quarta-feira, 30 de abril de 2025
A empresa de comunicação e o apresentador de programa de televisão não fazem parte, em regra, da cadeia de consumo para fins de responsabilidade pelo fornecimento de produto e/ou serviço anunciados
Imagine a seguinte situação adaptada:
Em 1999, João adquiriu uma cartela do “Bingão da
Felicidade”, um concurso organizado pela Confederação Brasileira de Tênis de
Mesa (CBTM). A compra foi realizada em uma casa lotérica autorizada.
O “Bingão da Felicidade” era amplamente divulgado no
Programa Leão Livre, apresentado por Gilberto de Barros Filho (conhecido como
“Leão”) e transmitido pela TV Record.
Durante o sorteio, a cartela adquirida pelo autor foi
contemplada com todas as 25 dezenas sorteadas, o que lhe daria direito ao 5º
prêmio do concurso: um veículo de luxo.
João, contudo, teve o pagamento negado pela CBTM. A
entidade organizadora alegou que a cartela apresentada era falsa, pois não
constava no banco de dados oficial das cartelas vendidas repassado pela Caixa
Econômica Federal, além de ter sido autenticada apenas após o sorteio.
Diante da recusa, João ajuizou ação de indenização
contra:
• a Confederação Brasileira de Tênis de Mesa
(organizadora do sorteio);
• a empresa de comunicação que veiculou o sorteio (TV
Record);
• Gilberto de Barros Filho (apresentador do programa).
No curso do processo, uma perícia técnica foi realizada e
concluiu que o bilhete premiado não era falso.
Emissora de televisão e apresentador alegaram que
eram partes ilegítimas
A TV Record
defendeu-se dizendo que apenas exibiu o programa, sem participar da gestão do
sorteio.
Gilberto
Barros também sustentou que sua atuação se limitava à apresentação do programa,
sem vínculo com a organização ou execução do evento.
O Tribunal de
Justiça, contudo, condenou a TV e o apresentador a indenizarem o autor.
O TJ/SP fundamentou sua decisão no art. 942 do Código Civil,
considerando que a emissora lucrou com a publicidade, que atraiu espectadores
para o programa no dia do sorteio, e que o apresentador atuou como garante da
integridade do certame:
Art. 942. Os bens do responsável
pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano
causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão
solidariamente pela reparação.
Parágrafo único. São
solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas
designadas no art. 932.
A emissora e o
apresentador interpuseram recurso especial, sustentando que não poderiam ser
responsabilizados por não integrarem a cadeia de fornecimento do serviço.
O STJ
deu provimento ao recurso da emissora e do apresentador?
SIM.
De fato, nos
termos do art. 942 do Código Civil, quando a ofensa for praticada por mais de
um agente, todos respondem solidariamente pela reparação do dano.
O STJ já se
manifestou no sentido de que a responsabilidade solidária decorrente desse
dispositivo legal decorre unicamente do fato de que as condutas dos envolvidos
contribuíram para a produção do resultado danoso. Nesse sentido, veja o
seguinte precedente:
A responsabilidade solidária que decorre do art. 942 do
CC/2002 se impõe pelo simples fato de as condutas dos agentes imputados terem
concorrido para a produção do resultado. Não é necessário, assim, que esses
agentes, ditos causadores do dano, tenham praticado, conjuntamente, a mesma
conduta ilícita. É suficiente que seus comportamentos, embora constituindo
ilícitos distintos, tenham concorrido para a produção do dano.
STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 1.305.095/MS, Rel. Min. Moura
Ribeiro, julgado em 13/2/2023.
Por sua vez, o art. 932 do Código Civil prevê hipóteses de
responsabilidade civil objetiva e solidária por fato de terceiro, estabelecendo
quais pessoas responderão solidariamente com os autores ou coautores do ato que
gerou o dano, conforme também previsto no parágrafo único do art. 942 do mesmo
diploma. Vejamos:
Art. 932. São também responsáveis
pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores
que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;
II - o tutor e o curador, pelos
pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;
III - o empregador ou comitente,
por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes
competir, ou em razão dele;
IV - os donos de hotéis,
hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo
para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;
V - os que gratuitamente houverem
participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.
Art. 942. Os bens do responsável
pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano
causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão
solidariamente pela reparação.
Parágrafo único. São
solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas
no art. 932.
Contudo, no
caso em exame, envolvendo a empresa de televisão e o apresentador, não se
verifica a incidência das hipóteses legais acima transcritas. Não é possível
responsabilizar solidariamente os recorrentes pelos prejuízos alegadamente
sofridos pelo autor, pois inexiste prova de que tenham participado da violação
a seus direitos.
Em primeiro
lugar, porque, a solidariedade não se presume, devendo decorrer de disposição
legal ou contratual (art. 265 do CC). Sendo uma situação excepcional, deve ser
interpretada restritivamente.
No caso
concreto, não se verifica qualquer conduta da emissora ou do apresentador que
tenha contribuído para o dano experimentado pelos recorridos (art. 942 do CC).
Tanto é assim que, na petição inicial, não lhes foi atribuída prática de ato
ilícito, mas apenas a responsabilidade pela divulgação do certame — que, vale
lembrar, não se configurou como publicidade enganosa ou abusiva.
Ademais, a
situação também não se enquadra em nenhuma das hipóteses de responsabilidade
objetiva solidária previstas no art. 932 do Código Civil, o que, em tese,
poderia justificar a responsabilização solidária, independentemente de culpa.
Assim, ausente
disposição legal ou contratual atribuindo aos recorrentes a responsabilidade
pela integridade dos produtos anunciados — como reconhecido pelas instâncias
ordinárias —, não há como imputar-lhes responsabilidade solidária no caso em
análise.
Em segundo lugar, ainda que se examine a controvérsia sob a
ótica do Código de Defesa do Consumidor, verifica-se que a legislação
consumerista, ao tratar da publicidade, impõe deveres ao anunciante, na
condição de fornecedor do produto ou serviço, e não àqueles que apenas elaboram
ou veiculam as peças publicitárias.
Diante disso,
a empresa de comunicação, ao veicular anúncios, atua como mera divulgadora,
vendendo espaço em sua grade de programação para que terceiros anunciem seus
produtos ou serviços. No exercício dessa atividade, não assume a posição de
fornecedora e, portanto, não integra a cadeia de consumo. Nesses casos, não há
relação de consumo entre a empresa de comunicação que divulga a publicidade e o
consumidor que adquire o produto ou serviço anunciado.
A chamada
“propaganda de palco”, como a do caso concreto, tampouco implica
corresponsabilidade da emissora de televisão ou do apresentador que atuou como
garoto-propaganda, já que, além da ausência de relação de consumo, o simples
fato de endossar a qualidade e confiabilidade do produto anunciado não
transforma tal pessoa em garantidora do cumprimento das obrigações do
fornecedor.
Ressalte-se
que o STJ não criou uma cláusula geral de imunidade em favor de empresas ou
profissionais da publicidade quanto aos danos eventualmente causados por
anúncios de terceiros. Em determinadas situações, poderá ser reconhecida a
responsabilidade subjetiva desses agentes, se demonstrada conduta própria que
tenha concorrido para a produção do dano — o que, no entanto, não se verificou
no caso.
Em outras
oportunidades, o STJ já reconheceu a responsabilidade de empresa de comunicação
que não agiu com a devida diligência ao veicular propaganda enganosa ou
fraudulenta. Confira:
Demanda indenizatória movida contra canal televisivo por
consumidor lesado pela veiculação de anúncio publicitário fraudulento.
Responsabilidade solidária da empresa detentora do canal de
televisão reconhecida pelas instâncias de origem por não ter o serviço por ela
prestado apresentado a segurança legitimamente esperada pelo público
consumidor.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.391.084/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, julgado em 26/11/2013.
No presente
caso, contudo, não se verificou defeito na propaganda, tampouco houve desídia
ou conivência da empresa jornalística recorrente com a veiculação de anúncios
manifestamente fraudulentos ou potencialmente lesivos. Não se está, portanto,
diante de situação excepcional que justifique a responsabilização da empresa de
comunicação ou do apresentador.
Dessa forma,
ausente nexo causal entre a conduta da emissora e do apresentador — no
desempenho da atividade publicitária para a qual foram contratados — e os danos
causados aos recorridos, não há que se falar em responsabilidade solidária no
caso concreto.
Em suma:
A empresa de comunicação e o apresentador de programa
de televisão não fazem parte, em regra, da cadeia de consumo para fins de
responsabilidade pelo fornecimento de produto e/ou serviço anunciados.
STJ. 4ª
Turma. REsp 2.022.841-SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 11/3/2025 (Info
843).
