quarta-feira, 5 de junho de 2019

O novo crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral (art. 326-A do Código Eleitoral)



O Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65) prevê alguns crimes. A Lei nº 13.834/2019 acrescenta um novo artigo a esse diploma, criando o crime de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral.

NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
Crimes eleitorais
Para que uma infração penal possa ser considerada como “crime eleitoral”, é necessário o preenchimento de dois requisitos:
1) previsão na lei eleitoral: a conduta delituosa deve estar prevista em lei que trate sobre direito eleitoral; e
2) finalidade eleitoral: a conduta do agente deve ter sido praticada com o objetivo de violar bem jurídico eleitoral, ou seja, é preciso que o crime tenha sido praticado com objetivo de atingir valores como a liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e a preservação do modelo democrático.

Nesse sentido:
(...) 1. A simples existência, no Código Eleitoral, de descrição formal de conduta típica não se traduz, incontinenti, em crime eleitoral, sendo necessário, também, que se configure o conteúdo material de tal crime.
2. Sob o aspecto material, deve a conduta atentar contra a liberdade de exercício dos direitos políticos, vulnerando a regularidade do processo eleitoral e a legitimidade da vontade popular. Ou seja, a par da existência do tipo penal eleitoral específico, faz-se necessária, para sua configuração, a existência de violação do bem jurídico que a norma visa tutelar, intrinsecamente ligado aos valores referentes à liberdade do exercício do voto, a regularidade do processo eleitoral e à preservação do modelo democrático.
3. A destruição de título eleitoral da vítima, despida de qualquer vinculação com pleitos eleitorais e com o intuito, tão somente, de impedir a identificação pessoal, não atrai a competência da Justiça Eleitoral. (...)
STJ. 3ª Seção. CC 127.101/RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 11/02/2015.

Se o crime foi praticado no contexto eleitoral, mas não está tipificado na legislação eleitoral, o agente responderá por crime “comum”, sendo julgado pela Justiça “comum” federal. É o caso, por exemplo, do desacato contra juiz eleitoral:
PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME COMUM PRATICADO CONTRA JUIZ ELEITORAL. INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. A competência criminal da Justiça Eleitoral se restringe ao processo e julgamento dos crimes tipicamente eleitorais.
2. O crime praticado contra Juiz Eleitoral, ou seja, contra órgão jurisdicional de cunho federal, evidencia o interesse da União em preservar a própria administração.
3. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal do Juizado Especial Cível e Criminal da Seção Judiciária do Estado de Rondônia, ora suscitado.
STJ. 3ª Seção. CC 45552/RO, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 08/11/2006.

Os crimes eleitorais estão todos previstos no Código Eleitoral?
NÃO. Existem crimes eleitorais tipificados em outras leis que tratam sobre matéria eleitoral: Lei nº 6.091/74, Lei nº 6.996/82, Lei nº 7.021/82, LC nº 64/90, Lei nº 9.504/97.

De quem é a competência para julgar crimes eleitorais?
Da Justiça Eleitoral.
Essa competência poderá ser dos Juízes Eleitorais, dos Tribunais Regionais Eleitorais ou do Tribunal Superior Eleitoral. O TSE apenas em grau de recurso.

Feitos esses esclarecimentos que reputava necessários, vejamos o novo crime eleitoral inserido pela Lei nº 13.834/2019:

DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA COM FINALIDADE ELEITORAL
Art. 326-A. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1º A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto.
§ 2º A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.
§ 3º (VETADO)

Em que consiste o crime
O agente, ...
- movido por uma finalidade eleitoral (ex: para denegrir a imagem do adversário político),
- pratica alguma conduta por meio da qual atribui a determinada pessoa a prática de um crime ou ato infracional,
- mesmo sabendo que ela é inocente,
- fazendo com que as autoridades iniciem...
• uma investigação policial
• um processo judicial
• uma investigação administrativa
• um inquérito civil
• ou uma ação de improbidade administrativa.

Necessidade de criar o crime e diferença em relação à denunciação caluniosa do CP
O Código Penal também prevê, no art. 339, o crime de denunciação caluniosa, com redação muito semelhante ao art. 326-A do CE. A pena, inclusive, é mesma.
Diferenças entre o art. 339 do CP e o art. 326-A do CE:
Denunciação caluniosa com finalidade eleitoral
Denunciação caluniosa “comum”
Previsto no art. 326-A do CE.
Previsto no art. 339 do CP.
Exige finalidade eleitoral.
Não exige finalidade eleitoral.
O agente atribui a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente.
O agente atribui a alguém a prática de crime de que o sabe inocente.
Competência da Justiça Eleitoral.
Competência da Justiça Comum.

Antes da Lei nº 13.834/2019, caso o agente tivesse praticado essa conduta “com finalidade eleitoral”, ele respondia pelo do art. 339 do CP, sendo o crime julgado pela Justiça Comum Federal (obs: o crime era julgado pela Justiça Federal porque é praticado em detrimento da Justiça Eleitoral, que é um órgão da União, atraindo, portanto, a hipótese do art. 109, IV, da CF/88). Nesse sentido, confira este precedente do TSE:
Ação penal. Justiça Eleitoral. Incompetência. Denunciação caluniosa.
1.  Considerando que o art. 339 do Código Penal não tem equivalente na legislação eleitoral, a Corte de origem assentou a incompetência da Justiça Eleitoral para exame do fato narrado na denúncia - levando-se em conta que a hipótese dos autos caracteriza, em tese, ofensa à administração desta Justiça Especializada -, anulou a sentença e determinou a remessa dos autos à Justiça Federal.
2.  É de se manter o entendimento do Tribunal a quo, visto que a denunciação caluniosa decorrente de imputação de crime eleitoral atrai a competência da Justiça Federal, visto que tal delito é praticado contra a administração da Justiça Eleitoral, órgão jurisdicional que integra a esfera federal, o que evidencia o interesse da União, nos termos do art. 109, inciso IV, da Constituição Federal.
(Agravo de Instrumento nº 26717, Acórdão, Relator(a) Min. Arnaldo Versiani, Publicação:  DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 07/04/2011, Página 42)

Assim, com a inclusão do art. 326-A do CE praticamente a única mudança foi quanto à competência:
• Se o agente praticasse denunciação caluniosa com finalidade eleitoral antes da Lei nº 13.834/2019: ele responderia pelo crime do art. 339 do CP, sendo julgado pela Justiça Comum Federal.
• Se o agente praticar denunciação caluniosa com finalidade eleitoral depois da Lei nº 13.834/2019: ele responde pelo crime do art. 326-A do CE, sendo julgado pela Justiça Eleitoral.

Bem jurídico protegido
Esse crime tem por objetivo proteger, em primeiro lugar, a Administração da Justiça. Em outras palavras, pune-se o agente pelo fato de ter movimentado a Justiça (aqui entendida em sentido amplo) mesmo sabendo que a pessoa a quem se atribuiu o crime (ou ato infracional) era inocente.
Além disso, o tipo busca proteger também, secundariamente, a honra da pessoa a quem se atribuiu o crime ou ato infracional.

Dar causa
Significa provocar, dar início.
Essa provocação pode ser:
a) direta: quando o agente, em nome próprio, provoca as autoridades afirmando que a pessoa praticou o crime ou o ato infracional;
b) indireta: quando o agente se vale de meios dissimulados para provocar as autoridades. Exs: delação anônima, “plantar” droga na bagagem da vítima.

Sujeito ativo
Pode ser praticado por qualquer pessoa. Trata-se de crime comum.

Sujeito passivo
O Estado e a pessoa a quem se atribuiu falsamente a prática do delito.

Elemento subjetivo
É o dolo direto, considerando que o tipo penal utiliza a expressão “imputando-lhe crime de que o sabe inocente”.
Desse modo, é imprescindível que esteja provado que o agente tenha efetivo conhecimento da inocência da pessoa e, mesmo assim, dê causa à instauração do procedimento.
Não se admite o dolo eventual nem a modalidade culposa.
Além do dolo, o crime do art. 326-A do CE exige um elemento subjetivo especial (“dolo específico”): a finalidade eleitoral. Assim, o sujeito ativo deve ter dado causa à instauração motivado por objetivos eleitorais (ex: impedir que o adversário político concorra, fazer com que ele perca votos etc.).

Consumação
O crime se consuma quando a autoridade dá início à investigação policial, ao processo judicial, à investigação administrativa, ao inquérito civil ou à ação de improbidade administrativa.

Tentativa
É possível. Ex: o agente narra que determinada pessoa praticou um crime, mas o Delegado constata que se trata de uma falta delação antes mesmo de instaurar a investigação.

Anonimato
Se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto, haverá contra ele uma causa de aumento de pena de 1/6.
§ 1º A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve do anonimato ou de nome suposto.

Denunciação caluniosa privilegiada
Se o agente dá causa à instauração do procedimento imputando falsamente a prática de uma contravenção penal, haverá uma causa de diminuição de pena de 1/2 (metade).
§ 2º A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.

Calúnia eleitoral x denunciação caluniosa eleitoral
Calúnia (art. 324 do CE)
Denunciação caluniosa (art. 326-A do CE)
Art. 324. Caluniar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena. detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 10 a 40 dias-multa.
Art. 326-A. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
O agente apenas imputa falsamente um fato definido como crime.
O agente, além de imputar falsamente um fato definido como crime, leva essa imputação para as autoridades para que seja instaurado um procedimento contra a vítima.
O agente somente quer atingir a honra da vítima na propaganda eleitoral ou com fins de propaganda.
O agente quer que seja instaurado um procedimento ou processo contra a vítima.
Seu objetivo é eleitoral, mas não necessariamente relacionado com a propaganda eleitoral (ex: o agente dá causa à instauração de uma ação penal com o objetivo de que a vítima seja condenada e que, portanto, fique impedida de concorrer).
A imputação é unicamente de crime. Não existe calúnia se o agente imputa falsamente a prática de uma contravenção penal.
A imputação falsa pode ser de crime ou contravenção penal.

Ação penal
Ação penal pública incondicionada.
Todos os crimes eleitorais são de ação pública incondicionada, conforme prevê o art. 355 do Código Eleitoral:
Art. 355. As infrações penais definidas neste Código são de ação pública.

Suspensão condicional do processo
A figura típica do caput não admite suspensão condicional do processo porque a pena mínima é superior a 1 ano.
No caso da prática do § 2º, é possível a concessão do referido benefício.

Dispositivo vetado
O novo art. 326-A do CE previa a existência de um § 3º com a seguinte redação:
Art. 326-A (...)
§ 3º  Incorrerá nas mesmas penas deste artigo quem, comprovadamente ciente da inocência do denunciado e com finalidade eleitoral, divulga ou propala, por qualquer meio ou forma, o ato ou fato que lhe foi falsamente atribuído.

Este dispositivo foi vetado pelo Presidente da República. As razões expostas foram as seguintes:
“A propositura legislativa ao acrescer o art. 326-A, caput, ao Código Eleitoral, tipifica como crime a conduta de denunciação caluniosa com finalidade eleitoral. Ocorre que o crime previsto no § 3º do referido art. 326-A da propositura, de propalação ou divulgação do crime ou ato infracional objeto de denunciação caluniosa eleitoral, estabelece pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, em patamar muito superior à pena de conduta semelhante já tipificada no § 1º do art. 324 do Código Eleitoral, que é de propalar ou divulgar calúnia eleitoral, cuja pena prevista é de detenção, de seis meses a dois anos, e multa. Logo, o supracitado § 3º viola o princípio da proporcionalidade entre o tipo penal descrito e a pena cominada.”

Vale ressaltar que, com o veto, a conduta descrita neste § 3º continua sendo punida pelo § 1º do art. 324 do Código Eleitora, que tem a seguinte redação:
Art. 324. Caluniar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:
Pena - detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 10 a 40 dias-multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.

Vigência
A Lei nº 13.834/2019 entrou em vigor na data de sua publicação (05/06/2019).



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