quinta-feira, 28 de junho de 2012

É inconstitucional a lei obrigar que o regime inicial de cumprimento de pena para os condenados por crimes hediondos ou equiparados seja o fechado



Um dos temas mais discutidos no direito penal nos últimos anos foi sobre o regime de cumprimento de pena para os condenados por tráfico de drogas.

Finalmente, no dia de ontem (27/06/2012), o STF pacificou o entendimento sobre isso.

Vamos explicar o que decidiu a Corte Suprema, fazendo antes uma breve revisão sobre o assunto:

O que são crimes hediondos?
São crimes que o legislador considerou especialmente repulsivos e que, por essa razão, recebem tratamento penal e processual penal mais gravoso que os demais delitos.
A CF/88 menciona que os crimes hediondos são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, não definindo, contudo, quais são os delitos hediondos.
Art. 5º (...)
XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

Quais são os crimes hediondos no Brasil?
O Brasil adotou o sistema legal de definição dos crimes hediondos. Isso significa que é a lei quem define, de forma exaustiva (taxativa, numerus clausus), quais são os crimes hediondos.
Esta lei é a de n.° 8.072/90, conhecida como Lei dos crimes hediondos.

A Lei n.° 8.072/90 prevê, em seu art. 1º, o rol dos crimes hediondos:
São considerados hediondos os seguintes crimes (consumados ou tentados):
I - homicídio (art. 121 do CP), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V);
II - latrocínio (roubo seguido de morte) (art. 157, § 3º, in fine);
III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2º);
IV - extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1º, 2º e 3º);
V - estupro (art. 213, caput e §§ 1º e 2º);
VI - estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1º, 2º, 3º e 4º);
VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1º).
VIII - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1º, § 1º-A e § 1º-B).
IX - Genocídio (arts. 1º, 2º e 3º da Lei n.° 2.889/56).

O tráfico de drogas é crime hediondo?
NÃO. O tráfico de drogas, a tortura e o terrorismo não são crimes hediondos. Estes três delitos (TTT) são equiparados (assemelhados) pela CF/88 a crimes hediondos. Em outras palavras, não são crimes hediondos, mas devem receber o mesmo tratamento penal e processual penal mais rigoroso que é reservado aos delitos hediondos.

A Lei n.° 8.072/90, em sua redação original, determinava que os condenados por crimes hediondos ou equiparados (TTT) deveriam cumprir a pena em regime integralmente fechado:
Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (...)
§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.

Em 23/02/2006, o STF declarou inconstitucional este § 1º do art. 2º por duas razões principais, além de outros argumentos:
a) A norma violava o princípio constitucional da individualização da pena (art. 5º, XLVI, CF), já que obrigava o juiz a sempre condenar o réu ao regime integralmente fechado independentemente do caso concreto e das circunstâncias pessoais do réu;
b) A norma proibia a progressão de regime de cumprimento de pena, o que inviabiliza a ressocialização do preso.

A ementa do julgado ficou assim redigida:
PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER.
A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social.
PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL.
Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.
(HC 82959, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006)

Diante dessa decisão, o Congresso Nacional editou a Lei n.° 11.464/2007 modificando o § 1º do art. 2º da Lei n.° 8.072/90:
Redação original
Redação dada pela Lei 11.464/2007
§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida INTEGRALMENTE em regime fechado.
§ 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida INICIALMENTE em regime fechado.
Para os crimes anteriores à Lei n.° 11.464/2007, como o antigo § 1º era inconstitucional, as regras são as seguintes:
* É possível a progressão de regime cumprido 1/6 da pena (art. 112 da LEP) (Súm. 471-STJ);
* Não existe regime inicial obrigatório. O regime inicial é fixado segundo as normas do art. 33, § 2º do CP.

Para os crimes posteriores à Lei n.° 11.464/2007, as regras da Lei são as seguintes:
* A nova redação do § 1º passou a permitir a progressão de regime para crimes hediondos, conforme os requisitos previstos no § 2º do art. 2º (2/5 se primário e 3/5 se reincidente);
* A nova redação do § 1º continuou a impor ao juiz que sempre fixe o regime inicial fechado aos condenados por crimes hediondos e equiparados.

Segundo entendeu o STF, essa nova redação dada pela Lei n.° 11.464/2007 somente é válida para os crimes praticados após a sua vigência (29.03.2007).
Assim, a Lei n.° 11.464/2007 é irretroativa, considerando que, segundo o STF, trata-se de lei posterior mais grave. Isso porque depois da decisão do STF reconhecendo a inconstitucionalidade da vedação de progressão para crimes hediondos (prevista na redação original do § 1º), os condenados por crime hediondos e equiparados passaram a poder progredir com o requisito de 1/6 (regra geral), mais favorável que o critério da Lei n.º 11.464/07 (RHC 91300/DF, rel. Min. Ellen Gracie, 5.3.2009).

Recapitulando:
  • § 1º (em sua redação original): proibia a progressão para crimes hediondos.
  • STF (em 23/02/2006): decidiu que essa redação original do § 1º era inconstitucional (não se podia proibir a progressão).
  • Como o STF afirmou que o § 1º era inconstitucional: as pessoas condenadas por crimes hediondos ou equiparados passaram a progredir com os mesmos requisitos dos demais crimes não hediondos (1/6, de acordo com o art. 112 da LEP).
  • Lei n.° 11.464/2006: modificou o § 1º prevendo que a progressão para crimes hediondos e equiparados passaria a ser mais difícil que em relação aos demais crimes (2/5 para primários e 3/5 para reincidentes).
  • Logo, a Lei n.° 11.464/2006 foi mais gravosa para aqueles que cometeram crimes antes da sua vigência (e que podiam progredir com 1/6). Por tal razão, ela é irretroativa.
As perguntas que o STF respondeu ontem foram as seguintes:
O novo § 1º do art. 2º da Lei n.° 8.072/90, com a redação dada pela Lei n.° 11.464/2007, continua sendo inconstitucional?
Os vícios de inconstitucionalidade que existiam na redação original permanecem?
Esse dispositivo, em sua nova redação, continua violando o princípio constitucional da individualização da pena?

A resposta a essas perguntas é SIM.
O Plenário do STF, no dia de ontem (27/06/2012) decidiu que o § 1º do art. 2º da Lei n.° 8.072/90, com a redação dada pela Lei n.° 11.464/2007, ao impor o regime inicial fechado, é INCONSTITUCIONAL.

A decisão foi tomada no julgamento do Habeas Corpus 111.840/ES, afetado ao Plenário, tendo como relator o Min. Dias Toffoli.

Como votaram os Ministros:
O § 1º do art. 2º, da Lei n.° 8.072 é inconstitucional?
SIM
NÃO
Dias Toffoli
Rosa Weber
Cármen Lúcia
Ricardo Lewandowski
Cezar Peluso
Gilmar Mendes
Celso de Mello
Ayres Britto
Luiz Fux
Marco Aurélio
Joaquim Barbosa
Vejamos os principais argumentos utilizados para se chegar a essa conclusão:
  • A CF prevê o princípio da individualização da pena (art. 5º, XLVI). Esse princípio também deve ser observado no momento da fixação do regime inicial de cumprimento de pena. Assim, a fixação do regime prisional também deve ser individualizada (ou seja, de acordo com o caso concreto), ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado. 
  • A CF prevê, no seu art. 5º, XLIII, as vedações que ela quis impor aos crimes hediondos e equiparados (são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia). Nesse inciso não consta que o regime inicial para esses crimes tenha que ser o fechado. Logo, não poderia o legislador estabelecer essa imposição de regime inicial fechado por violar o princípio da individualização da pena.
  • Desse modo, deve ser superado o disposto na Lei dos Crimes Hediondos (obrigatoriedade de início do cumprimento de pena no regime fechado) para aqueles que preencham todos os demais requisitos previstos no art. 33, §§ 2º, e 3º, do CP, admitindo-se o início do cumprimento de pena em regime diverso do fechado.
  • O juiz, no momento de fixação do regime inicial, deve observar as regras do art. 33 do Código Penal, podendo estabelecer regime prisional mais severo se as condições subjetivas forem desfavoráveis ao condenado, desde que o faça em razão de elementos concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade de maior rigor da medida privativa de liberdade do indivíduo.

A partir dessa decisão do STF, a pergunta que surge é a seguinte:
Qual é o regime inicial de cumprimento de pena do réu que for condenado por crime hediondo ou equiparado (ex: tráfico de drogas)?
O regime inicial nas condenações por crimes hediondos ou equiparados (ex: tráfico de drogas) não tem que ser obrigatoriamente o fechado, podendo ser o regime semiaberto ou aberto, desde que presentes os requisitos do art. 33, § 2º, alíneas b e c, do Código Penal.
Assim, será possível, por exemplo, que o juiz condene o réu por tráfico de drogas a uma pena de 6 anos de reclusão e fixe o regime inicial semiaberto.


Duas observações finais:

A declaração de inconstitucionalidade foi feita incidentalmente, ou seja, em sede de controle difuso no julgamento de um habeas corpus. Desse modo, em tese, essa declaração de inconstitucionalidade não possui eficácia erga omnes nem efeitos vinculantes (salvo para os adeptos da “abstrativização do controle difuso”). No entanto, é certo que todos os demais juízos vão ter que se curvar ao entendimento do Supremo Tribunal Federal.

O habeas corpus julgado foi impetrado pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo. Desse modo, esse é um tema que certamente será cobrado nas provas de Defensor Público.


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