quinta-feira, 28 de julho de 2016

Entenda a decisão do STF que recebeu denúncia formulada contra o Dep. Fed. Jair Bolsonaro pela prática de incitação ao crime (art. 286 do CP)


Recentemente o cenário político e jurídico brasileiro foi movimentado pela notícia de que o STF recebeu denúncia e queixa-crime propostas contra o Deputado Federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) pela prática dos crimes previstos nos arts. 286 e 140 do Código Penal.

O presente texto pretende explicar os aspectos jurídicos relacionados com a decisão, sem realizar qualquer análise política sobre o tema. Os argumentos expostos são dos Ministros do STF.

A situação analisada, com adaptações, foi a seguinte:
O Deputado Federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), durante uma discussão no plenário da Câmara, afirmou que a também Deputada Federal, Maria do Rosário (PT-RS), “não merece ser estuprada”.
No dia seguinte, em entrevista concedida em seu gabinete ao jornal "Zero Hora", Bolsonaro reiterou as declarações, dizendo que Maria do Rosário “não merece ser estuprada por ser muito ruim, muito feia, não faz meu gênero”. E acrescentou que, se fosse estuprador, "não iria estuprá-la porque ela não merece".

Denúncia e queixa-crime
O Procurador-Geral da República ofereceu denúncia contra o parlamentar afirmando que ele, ao fazer essas declarações, teria incentivado o crime de estupro, incorrendo, portanto, no delito do art. 286 do CP:
Incitação ao crime
Art. 286. Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.

Além disso, a própria Deputada ajuizou contra ele queixa-crime sob a alegação de que teria sido vítima de injúria:
Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

Defesa do Deputado
A defesa argumentou que o parlamentar não cometeu qualquer crime com seu comentário, considerando estar acobertado pela imunidade material prevista no art. 53 da CF/88:
Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.

A denúncia e a queixa-crime foram recebidas pelo STF? Existem elementos indiciários para se prosseguir com a ação penal?
SIM.

A imunidade parlamentar material (art. 53 da CF/88) protege os Deputados Federais e Senadores, qualquer que seja o âmbito espacial (local) em que exerçam a liberdade de opinião. No entanto, para isso é necessário que as suas declarações tenham conexão (relação) com o desempenho da função legislativa ou tenham sido proferidas em razão dela.
Para que as afirmações feitas pelo parlamentar possam ser consideradas como "relacionadas ao exercício do mandato", elas devem ter, ainda de forma mínima, um teor político.
Exemplos de afirmações relacionadas com o mandato: declarações sobre fatos que estejam sendo debatidos pela sociedade; discursos sobre fatos que estão sendo investigados por CPI ou pelos órgãos de persecução penal (Polícia, MP); opiniões sobre temas que sejam de interesse de setores da sociedade, do eleitorado, de organizações ou grupos representados no parlamento etc.
Palavras e opiniões meramente pessoais, sem relação com o debate democrático de fatos ou ideias não possuem vínculo com o exercício das funções de um parlamentar e, portanto, não estão protegidos pela imunidade material.
No caso concreto, as palavras do Deputado Federal dizendo que a parlamentar não merecia ser estuprada porque seria muito feia não são declarações que possuem relação com o exercício do mandato e, por essa razão, não estão amparadas pela imunidade material.
STF. 1ª Turma. Inq 3932/DF e Pet 5243/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 21/6/2016 (Info 831).

Existe uma posição jurisprudencial no sentido de que as declarações proferidas pelo parlamentar dentro do Congresso Nacional seriam sempre protegidas pela imunidade parlamentar ainda que as palavras não tivessem relação com o exercício do mandato. Esse entendimento existe mesmo?
SIM. Há diversos julgados do STF afirmando que a imunidade parlamentar material (art. 53 da CF/88) é absoluta quando as afirmações do Deputado ou Senador sobre qualquer assunto ocorrem dentro do Congresso Nacional.

A situação poderia ser assim resumida:
• Ofensas feitas DENTRO do Parlamento: a imunidade é absoluta. O parlamentar é imune mesmo que a manifestação não tenha relação direta com o exercício de seu mandato.
• Ofensas feitas FORA do Parlamento: a imunidade é relativa. Para que o parlamentar seja imune, é necessário que a manifestação feita tenha relação com o exercício do seu mandato.

Veja um precedente do STF neste sentido:
“A palavra 'inviolabilidade' significa intocabilidade, intangibilidade do parlamentar quanto ao cometimento de crime ou contravenção. Tal inviolabilidade é de natureza material e decorre da função parlamentar, porque em jogo a representatividade do povo. (...)
Assim, é de se distinguir as situações em que as supostas ofensas são proferidas dentro e fora do Parlamento. Somente nessas últimas ofensas irrogadas fora do Parlamento é de se perquirir da chamada 'conexão com o exercício do mandato ou com a condição parlamentar' (Inq 390 e 1.710). Para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa. No caso, o discurso se deu no plenário da Assembleia Legislativa, estando, portanto, abarcado pela inviolabilidade. Por outro lado, as entrevistas concedidas à imprensa pelo acusado restringiram-se a resumir e comentar a citada manifestação da tribuna, consistindo, por isso, em mera extensão da imunidade material.” (STF. Plenário. Inq 1.958, Rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, julgado em 29/10/2003).

No mesmo sentido: STF. 1ª Turma. RE 463671 AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 19/06/2007.

Este entendimento não poderia ser aplicado ao caso concreto, considerando que as palavras e a entrevista foram dadas dentro das dependências da Câmara dos Deputados?
O STF afirmou que as declarações prestadas pelo Deputado dentro do plenário até poderiam estar abarcadas por este entendimento. No entanto, no dia seguinte ele deu uma entrevista na qual reafirmou as palavras. Portanto, neste momento, a imunidade não é absoluta.

Mas a entrevista foi dada dentro do gabinete no Deputado...
Mesmo assim. Para o STF, o fato de o parlamentar estar em seu gabinete no momento em que concedeu a entrevista é um fato meramente acidental, de menor importância. Isso porque não foi ali (no gabinete) que as ofensas se tornaram públicas. Elas se tornaram públicas por meio da imprensa e da internet, quando a entrevista foi veiculada.
Dessa forma, tratando-se de declarações prestadas em entrevista concedida a veículo de grande circulação não incide o entendimento de que a imunidade material seria absoluta. É necessário avaliar, portanto, se as palavras proferidas estavam ou não relacionadas com a função parlamentar. E, como, no caso concreto não estavam, ele não estará protegido pela imunidade material do art. 53 da CF/88.

A defesa do Deputado alegou, ainda, que a conduta por ele praticada não configurou o crime do art. 286 do CP porque as afirmações feitas foram genéricas e não incentivaram que pessoas praticassem estupro. Afirmou, ainda, que não teve a intenção de incentivar o crime de estupro. O STF acolheu estes argumentos?
NÃO.

A manifestação do Deputado tem o potencial de incitar outros homens a expor as mulheres à fragilidade e à violência física, sexual, psicológica e moral, considerando que foi proferida por um parlamentar, que não pode desconhecer os tipos penais.
O crime de estupro tem consequências graves, e sua ameaça constante mantém todas as mulheres em situação de subordinação. Portanto, discursos que relativizam essa gravidade e a abjeção do delito contribuem para agravar a vitimização secundária produzida pelo estupro.
O parlamentar, ao utilizar o vocábulo “merece” transformou o estupro em algo como se fosse um prêmio, um favor, uma benesse à mulher. Além disso, transmitiu a ideia de que as vítimas podem merecer os sofrimentos a elas infligidos pelo estupro. Essa fala reflete os valores de uma sociedade desigual, que ainda tolera e até incentiva a prática de atitudes machistas e defende a naturalidade de uma posição superior do homem, nas mais diversas atividades.
Para que se consuma o tipo penal do art. 286 do CP não é necessário que o agente incentive, verbal e literalmente, a prática de determinado crime. Este delito pode ser praticado por meio de qualquer conduta que seja apta a provocar ou a reforçar em terceiros a intenção da prática criminosa.
Ademais, o delito do art. 286 do CP é crime formal, de perigo abstrato, e independe da produção de resultado. Além disso, não exige o fim especial de agir, mas apenas o "dolo genérico", consistente na consciência de que o comportamento do agente instigará outros a praticar crimes.
No caso, a frase do parlamentar tem potencial para estimular a perspectiva da superioridade masculina e a intimidação da mulher pela ameaça de uso da violência. Assim, a afirmação pública do Deputado tem, em tese, o potencial de reforçar a ideia eventualmente existente em outros homens de praticarem violência contra a mulher.
STF. 1ª Turma. Inq 3932/DF e Pet 5243/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 21/6/2016 (Info 831).

Não se pode subestimar os efeitos de discursos que reproduzem o rebaixamento da dignidade sexual da mulher, que podem gerar perigosas consequências sobre a forma como muitos irão considerar o crime de estupro, podendo, efetivamente, encorajar sua prática.

O desprezo demonstrado pela dignidade sexual reforça e incentiva a perpetuação dos traços de uma cultura que ainda subjuga a mulher, com o potencial de instigar variados grupos a lançarem sobre a própria vítima a culpa por ser alvo de criminosos sexuais.

Depois das declarações do Deputado, surgiu uma campanha na internet no qual várias pessoas postaram a seguinte frase: "eu não mereço ser estuprada". A defesa do parlamentar afirmou que, se as palavras dele incentivaram o estupro, então as mulheres que aderiram a esse movimento também o teriam praticado porque o contexto seria o mesmo. O STF acolheu este argumento?
NÃO. Esta campanha se trata de uma crítica e repúdio às declarações do parlamentar. O sentido conferido, na referida campanha, ao verbo “merecer” revela-se oposto ao empregado pelo acusado nas manifestações que externara publicamente. Essas mensagens buscaram restabelecer o sentimento social de que o estupro é uma crueldade intolerável.

Injúria
Por fim, o STF afirmou que as declarações do Deputado atingiram a honra subjetiva da Deputada, porque rebaixaram sua dignidade moral, expondo sua imagem à humilhação pública, além de associar as características da mulher à possibilidade de ser vítima de estupro.
STF. 1ª Turma. Inq 3932/DF e Pet 5243/DF, Rel. Min. Luiz Fux, julgados em 21/6/2016 (Info 831).


Vale ressaltar que o Deputado ainda não foi condenado. Na verdade, agora que se inicia o processo criminal e, após toda a instrução, o mérito das acusações ainda será analisado.

Importante destacar, ainda, que o STF ainda não se manifestou sobre um dos argumentos do Deputado, qual seja, o de que ele teria apenas se defendido de prévias agressões verbais praticadas pela Deputada (tese da "retorsão imediata" ou da "reação a injusta provocação"). O STF afirmou que esta alegação somente deveria ser apreciada ao final do processo, após a instrução.



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