sábado, 29 de junho de 2019

Fornecimento de medicamentos pelo Poder Judiciário



FORNECIMENTO PELO PODER JUDICIÁRIO DE MEDICAMENTOS NÃO PRESENTES NA LISTA DO SUS – DECISÃO DO STJ

Imagine a seguinte situação hipotética:
João foi diagnosticado com glaucoma e o oftalmologista prescreveu determinado colírio indicado para essa enfermidade. O problema é que esse remédio não está especificado na lista de medicamentos que o SUS é obrigado a fornecer gratuitamente para a população (Portaria 2.982/2009 do Ministério da Saúde).

O juiz pode obrigar que o Estado forneça esse medicamento? O Poder Judiciário pode determinar que o Poder Público forneça remédios que não estão previstos na lista do SUS?
O STJ afirmou que sim, mas desde que cumpridos três requisitos. Foi fixada, então, a seguinte tese:
A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.
STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018 (recurso repetitivo) (Info 633).

Para mais informações sobre os argumentos invocados pelo STJ, consulte o Info 633.

FORNECIMENTO PELO PODER JUDICIÁRIO DE MEDICAMENTOS NÃO REGISTRADOS PELA ANVISA – DECISÃO DO STF

Depois do julgado do STJ acima apontado, o STF analisou um aspecto específico sobre o tema: a possibilidade ou não de fornecimento de medicamentos que ainda não estão registrados na ANVISA.
Vejamos o que decidiu o STF:

Registro dos medicamentos na ANVISA
A ANVISA é uma autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério da Saúde, tendo sido criada pela Lei nº 9.782/99 com o objetivo de promover a proteção da saúde da população, sendo ela a responsável por exercer a vigilância sanitária de medicamentos (art. 8º, § 1º, I).
Assim, os medicamentos, para serem comercializados no Brasil, precisam ser aprovados e registrados na ANVISA.
O processo de aprovação e registro de medicamentos pela ANVISA é de fundamental importância para a garantia do direito à saúde e para o próprio sistema de saúde.
Ocorre que esse processo demora alguns anos para ser realizado. Assim, é comum que os médicos saibam que já existe, em outros países, determinado medicamento mais moderno e eficaz para a doença, no entanto, esse remédio ainda não foi aprovado pela ANVISA.
Surge, então, um relevante questionamento jurídico: o doente poderia receber uma decisão judicial favorável obrigando que o Poder Público forneça esse medicamento a ele, mesmo sem que haja ainda o registro na ANVISA?

Para facilitar a visualização do tema, imagine a seguinte situação hipotética:
João é portador de uma doença crônica e os tratamentos disponíveis no Brasil já não mais surtindo efeito.
O médico de João, muito estudioso e atualizado, sabe que existe um novo medicamento (“XXX”), que tem sido utilizado com resultados extremamente satisfatórios para essa enfermidade.
Esse medicamento já está registrado nas agências dos Estados Unidos (Food and Drug Administration - FDA) e da União Europeia (European Medicine Agency - EMEA). Apesar disso, ainda não possui registro de comercialização junto à Anvisa. Em razão disso, não é fornecido pelo SUS.
O médico explica essa situação para João, que decide ajuizar uma ação contra a União pedindo o fornecimento desse medicamento mesmo sem o registro na ANVISA.

Indaga-se: abstraindo o caso concreto, de uma forma genérica, é possível que o Poder Judiciário condene o Poder Executivo a fornecer medicamentos que ainda não foram registrados na ANVISA? O que o STF entendeu sobre o assunto?
Em regra, NÃO.
Como regra geral, o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos não registrados na ANVISA por decisão judicial. Isso porque o registro na ANVISA é uma proteção à saúde pública. É por meio dele que se atesta a eficácia, a segurança e a qualidade dos medicamentos comercializados no país. Além disso, ele serve também para garantir o devido controle dos preços.
O registro sanitário não é, assim, um procedimento meramente burocrático e dispensável, mas processo essencial para a tutela do direito à saúde de toda a coletividade.
Tendo em vista essa preocupação, a Lei nº 6.360/76 proibiu a industrialização, exposição à venda e entrega ao consumo de qualquer medicamento antes de registrado no Ministério da Saúde (art. 12 c/c art. 1º), bem como previu requisitos específicos para a obtenção do registro, tais como o reconhecimento, por meio de comprovação científica e de análise, de que o produto seja seguro e eficaz para o uso a que se propõe, e possua a identidade, atividade, qualidade, pureza e inocuidade necessárias (art. 16, II).
Considerando a importância do bem jurídico tutelado pela atuação da ANVISA (direito à saúde) e tendo em vista o grau de complexidade e de preparação técnica exigido para a tomada de decisão sobre o registro de um medicamento, recomenda-se que haja uma especial deferência (respeito) em relação às decisões da ANVISA e uma menor intensidade da revisão jurisdicional a fim de que o Poder Judiciário não se sobreponha à atuação da entidade competente, com evidente violação ao direito à saúde e ao princípio da separação de Poderes.

Exceção: demora irrazoável da ANVISA para apreciar o registro aliada a três requisitos.
É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido e, desde que preenchidos três requisitos cumulativos:
a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

Vamos analisar cada um dos itens da exceção.

Pressuposto: mora irrazoável da ANVISA
Ocorre a mora irrazoável da ANVISA quando esta agência não termina o processo de registro do medicamento no prazo estipulado pela Lei nº 13.411/2016.
A Lei nº 13.411/2016 alterou a Lei nº 6.360/76 (que dispõe sobre a vigilância sanitária dos medicamentos) e a Lei nº 9.782/99 (que trata sobre a ANVISA) e, dentre as mudanças efetuadas, estabeleceu prazos para o registro dos medicamentos.
Conforme a Lei nº 13.411/2016, os prazos máximos para a decisão final nos processos de registro serão:
I - para a categoria prioritária, de 120 dias e de 60 dias, contados a partir da data do respectivo protocolo de priorização;
II - para a categoria ordinária, de 365 dias e de 180 dias, contados a partir da data do respectivo protocolo de registro.
Esses prazos poderão ser prorrogados por até um terço do prazo original, uma única vez.

Vale ressaltar que, mesmo na hipótese de retardamento irrazoável da ANVISA, é preciso, ainda, que haja comprovação efetiva do preenchimento cumulativo de três requisitos, voltados a assegurar, na maior extensão possível, tanto a segurança e a eficácia do medicamento, quanto à efetiva necessidade de sua dispensação.

Primeiro requisito específico: o medicamento deve ter sido submetido a registro no Brasil
Em regra, para que o Poder Judiciário conceda um medicamento ainda não registrado na ANVISA, é necessário que o fabricante deste medicamento já tenha, pelo menos, solicitado esse registro.
Se o laboratório responsável nem pediu o registro na ANVISA, não é possível, em regra, conceder esse medicamento.
Exceção: no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras, será possível conceder este fármaco mesmo que o laboratório ainda não tenha pedido o registro na ANVISA.
Medicamento órfão é um termo usado para designar o fármaco que se mostre eficaz no tratamento ou diagnóstico de doenças raras ou ultrarraras.
Doenças raras/ultrarraras ou órfãs são aquelas que afetam um pequeno número de pessoas quando comparado com a população geral.
Como no caso de medicamentos órfãos há um interesse comercial menor dos laboratórios de providenciar sua aprovação na ANVISA, o STF entendeu que seria possível concedê-los mesmo que não tenha sido pedido o registro do medicamento no Brasil.

Segundo requisito específico: existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior
O STF afirmou o seguinte: é até possível que o Poder Judiciário conceda o medicamento sem registro na ANVISA, mas esta droga já deve ter sido registrada em alguma renomada agência que faça regulação de medicamentos no exterior.
Como exemplos de renomadas agências de regulação podemos citar:
Food and Drug Administration – FDA, nos EUA;
European Medicine Agency – EMEA, responsável pela regulação dos medicamentos nos países da União Europeia.
Japanese Ministry of Health & Welfare, do Japão.

Trata-se de uma segurança para a saúde da população brasileira considerando que há uma garantia mínima de que aquele determinado medicamento já foi estudado e avaliado de forma séria e criteriosa por uma agência especializada.

Terceiro requisito específico: inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil
O remédio pedido judicialmente deve ser imprescindível ou necessário e aqueles que existem no Brasil já registrados não podem substitui-lo.
Se o paciente tiver outra opção satisfatória para o tratamento da doença com o devido registro sanitário, não pode o Poder Judiciário compelir o Poder Público a importar o fármaco pedido pelo paciente, mesmo quando os graus de eficácia dos tratamentos não sejam idênticos.

Preenchidos esses três requisitos e constatando-se que o medicamento pleiteado aguarda por prazo irrazoável a análise e o deferimento de seus pedidos de registro pela agência reguladora, deve-se reconhecer que está justificada a determinação judicial de dispensação de medicamento não registrado no Brasil. A criação dessa única hipótese excepcional de deferimento de demanda judicial por fármaco não registrado na ANVISA, com os cuidados (requisitos) elencados acima, justifica-se pela impossibilidade de penalizar-se o paciente pela mora administrativa.

Veja como o STF resumiu essas conclusões:
A ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941).

Vale ressaltar que a decisão acima não está tratando sobre medicamentos experimentais.

É possível que o Poder Público seja condenado a fornecer medicamentos experimentais?
NÃO. Medicamentos experimentais são aqueles sem comprovação científica de eficácia e segurança, e ainda em fase de pesquisas e testes. Um conhecido exemplo de medicamento experimental é a fosfoetanolamina sintética (a chamada “pílula do câncer”).
O STF afirmou que não há nenhuma hipótese em que o Poder Judiciário possa obrigar o Poder Executivo a fornecê-los:
O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941).

Nesse caso, a administração da substância representa riscos graves, diretos e imediatos à saúde dos pacientes. Não apenas porque, ao final dos testes, pode-se concluir que a substância é tóxica e produz graves efeitos colaterais, mas também porque se pode verificar que o tratamento com o fármaco é ineficaz, o que pode representar a piora do quadro do paciente e possivelmente a diminuição das possibilidades de cura e melhoria da doença.
A Lei nº 8.080/90 proíbe o fornecimento de medicamentos experimentais no âmbito do SUS:
Art. 19-T.  São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA;
II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.

Vale esclarecer que esse entendimento, por óbvio, não proíbe o fornecimento desses medicamentos no âmbito de programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo, sempre nos termos da regulamentação aplicável. Em outras palavras, os testes com medicamentos experimentais, respeitada a legislação vigente, podem continuar sendo realizados. O que o STF afirmou é que os doentes não podem exigir judicialmente do Estado o fornecimento de medicamentos experimentais.

Portanto, não confunda:
Medicamentos experimentais
Medicamentos com eficácia e segurança comprovadas, mas sem registro
São aqueles sem comprovação científica quanto à sua eficácia e segurança, e ainda em fase de pesquisas e testes.
São aqueles que já passaram por todas as etapas de testes, tendo sido comprovadas a sua eficácia e segurança. Apesar disso, ainda não foram registrados na ANVISA.
Não há nenhuma hipótese em que o Poder Judiciário possa obrigar o Estado a fornecê-los.
É uma regra sem exceção.
Podem ser excepcionalmente concedidos em caso de irrazoável mora da ANVISA em apreciar o registro e desde que cumpridos os três requisitos cumulativos acima explicados.

A decisão do STF no RE 657718/MG afeta, de algum modo, o entendimento do STJ fixado no REsp 1.657.156-RJ (mencionado no início da explicação)?
Apenas em parte do item “iii”.
Conforme vimos acima, o STJ decidiu que:
A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.
STJ. 1ª Seção. EDcl no REsp 1.657.156-RJ, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 12/09/2018 (recurso repetitivo) (Info 633).

Com a decisão do STF no RE 657718/MG, este item “iii” do julgado do STJ deverá ser lido com o acréscimo de uma exceção, da seguinte maneira:
iii) “existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência”, podendo, excepcionalmente, haver a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
a) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);
b) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e
c) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

Se a ANVISA negou o registro do medicamento, ainda assim o Poder Judiciário poderá concedê-lo?
O Min. Roberto Barroso defendeu que não.
A ideia é que sempre se deve privilegiar a análise técnica da agência reguladora nacional.
Assim, se a ANVISA decidir, fundamentadamente, pela negativa de registro, em nenhuma hipótese pode o Poder Judiciário se sobrepor à manifestação da Agência para deferir pedidos individuais de fornecimento do medicamento.
Mesmo no caso em que a ANVISA não tenha concluído a análise do processo, mas já tenha emitido primeira manifestação no sentido de indeferir o pedido de registro, é preciso que as decisões judiciais sejam deferentes ao exame técnico realizado, à luz das suas capacidades institucionais. Isso, é claro, não impede a propositura de demandas judiciais que questionem a própria decisão da agência, comprovando-se técnica e cientificamente que foi equivocada.

Se o medicamento já foi aprovado por uma agência especializada estrangeira, mesmo assim ele ainda precisa ser analisado pela ANVISA para ser autorizado no Brasil? Por quê?
SIM. O fato de um fármaco ter registro em outras agências no mundo não afasta a necessidade de registro na ANVISA, salvo no caso de mora irrazoável da autarquia.
Um dos motivos que justifica isso está no fato de que a ANVISA, algumas vezes, adota critérios mais rigorosos que o de outras agências. Além disso, a ANVISA também leva em consideração características relacionadas com as condições socioambientais locais e com os atributos fisiológicos próprios da população brasileira.


RESPONSABILIDADE PELO FORNECIMENTO DO MEDICAMENTO OU PELA REALIZAÇÃO DO TRATAMENTO DE SAÚDE

Pedro sofre de hipertensão pulmonar primária e precisa de um remédio que não é fornecido pelo SUS. A ação pleiteando o fornecimento deste medicamento deverá ser proposta contra a União, Estado ou Município? Qual ente federativo tem o dever de fornecer o medicamento e custear o tratamento de saúde?
Os três entes federativos possuem responsabilidade (União, Estados/DF e Municípios).
Segundo a CF/88, a competência para prestar saúde à população é comum a todos os entes:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

O STF, ao interpretar esse dispositivo, entende que a prestação dos serviços de saúde e o fornecimento de medicamentos representam uma responsabilidade solidária dos três entes federativos (não se trata de responsabilidade subsidiária).
Sendo a responsabilidade solidária, o doente tem liberdade para ajuizar a ação somente contra a União, somente contra o Estado-membro/DF, somente contra o Município, contra dois deles (ex: União e Estado) ou contra os três entes em litisconsórcio.
Assim, a parte pode incluir no polo passivo qualquer um dos entes, isoladamente, ou conjuntamente.
A parte escolhe contra qual (ou quais) ente(s) irá propor a ação.

Magistrado pode direcionar o cumprimento e determinar o ressarcimento
A responsabilidade dos entes é solidária. No entanto, dentro da estrutura do SUS, existe uma divisão das competências de cada ente, que pode ser assim resumida em linhas gerais:
• União: coordena os sistemas de saúde de alta complexidade e de laboratórios públicos.
• Estados: coordenam sua rede de laboratórios e hemocentros, definem os hospitais de referência e gerenciam os locais de atendimentos complexos da região.
• Municípios: prestam serviços de atenção básica à saúde.
• Distrito Federal: acumula as competências estaduais e municipais.

Essas competências não são facilmente identificáveis e, em diversos casos, o jurisdicionado teria enorme dificuldade de saber se a prestação de saúde que deseja é de competência da União, do Estado ou do Município. Por essa razão, desenvolveu-se essa ideia da solidariedade com a liberdade de o autor propor a ação contra qualquer um dos entes.
Ocorre que é possível que o magistrado, depois de proposta a ação, direcione o cumprimento da medida pleiteada conforme as regras de competência acima explicadas. Ex: um paciente ajuíza ação contra os três entes pleiteando o fornecimento de determinado medicamento. O magistrado identifica que a competência para concedê-lo é do ente local e, por essa razão, concede a medida liminar apenas contra o Município, determinando que ele forneça o aludido remédio.
Além disso, se um dos entes, em caso de urgência, custear a obrigação que seria de outro, é possível que o magistrado determine o ressarcimento a ser realizado por aquele ente que tinha a obrigação. Ex: um paciente ajuíza ação contra os três entes pleiteando tratamento de alta complexidade. É concedida a liminar contra os três entes e o Município cumpre a obrigação pedida. Ocorre que se constata que a competência para essa medida era da União. O magistrado poderá, então, condenar a União a ressarcir o Município.
Assim, caso se direcione e depois se alegue que, por alguma circunstância, o atendimento da demanda da cidadania possa ter levado um ente da Federação a eventual ônus excessivo, a autoridade judicial determinará o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
O STF resumiu essas conclusões com a seguinte tese:
Os entes da Federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde e, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
STF. Plenário. RE 855178 ED/SE, rel. orig. Min. Luiz Fux, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 23/5/2019 (Info 941).

Essa tese do STF está de acordo com o enunciado 60, aprovado na II Jornada de Direito da Saúde, promovida pelo CNJ na qual participam os maiores estudiosos do tema no país:
Enunciado 60: A responsabilidade solidária dos entes da Federação não impede que o Juízo, ao deferir medida liminar ou definitiva, direcione inicialmente o seu cumprimento a um determinado ente, conforme as regras administrativas de repartição de competências, sem prejuízo do redirecionamento em caso de descumprimento.

Cuidado. Exceção no caso do fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA
Vimos acima que, em regra, a parte pode incluir no polo passivo qualquer um dos entes, isoladamente, ou conjuntamente.
Existe, contudo, uma exceção: se o indivíduo estiver pleiteando o fornecimento de um medicamento que ainda não foi aprovado pela ANVISA, neste caso terá que ajuizar a ação necessariamente contra a União:
As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.
STF. Plenário. RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgado em 22/5/2019 (repercussão geral) (Info 941).

Como a ANVISA integra a estrutura da Administração Pública Federal, não se pode permitir que Estados e Municípios (entes federativos que não são responsáveis pelo registro de medicamentos) sejam condenados a custear tais prestações de saúde quando eles não têm responsabilidade pela mora da Agência, nem têm a possibilidade de saná-la.
Quanto à competência, em razão da presença da União no polo passivo, a a ação deverá ser proposta na Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

Vale aqui um esclarecimento: a parte que pleiteia o fornecimento de medicamento não registrado na ANVISA não está obrigada a ajuizar a ação apenas contra a União. O que o STF decidiu é que a União obrigatoriamente deverá estar no polo passivo. Em outras palavras, existe a obrigatoriedade de a União figurar no polo passivo, mas não a sua exclusividade.




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