terça-feira, 11 de julho de 2017

Em caso de extravio de bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal?


Imagine a seguinte situação hipotética:
Letícia passou sua lua de mel em Paris.
Ela voltou da França em um voo direto que pousou em Natal (RN).
A viagem dos sonhos acabou se transformando em um pesadelo ao final. Isso porque a mala de Letícia foi extraviada pela companhia aérea que simplesmente perdeu a bagagem;
Além do transtorno, Letícia sofreu um enorme prejuízo econômico. Na mala havia duas bolsas de grife francesa e cinco vestidos da última coleção.
Diante disso, Letícia ajuizou ação de indenização contra a “Air Paris” pedindo o pagamento de R$ 100 mil a título de danos materiais.

Contestação: tese da indenização tarifada (Convenção de Varsóvia)
O valor de todos os produtos que estavam na mala de Letícia foi de R$ 100 mil, sendo esta a quantia cobrada por ela da “Air Paris”.
Na contestação, contudo, a companhia aérea alegou que, no transporte internacional, deve vigorar os limites de indenização impostos pela "Convenção de Varsóvia".
A Convenção de Varsóvia é um tratado internacional, assinado pelo Brasil em 1929 e promulgado por meio do Decreto nº 20.704/31. Posteriormente ela foi alterada pelo Protocolo Adicional 4, assinado na cidade canadense de Montreal em 1975 (ratificado e promulgado pelo Decreto 2.861/1998). Daí falarmos em Convenções de Varsóvia e de Montreal.
Essas Convenções estipulam valores máximos que o transportador aéreo poderá ser obrigado a pagar em caso de extravio de bagagens (cerca de R$ 4.500,00).
Assim, em vez de receber R$ 100 mil Letícia teria que se contentar com o limite máximo de indenização (por volta de R$ 4.500,00).

Conflito entre dois diplomas
No presente caso, temos um conflito entre dois diplomas legais:
• O CDC, que garante ao consumidor o princípio da reparação integral do dano;
• As Convenções de Varsóvia e de Montreal, que determinam a indenização tarifada em caso de transporte internacional.

Assim, a antinomia ocorre entre o art. 14 do CDC, que impõe ao fornecedor do serviço o dever de reparar os danos causados, e o art. 22 da Convenção de Varsóvia, que fixa limite máximo para o valor devido pelo transportador, a título de reparação.

Qual dos dois diplomas irá prevalecer? Em caso de extravio de bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal?
As Convenções internacionais.

Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.
STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (repercussão geral) (Info 866).

Por que prevalece as Convenções?
Porque a Constituição Federal de 1988 determinou que, em matéria de transporte internacional, deveriam ser aplicadas as normas previstas em tratados internacionais. Veja:
Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.

Assim, em virtude dessa previsão expressa quanto ao transporte internacional, deve-se afastar o Código de Defesa do Consumidor e aplicar o regramento do tratado internacional.

Critérios para resolver esta antinomia
A Convenção de Varsóvia, enquanto tratado internacional comum, possui natureza de lei ordinária e, portanto, está no mesmo nível hierárquico que o CDC. Logo, não há diferença de hierarquia entre os diplomas normativos. Diante disso, a solução do conflito envolve a análise dos critérios cronológico e da especialidade.
Em relação ao critério cronológico, os acordos internacionais referidos são mais recentes que o CDC. Isso porque, apesar de o Decreto 20.704 ter sido publicado em 1931, ele sofreu sucessivas modificações posteriores ao CDC.
Além disso, a Convenção de Varsóvia – e os regramentos internacionais que a modificaram – são normas especiais em relação ao CDC, pois disciplinam modalidade especial de contrato, qual seja, o contrato de transporte aéreo internacional de passageiros.

Três importantes observações:
1) as Convenções de Varsóvia e de Montreal regulam apenas o transporte internacional (art. 178 da CF/88). Em caso de transporte nacional, aplica-se o CDC;
2) a limitação indenizatória prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal abrange apenas a reparação por danos materiais, não se aplicando para indenizações por danos morais.
3) as Convenções de Varsóvia e de Montreal devem ser aplicadas não apenas na hipótese de extravio de bagagem, mas também em outras questões envolvendo o transporte aéreo internacional.

Qual é a posição do STJ?
O STJ possuía o seguinte entendimento:

Transporte aéreo internacional
envolvendo consumidor
Transporte aéreo internacional não envolvendo consumidor
(ex: uma grande empresa importa uma peça dos EUA)
Determinava a aplicação do CDC (e não da Convenção de Varsóvia)
STJ. 4ª Turma. AgRg no Ag 1409204/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 25/09/2012.
Havia divergência:
1ª corrente: deveria ser aplicada a Convenção de Varsóvia (e suas alterações). 4ª Turma. REsp 1.162.649-SP, Rel. para acórdão Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 13/5/2014 (Info 541).
2ª corrente: deveria ser aplicado o Código Civil. 3ª Turma do STJ no REsp 1.289.629-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 20/10/2015 (Info 573).

Esse quadro acima perde a importância. Isso porque, na prática, o STJ terá que se adequar ao entendimento do STF manifestado em sede de repercussão geral e, por isso, deverão ser aplicadas as Convenções de Varsóvia e de Montreal para todos os casos relacionados com transporte aéreo internacional (seja envolvendo relação de consumo ou não).

Qual é o prazo prescricional da ação de responsabilidade civil no caso de acidente aéreo em voo doméstico?
1ª corrente: 2 anos (Código Brasileiro de Aeronáutica – CBA).
2ª corrente: 3 anos (Código Civil de 2002).
3ª corrente: 5 anos (Código de Defesa do Consumidor)

Resposta: 5 anos, segundo entendimento do STJ, aplicando-se o CDC.

O prazo prescricional nas ações de responsabilidade civil por acidente aéreo nacional é de 5 anos, com base no Código de Defesa do Consumidor.
STJ. 4ª Turma. REsp 1.281.090-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 7/2/2012.

No conflito entre o CDC e o CBA, deverá prevalecer o CDC, uma vez que se trata de norma que melhor traduz o objetivo da CF/88 de proteger o polo hipossuficiente da relação consumerista, isto é, o consumidor.
O CBA é anterior à CF/88 e, por isso mesmo, não se harmoniza em diversos aspectos com a proteção constitucional do consumidor.
O CC não se aplica ao caso porque se trata de relação consumerista e o CDC é lei específica.

Qual é o prazo prescricional da ação de responsabilidade civil no caso de acidente aéreo em voo internacional?
O prazo prescricional será de 2 anos, com base no art. 29 da Convenção de Varsóvia (Decreto nº 20.704/1931). Isso porque

Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor.
STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (repercussão geral) (Info 866).

As Convenções de Varsóvia e de Montreal devem ser aplicadas não apenas na hipótese de extravio de bagagem, mas também em outras questões envolvendo o transporte aéreo internacional, como é o caso da prescrição.

Obs: esse prazo prescricional é aplicado não apenas para ações de indenização em caso de extravio de bagagem, incidindo também em outros casos envolvendo responsabilidade civil relacionado com transporte aéreo internacional.



Print Friendly and PDF