terça-feira, 4 de outubro de 2016

Declaração de inconstitucionalidade de lei sem a produção de efeito repristinatório em relação às leis anteriores de mesmo conteúdo



Imagine a seguinte situação hipotética:
A Lei estadual 2.333/2010 foi editada com o objetivo de regulamentar o funcionamento de casas de bingo no Estado. Esta Lei é inconstitucional, conforme previsto na SV 2 ("É inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias.").
Apesar disso, esta norma nunca foi impugnada.
Um ano mais tarde, o mesmo Estado editou a Lei 2.555/2011 estabelecendo novas regras sobre o funcionamento dos bingos e revogando expressamente a Lei 2.333/2010.

Suponha agora que o Procurador-Geral da República irá ajuizar uma ADI contra a Lei 2.555/2011. Qual é o cuidado adicional que ele deverá adotar?
Se o autor da ADI perceber que a norma anterior que foi revogada pela norma atual que está sendo impugnada padece do mesmo vício de inconstitucionalidade, ele deverá impugnar tanto a lei atual como a revogada.
Em nosso exemplo, a norma atualmente vigente (Lei 2.555/2011) é inconstitucional e vai ser objeto da ADI. No entanto, o autor da ação deverá, na petição inicial, requerer que a norma anterior (Lei 2.333/2010), que foi revogada pela norma impugnada, também seja declarada inconstitucional.
Desse modo, o autor da ADI deverá impugnar todo o "complexo normativo", ou seja, tanto a norma atual como aquelas que eventualmente foram revogadas e que tinham o mesmo vício. Nesse sentido:
(...) Considerações em torno da questão da eficácia repristinatória indesejada e da necessidade de impugnar os atos normativos, que, embora revogados, exteriorizem os mesmos vícios de inconstitucionalidade que inquinam a legislação revogadora.
- Ação direta que impugna, não apenas a Lei estadual nº 1.123/2000, mas, também, os diplomas legislativos que, versando matéria idêntica (serviços lotéricos), foram por ela revogados. Necessidade, em tal hipótese, de impugnação de todo o complexo normativo. Correta formulação, na espécie, de pedidos sucessivos de declaração de inconstitucionalidade tanto do diploma ab-rogatório quanto das normas por ele revogadas, porque também eivadas do vício da ilegitimidade constitucional. Reconhecimento da inconstitucionalidade desses diplomas legislativos, não obstante já revogados.
STF. Plenário. ADI 3148, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 13/12/2006.

Por que se exige essa providência já que a norma anterior já está revogada?
Porque se uma lei é declarada inconstitucional, em regra, significa que ela é nula desde o seu nascimento e, portanto, ela nunca produziu efeitos. Se ela nunca produziu efeitos, ela não revogou a lei anterior. Se ela não revogou a lei anterior, aquela lei que se pensava ter sido revogada continua a produzir efeitos.
Em nosso exemplo, se o STF declara a Lei 2.555/2011 inconstitucional, significa que ela nunca produziu nenhum efeito. Logo, a Lei 2.555/2011 não teve força para revogar a Lei 2.333/2010. Conclusão: a Lei 2.333/2010 continua em vigor.
Dessa forma, se uma lei é declarada inconstitucional, ocorre o efeito repristinatório tácito e as normas que a lei inconstitucional havia revogado "voltam" a vigorar.

Conforme explica Marcelo Novelino:
"Nos casos em que a decisão proferida pelo STF declarar a inconstitucionalidade de uma lei com efeitos retroativos (ex tunc), a legislação anteriormente revogada voltará a produzir efeitos, desde que compatível com a Constituição. Ocorre, portanto, o fenômeno conhecido como efeito repristinatório tácito.
Isso ocorre porque a lei inconstitucional é considerada um ato nulo, ou seja, com um vício de origem insanável. Sendo este vício reconhecido e declarado desde o surgimento da lei, não se pode admitir que ela tenha revogado uma lei válida. (...)" (Manual de Direito Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Método, 2014, p. 475).

Confira importante precedente do STF que expõe este entendimento:
(...) A declaração de inconstitucionalidade "in abstracto", considerado o efeito repristinatório que lhe é inerente (RTJ 120/64 - RTJ 194/504-505 - ADI 2.867/ES, v.g.), importa em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. É que a lei declarada inconstitucional, por incidir em absoluta desvalia jurídica (RTJ 146/461-462), não pode gerar quaisquer efeitos no plano do direito, nem mesmo o de provocar a própria revogação dos diplomas normativos a ela anteriores. Lei inconstitucional, porque inválida (RTJ 102/671), sequer possui eficácia derrogatória. A decisão do Supremo Tribunal Federal que declara, em sede de fiscalização abstrata, a inconstitucionalidade de determinado diploma normativo tem o condão de provocar a repristinação dos atos estatais anteriores que foram revogados pela lei proclamada inconstitucional. (...)
STF. Plenário. ADI 3148, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 13/12/2006.

Assim, o autor da ADI deverá impugnar a lei atual e a lei revogada (se esta contiver o mesmo vício) a fim de evitar uma "eficácia repristinatória indesejada", ou seja, com o objetivo de evitar que aquela decisão do STF seja inútil. Digo inútil porque a lei atual será declarada inconstitucional, mas "voltará" uma lei com semelhante mácula.

"No caso de efeito repristinatório indesejado, ou seja, quando a lei revogada também for eivada do vício de inconstitucionalidade, faz-se necessária a formulação de pedidos sucessivos de declaração de inconstitucionalidade, tanto do diploma ab-rogatório quanto das normas por ele revogadas. Caso a norma anterior não seja impugnada, a ADI não será conhecida." (Manual de Direito Constitucional. 9ª ed., São Paulo: Método, 2014, p. 476).

Lei nº 9.868/99
A "ressurreição" da norma revogada é prevista expressamente no art. 11, § 2º da Lei que trata sobre a ADI/ADC (Lei nº 9.868/99):
Art. 11 (...) § 2º A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.

Apesar de esse dispositivo falar apenas em "medida cautelar", ele é aplicável também, por óbvio, para os casos em que há julgamento definitivo da ADI.

E por que se está falando sobre esse assunto?
Para contextualizar um interessante caso decidido pelo STF.

Foi proposta uma ADI contra a Lei nº 3.041/2005, do Estado do Mato Grosso do Sul, que tratava sobre assunto de competência da União. Ocorre que esta Lei havia revogado outras leis estaduais de mesmo conteúdo. Desse modo, se a Lei nº 3.041/2005 fosse, isoladamente, declarada inconstitucional, as demais leis revogadas "voltariam" a vigorar mesmo padecendo de idêntico vício.
A fim de evitar essa "eficácia repristinatória indesejada", o PGR, que ajuizou a ação, impugnou não apenas a Lei nº 3.041/2005, mas também aquelas outras normas por ela revogadas.
O STF concordou com o PGR e, ao declarar inconstitucional a Lei nº 3.041/2005, afirmou que não deveria haver o efeito repristinatório em relação às leis anteriores de mesmo conteúdo.
O dispositivo do acórdão ficou, portanto, com a seguinte redação:
"O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 3.041/2005, do Estado de Mato Grosso do Sul, inexistindo efeito repristinatório em relação às leis anteriores de mesmo conteúdo, (...)" (grifou-se)
STF. Plenário. ADI 3.735/MS, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 8/9/2016 (Info 838).




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