.

 

Em suma:

Nos locais em que existente sala passiva, a deprecação há de limitar-se à disponibilização desta em data e hora previamente agendada, intimação de quem necessário e demais atos preparatórios de modo que o magistrado efetivamente competente cumpra, sequencialmente, seu dever de oitiva das partes e testemunhas. 

STJ. 1ª Seção. EDcl no AgInt no CC 196.645-SP, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 14/10/2025 (Info 870).


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