quinta-feira, 18 de abril de 2013

Racismo praticado em redes sociais, competência para julgamento e conexão probatória





Olá amigos do Dizer o Direito,

Vamos hoje tratar de um julgado do STJ que pode ser transformado em uma excelente questão discursiva ou mesmo prática de sentença.

Imagine a seguinte situação:
O Ministério Público Federal iniciou uma investigação com vistas a apurar crime de racismo, praticado por intermédio de mensagens trocadas em uma rede social na internet contra negros e judeus.
A requerimento do MPF, o Juiz Federal de uma vara de São Paulo decretou a quebra do sigilo telemático de alguns perfis do Orkut®, sendo obtidos os dados dos usuários que postaram as mensagens criminosas.
Tendo em mãos o IP (protocolo de internet) dos investigados, o MPF percebeu que apenas alguns residiam em São Paulo e que os demais haviam enviado as mensagens de outros Estados do país, como por exemplo, o Ceará. Diante disso, o Parquet requereu o desmembramento da investigação, remetendo-se aos outros juízos federais a apuração quanto aos demais investigados que não haviam mandado as mensagens de São Paulo.
O Juiz deferiu o desmembramento, fundamentando a sua decisão no art. 70 do CPP:
Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução.

Em outras palavras, o magistrado afirmou que, quanto às mensagens enviadas pelo investigado do Estado de São Paulo, a Justiça Federal paulista seria competente. No entanto, quanto às mensagens encaminhadas pelo investigado que morava no Ceará, seria competente uma das varas federais localizadas naquele Estado.

Desse modo, o Juízo Federal de São Paulo decidiu que deveria haver o desmembramento das investigações, razão pela qual determinou a remessa de cópias dos autos a outras treze Seções Judiciárias, de acordo com a origem da conexão de cada investigado.

Chegando o procedimento na Seção Judiciária do Ceará, o Juiz Federal não concordou com o desmembramento e devolveu os autos ao Juízo Federal de São Paulo, alegando que havia conexão entre as mensagens enviadas pelo investigado do Ceará e aquelas remetidas pelos investigados paulistas. Logo, as investigações deveriam continuar a tramitar no Juízo Federal de São Paulo, que havia se tornado prevento.

Ao receber de volta os autos, o Juízo Federal da Seção Judiciária de São Paulo suscitou conflito de competência.

Vamos analisar os fatos acima narrados:

Por que estes crimes estão sendo apurados pela Justiça Federal?
A divulgação de mensagens racistas pela internet é competência da Justiça Federal com base no art. 109, V, da CF/88:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;

Para que o delito seja de competência da Justiça Federal com base neste inciso são necessários três requisitos:
a) Previsão do fato como crime no Brasil;
b) Compromisso de combater este crime assumido pelo Brasil em tratado ou convenção internacional; e
c) Relação de internacionalidade.

A relação de internacionalidade ocorre quando:
• iniciada a execução do crime no Brasil, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro;
• iniciada a execução do crime no estrangeiro, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no Brasil.

No caso, o racismo é previsto como crime no Brasil e se trata de um delito que o Brasil se comprometeu a reprimir com base em tratados internacionais. Além disso, a divulgação das mensagens racistas, apesar de ter ocorrido no Brasil, foi feita em rede social da internet (Orkut), de forma que seu conteúdo ficará disponível para ser visualizado por qualquer pessoa, em qualquer computador do mundo. Desse modo, estão preenchidos os três requisitos acima listados.

Qual dos dois Juízes está certo, segundo o STJ?
O Juiz Federal do Ceará.

Houve trocas de mensagens entre os investigados, ou seja, uma espécie de conversa racista. Cada um enviando mensagens racistas do seu computador, em Estados diferentes. 

Cada mensagem racista enviada por cada um dos investigados constitui um crime diferente de racismo. Logo, esta troca de mensagens entre os investigados não consiste em um crime único, mas sim em vários delitos de racismo.

Desse modo, em tese, cada um desses crimes de racismo poderia ser julgado na Seção Judiciária onde o investigado mandou a mensagem. No Ceará poderia ser processado o agente que mandou as mensagens de lá. Em São Paulo, o usuário que enviou o textos do Estado paulista e assim por diante.

Aliás, em regra, a competência para processar e julgar o crime de racismo praticado pela internet é do local de onde partiram as mensagens com base justamente no art. 70 do CPP, tendo em vista que, quando o usuário da rede social posta a manifestação racista, ele, com esta conduta, já consuma o crime.

No entanto, o STJ, mesmo reconhecendo isso, afirmou que, entre as condutas criminosas praticadas, existe conexão.

O que é conexão no processo penal?
No processo penal, a conexão ocorre quando dois ou mais crimes possuem uma relação entre si que faz com que seja recomendável que sejam julgados pelo mesmo juiz ou Tribunal.

Quais os fundamentos que justificam a conexão?
• Economia processual (é possível que sejam aproveitadas as mesmas provas);
• Melhor julgamento da causa (permite-se que o julgador tenha uma visão mais completa dos fatos);
• Evitar decisões contraditórias.

Os casos de conexão estão previstos em Lei?
SIM. Encontram-se elencados, de forma taxativa, no art. 76 do CPP:
Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:
I - se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;
II - se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;
III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Qual espécie de conexão existe neste caso concreto?
Conexão “instrumental, probatória ou processual”, prevista no art. 76, III, do CPP:
Art. 76.  A competência será determinada pela conexão:
III - quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Por que existe esta conexão probatória?
A circunstância na qual os crimes foram praticados (troca de mensagens em comunidade virtual) significa que houve o estabelecimento de uma relação de confiança entre os agentes, o que pode facilitar a identificação da autoria e a reunião de maiores provas.
Como os agentes conversam entre si sobre assuntos de interesse comum, possuindo uma afinidade de pensamentos sobre os temas, é bem provável que tenha sido criada uma relação de cumplicidade que poderá auxiliar nas investigações para que se descubram todos os envolvidos, inclusive aqueles que se escondem através de nomes fictícios.

Qual é a consequência processual pelo fato dos crimes serem conexos?
Em regra, os crimes conexos devem ser processados e julgados conjuntamente, consoante prevê o art. 79 do CPP. A isso se dá o nome de simultaneus processos.

Esta reunião de processos para julgamento conjunto não viola o princípio do juiz natural?
NÃO. Súmula 704-STF: Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados.

Os crimes conexos serão sempre reunidos para serem julgados conjuntamente?
NÃO. O CPP prevê situações em que os processos não serão reunidos, devendo ser julgados de forma separada. A doutrina afirma que existem casos em que a separação é obrigatória por força de lei (ex: incisos I e II do art. 79 do CPP) e outros em que a separação é facultativa, ficando a cargo da avaliação do juiz (art. 80 do CPP).

Um exemplo de separação obrigatória ocorre quando um dos crimes conexos já foi julgado. Neste caso, não haverá reunião dos processos (art. 82 do CPP). É como afirma a Súmula 235 do STJ: A conexão não determina a reunião dos processos, se um deles já foi julgado.

No caso concreto, não havia nenhuma hipótese de separação obrigatória e o juiz entendeu que era conveniente a reunião dos processos para julgamento conjunto. Qual juízo será competente para apreciar os feitos conjuntamente?
O juízo da vara federal de São Paulo, por ser este prevento.

A competência, na presente situação, deve ser fixada pela prevenção, ou seja, será competente o Juízo que primeiro conheceu dos fatos (Juízo Federal da 9ª Vara Criminal da Seção Judiciária de São Paulo/SP). O critério da prevenção é fixado pelo art. 78, II, c, do CPP:
Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras:
I - no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri;
II - no concurso de jurisdições da mesma categoria:
a) preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave; (obs: todos os crimes eram racismo).
b) prevalecerá a do lugar em que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual gravidade; (obs: não era possível saber, ainda, o número de infrações praticadas)
c) firmar-se-á a competência pela prevenção, nos outros casos;
III - no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação;
IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.

Ressalte-se que a presente solução já havia sido dada pelo STJ em outro caso semelhante:

(...) 1. Cuidando-se de crime de racismo por meio da rede mundial de computadores, a consumação do delito ocorre no local de onde foram enviadas as manifestações racistas.
2.   Na hipótese, é certo que as supostas condutas delitivas foram praticadas por diferentes pessoas a partir de localidades diversas; todavia, contaram com o mesmo modus operandi, qual seja, troca e postagem de mensagens de cunho racista e discriminatório contra diversas minorias (negros, homossexuais e judeus) na mesma comunidade virtual do mesmo site de relacionamento.
3. Dessa forma, interligadas as condutas, tendo a prova até então colhida sido obtida a partir de único núcleo, inafastável a existência de conexão probatória a atrair a incidência dos arts. 76, III, e 78, II, ambos do CPP, que disciplinam a competência por conexão e prevenção.
4.   Revela-se útil e prioritária a colheita unificada da prova, sob pena de inviabilizar e tornar infrutífera as medidas cautelares indispensáveis à perfeita caracterização do delito, com a identificação de todos os participantes da referida comunidade virtual. (...)
(CC 102454/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, julgado em 25/03/2009, DJe 15/04/2009)

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