Dizer o Direito

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial, mesmo no Júri

Imagine a seguinte situação hipotética:

Carlos foi morto com tiros de arma de fogo quando estava na estrada dirigindo seu carro.

A polícia iniciou uma investigação que tinha João como principal suspeito.

A investigação concluiu que João devia R$ 200 mil a Paulo. Como João estava sendo cobrado e não tinha como pagar, planejou matar seu credor.

Ocorre que houve uma confusão entre os veículos de Carlos e Paulo, que eram muito parecidos. Em outras palavras, Carlos foi morto porque se acreditava que era o veículo de Paulo.

Cerca de quatro meses após a morte de Carlos, Amarildo, amigo da família da vítima, relatou à polícia uma experiência: durante a madrugada, sentiu-se angustiado e começou a escrever involuntariamente em um caderno. Segundo Amarildo, que não é espírita, tratava-se de uma manifestação do espírito de Carlos através dele (psicografia).

A carta psicografada mencionava que a família não deveria buscar vingança, pois sua morte teria sido acidental. O responsável seria João mesmo, mas o alvo seria Paulo. Amarildo entregou a carta à polícia, que a juntou aos autos do inquérito.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João.

A acusação juntou aos autos carta psicografada.

A carta, apesar de falar que a vítima foi morta por engano, reforçava que a tese de que o autor foi João. Logo, era prejudicial ao réu.

Diante disso, a defesa impetrou habeas corpus pedindo o desentranhamento da carta psicografada juntada como prova nos autos. Argumentou que a fé, religião, crença ou rituais de qualquer dos envolvidos no processo penal não pode balizar a admissão de objeto inerente a ritualística própria de cada religião para servir como prova ou meio de prova para o convencimento de jurados leigos.

A ordem foi denegada pelo Tribunal de Justiça, que afirmou o seguinte: “a juntada de um documento psicografado, que caracteriza uma prova indireta, por si só, não fere qualquer preceito legal, tampouco o princípio do contraditório ou a laicidade do Estado, e, a depender das circunstâncias, não pode ser considerado produzido por meios ilícitos, não se enquadrando, portanto, no disposto pelo artigo 5.º, LVI, da Constituição Federal”.

O réu interpôs, então, recurso ordinário constitucional dirigido ao STJ sustentando que a carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial, devendo ser desentranhada dos autos.

 

O STJ deu provimento ao recurso? A carta psicografada foi desentranhada?

SIM.

Vale ressaltar que, apesar de esse ser um tema comum em livros e até em Tribunais de Justiça, essa foi a primeira vez que a admissibilidade de carta psicografada em processo penal foi analisada detidamente pelo STJ.

 

Concepção racional da prova e Tribunal do Júri

Historicamente, o nosso direito passou de um sistema de prova legal ou tarifada (em que a lei atribuía valores fixos e hierárquicos para cada tipo de prova) para o sistema de livre apreciação da prova, que é o modelo vigente atualmente no Brasil.

No sistema antigo, a prova era considerada válida se atendesse a certos rituais formais, como, por exemplo, número mínimo de testemunhas ou confissão expressa, independentemente da sua conexão lógica com a verdade dos fatos. Era um modelo formalista e arcaico.

Com o tempo, o direito passou a exigir que a decisão fosse baseada não em formas, mas em racionalidade: os fatos devem ser apurados por meio de meios de prova que façam sentido lógico, e o juiz deve justificar por que acredita que determinado fato ocorreu com base na prova.

Esse sistema está previsto expressamente no art. 155 do CPP:

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as restrições estabelecidas na lei civil.

 

Além disso, a Constituição Federal, no art. 93, IX, exige que todas as decisões do Poder Judiciário sejam fundamentadas, o que reforça que a decisão deve ser racional e controlável.

Vale ressaltar, contudo, que a liberdade judicial na apreciação das provas deve ser guiada por critérios racionais de apuração dos fatos.

A liberdade concedida ao julgador para avaliar as provas existe justamente para permitir que o juízo sobre os fatos seja construído de maneira lógica e fundamentada. O órgão julgador não possui liberdade para formar convicções irracionais.

O princípio da livre apreciação da prova deve ser então ser guiado pela concepção racionalista da prova. Isso significa que a decisão do julgador precisa se apoiar em critérios gerais de racionalidade e coerência, e não apenas em impressões subjetivas.

Essa exigência se aplica, inclusive, para julgamentos promovidos pelo Tribunal do Júri.

Assim, o julgamento popular pelo Júri deve ser epistemicamente* orientado, razão pela qual é necessário um juízo de admissibilidade rigoroso, que evite a incorporação de provas inidôneas no processo que conduzam a veredictos irracionais.

 

* A palavra “epistêmica” vem de epistemologia, que é o ramo da filosofia que estuda o conhecimento, ou seja, como conhecemos as coisas, como sabemos se algo é verdadeiro, quais são os limites do nosso conhecimento. No contexto jurídico, refere-se à capacidade de uma prova gerar conhecimento confiável sobre os fatos.

 

Considerando que os jurados não têm o dever de motivar seus veredictos e apenas respondem “sim” ou “não” aos quesitos formulados pelo juiz presidente, torna-se essencial controlar quais provas podem ser apresentadas ao Tribunal do Júri. Esse controle de admissibilidade é fundamental para garantir a racionalidade das decisões.

Assim, devem permanecer nos autos apenas as provas que permitam tirar conclusões lógicas e fundamentadas sobre as versões dos fatos apresentadas no processo. Em sentido contrário, devem ser excluídos os elementos probatórios que só se relacionem às hipóteses das partes por meio de inferências inválidas, enganosas ou sem base racional.

 

A idoneidade epistêmica como requisito de admissibilidade da prova

Para uma prova ser admitida no processo, é preciso cumprir dois requisitos ao mesmo tempo (requisitos cumulativos):

1) relevância da prova;

2) legalidade da prova (ou seja, licitude e legitimidade do meio de obtenção e produção).

 

A relevância da prova divide-se em uma dupla dimensão:

• dimensão lógico-jurídica: a prova deve ter ligação com os fatos que realmente importam para o processo, isto é, com o thema probandum. Uma prova só é pertinente quando ajuda a esclarecer algum ponto que precisa ser demonstrado para que o juiz possa decidir a causa. Se o fato que ela pretende mostrar não tiver relação com a controvérsia, a prova é irrelevante e não deve ser admitida.

• dimensão epistemológica: a prova deve ter uma capacidade mínima de produzir conhecimento confiável sobre o fato alegado. Mesmo que o fato seja importante, a prova não será relevante se o meio utilizado para produzi-la for totalmente incapaz de gerar inferências racionais, como adivinhações, práticas mágicas ou depoimentos claramente não confiáveis. Assim, a prova só é considerada relevante quando trata de um fato pertinente e quando o meio de obtenção tem pelo menos um grau mínimo de fiabilidade.

 

Exemplos de prova epistemicamente inidônea:

• o “depoimento” de um papagaio. Mesmo o papagaio falando, não há como, racionalmente, confiar naquilo como demonstração fática;

• provas baseadas em “magia”, “oráculos”, radiestesia, espiritismo etc. Esses meios não permitem um controle racional intersubjetivo adequado.

 

Se o meio de prova é totalmente desprovido de mínima fiabilidade, por absoluta inidoneidade epistêmica, ele deve ser inadmitido.

Vale ressaltar que a fiabilidade da prova não é algo binário (não é só “fiável” ou “não fiável”). É um atributo gradual: a prova pode ser mais ou menos fiável, em diferentes graus.

Além disso, ao examinar a idoneidade epistêmica na fase de admissibilidade, o juiz deve verificar apenas se há mínima aptidão do meio de prova para corroborar o fato pertinente ou relevante. Ou seja, basta um grau mínimo de fiabilidade. Somente quando houver inadequação epistêmica absoluta e manifesta ou fiabilidade inexistente, ínfima ou desprezível, é que se justifica a inadmissão da prova (como nos exemplos do papagaio, magia etc.). Se a prova tiver fiabilidade baixa ou questionável, mas não zero, ela deve ser admitida, e o problema será avaliado depois, na fase de valoração.

 

O controle da idoneidade epistêmica das provas no procedimento especial do Tribunal do Júri

O controle da idoneidade epistêmica das provas é ainda mais importante nos processos submetidos ao Tribunal do Júri, porque, ao contrário do que ocorre nos julgamentos realizados por juízes togados, os jurados não apresentam decisões motivadas nem deliberam formalmente entre si.

Nos processos conduzidos por juízes togados, a mesma pessoa verifica a admissibilidade e faz a valoração da prova, podendo rejeitar conclusões irracionais no momento de fundamentar a sentença, mesmo que uma prova sem fiabilidade tenha sido admitida. Por isso, nesses casos, excluir uma prova manifestamente inidônea, como o “depoimento” de um papagaio, pode não trazer grande benefício, pois o juiz togado tem condições de reconhecer sua inutilidade posteriormente, sem prejuízo ao julgamento.

Já no Tribunal do Júri, como os jurados não motivam seus veredictos, é essencial que o juiz presidente faça um filtro rigoroso e impeça que o corpo de jurados tenha contato com provas irrelevantes ou totalmente destituídas de confiabilidade, evitando que isso conduza a decisões irracionais.

Esse controle estrito vale para todas as partes, pois nenhuma delas tem direito a produzir provas impertinentes, irrelevantes ou epistemicamente inidôneas, já que a racionalidade das decisões judiciais deve ser preservada independentemente de quem seja favorecido.

Embora no Tribunal do Júri exista a garantia da plenitude de defesa, essa garantia não autoriza a defesa a violar regras processuais nem a produzir provas irracionais.

 

A admissibilidade da carta psicografada no procedimento do Tribunal do Júri

A psicografia consiste no ato pelo qual uma pessoa viva (referida como médium) declara ou transmite mensagens que haveriam sido passadas a ela por uma pessoa morta, as quais podem se materializar pelo médium em um documento escrito, comumente denominado “carta psicografada”.

Ao longo da História, as hipóteses de existência de vida após a morte (afterlife) e de possibilidade de comunicação com pessoas mortas (mediunidade) mobilizaram não só o debate filosófico, mas também experimentos científicos voltados a verificá-las. Todavia, nenhum desses experimentos logrou êxito em fornecer resultados sólidos e embasados em métodos confiáveis que permitissem afirmar ou refutar tais hipóteses. Até hoje, não houve nenhuma empreitada científica frutífera de comprovação dos substratos teóricos da psicografia, notadamente a vida pós-morte e a mediunidade.

Assim, acreditar nela é um ato de fé, e atos de fé não podem funcionar como atos de prova, pois a prova exige demonstração racional, enquanto a fé prescinde dessa racionalidade.

Dessa forma, uma carta psicografada carece de idoneidade epistêmica, pois não existe conhecimento racional sobre a possibilidade do fenômeno que lhe dá origem. Por isso, a carta psicografada não alcança sequer o grau mínimo de fiabilidade necessário para ser admitida como prova judicial. Alguns autores afirmam que a carta psicografada seria até mesmo uma prova ilícita, mas o ponto central não é violação à liberdade religiosa ou à laicidade estatal: o vício essencial está na irrelevância epistemológica, ou seja, na total falta de confiabilidade do meio de prova.

Importante notar que a psicografia, por si só, não decorre de nenhum ato ilícito: sua obtenção não viola direitos fundamentais, diferentemente, por exemplo, de uma busca domiciliar ilegal. O problema não está na licitude, mas na fiabilidade. Por isso, a carta psicografada não contamina outras provas que eventualmente venham a ser encontradas a partir dela. Assim como ocorre com uma denúncia anônima, a carta psicografada pode servir, no máximo, como elemento de informação durante a investigação preliminar: um ponto de partida para verificar fatos por outros meios legítimos e confiáveis. Porém, ela não tem valor probatório e não pode ser usada para fundamentar conclusões no processo judicial.

No Tribunal do Júri, essa inadmissibilidade é ainda mais importante, porque os jurados não motivam seus veredictos; permitir que tenham acesso a uma prova totalmente inidônea criaria o risco de julgamentos irracionais.

Por isso, a carta psicografada deve ser desentranhada dos autos, evitando que seja valorada pelos jurados e garantindo que o processo seja guiado por padrões mínimos de racionalidade.

 

Em suma:

A carta psicografada não pode ser admitida como prova no processo judicial, por se tratar de meio desprovido de mínima idoneidade epistêmica para a corroboração racional de enunciados fáticos, devendo ser desentranhada dos autos. 

STJ. 6ª Turma. RHC 167.478-MS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado dia 21/10/2025 (Info 870).


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