quarta-feira, 1 de novembro de 2017

O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional



Ensino religioso confessional
A Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) traz a seguinte previsão sobre o ensino religioso:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

Em 2008, o Brasil assinou um acordo com a Santa Sé (suprema autoridade da Igreja Católica) a fim de dispor sobre a situação jurídica desta Igreja em nosso país.
Este acordo Brasil-Santa Sé (Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil) foi aprovado pelo Decreto Legislativo 698/2009 e promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto nº 7.107/2010.
O artigo 11, § 1º do acordo prevê o seguinte:
Artigo 11
A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.
§1º O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação.

Com base nesses dispositivos acima transcritos, em diversas escolas públicas são oferecidas aulas de religião com base nos fundamentos da Igreja Católica.

ADI
O Procurador-Geral da República ajuizou ação direta de inconstitucionalidade pedindo que fosse conferida interpretação conforme a Constituição ao art. 33, §§ 1º e 2º da Lei de Diretrizes e Bases e ao art. 11, § 1º do acordo Brasil-Santa Sé.
Na ação, a PGR afirmou não ser permitido que se ofereça ensino religioso confessional (vinculado a uma religião específica). Para o autor, o ensino religioso deve ser voltado para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica.
A única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas consiste na adoção de “modelo não confessional”, em que a disciplina deve ter como conteúdo programático a exposição das doutrinas, práticas, história e dimensões sociais das diferentes religiões, incluindo posições não religiosas, “sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores”, e deve ser ministrada por professores regulares da rede pública de ensino, e não por “pessoas vinculadas às igrejas ou confissões religiosas”.

O pedido do PGR foi acolhido? A ação foi julgada procedente?
NÃO. O STF julgou improcedente a ADI. Por maioria dos votos (6 x 5), os Ministros entenderam que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional, ou seja, pode sim ser vinculado a religiões específicas.

Laicidade do Estado x Liberdade religiosa
O Estado brasileiro é laico (secular ou não-confessional), ou seja, aquele no qual não se tem uma religião oficial. Isso está consagrado no art. 19, I, da CF/88:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

Ao mesmo tempo, a CF/88 também assegura a liberdade religiosa, nos seguintes termos:
Art. 5º (...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; 

Além disso, a CF/88 previu a possibilidade de ser oferecido ensino religioso na rede pública de ensino:
Art. 210. (...)
§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Desse modo, a partir da conjugação do binômio Laicidade do Estado (art. 19, I) e Liberdade religiosa (art. 5º, VI), o STF entendeu que o Estado deverá assegurar o cumprimento do art. 210, § 1º da CF/88, autorizando na rede pública, em igualdade de condições, o oferecimento de ensino confessional das diversas crenças, mediante requisitos formais previamente fixados pelo Ministério da Educação.

Assim, deve ser permitido aos alunos, que expressa e voluntariamente se matricularem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa, por integrantes da mesma, devidamente credenciados a partir de chamamento público e, preferencialmente, sem qualquer ônus para o Poder Público.

Em outras palavras, se a igreja católica ou uma igreja evangélica quiser oferecer ensino religioso confessional cristão, ministrado por um padre ou pastor vinculado à Igreja, ela pode. Se uma mesquita islâmica também assim desejar, igualmente pode. Se o representante de uma religião de matriz africana quiser oferecer as aulas, isso deverá ser permitido e assim por diante.

O STF entendeu, portanto, que a CF/88 não proíbe que sejam oferecidas aulas de uma religião específica, que ensine os dogmas ou valores daquela religião. Não há qualquer problema nisso, desde que se garanta oportunidade a todas as doutrinas religiosas.

O ensino religioso é, então, encarado da seguinte forma: o Estado disponibiliza a estrutura física das escolas públicas, assim como já acontece com alguns hospitais e presídios, para que seja usada para que a religião que assim desejar possa fazer a livre disseminação de suas crenças e ideais para aqueles alunos que professam da mesma fé e que voluntariamente queriam cursar a disciplina.

E não se trata de permitir proselitismo religioso, que tem por objetivo a conversão de determinada pessoa para que adira a uma religião, pois o requisito constitucional primordial é a matrícula facultativa do aluno que já professa a crença objeto da disciplina.

Imposição de conteúdo viola a liberdade religiosa
O respeito ao binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa somente pode ser atingido se não houver dirigismo estatal na imposição prévia do conteúdo das aulas religiosas, o que significaria verdadeira censura à liberdade religiosa.
O direito fundamental à liberdade religiosa não exige do Estado concordância ou parceria com uma ou várias religiões; exige, no entanto, respeito. O Estado deve respeitar todas as confissões religiosas, bem como a ausência delas, e seus seguidores, mas jamais sua legislação, suas condutas e políticas públicas devem ser pautadas por quaisquer dogmas ou crenças religiosas ou por concessões benéficas e privilegiadas a determinada religião.

Conteúdo das aulas é definido pela religião que está promovendo o curso
O STF rejeitou a tese do PGR de que as aulas de ensino religioso deveriam ser voltadas para a história e a doutrina das várias religiões, ensinadas sob uma perspectiva laica e “isenta”.
Para o Supremo, não faria sentido garantir a frequência facultativa às aulas de ensino religioso se esse se limitasse a enunciar, de maneira absolutamente descritiva e neutra, princípios e regras gerais das várias crenças.
Se fosse para fazer apenas a descrição das religiões sob os enfoques histórico, sociológico ou filosófico, a CF não teria dito que a frequência é facultativa. Aliás, existem matérias, como a filosofia, a sociologia e a história que já abordam, de forma descritiva, os movimentos religiosos, sendo tais disciplinas, em regra, obrigatórias.
A frequência é facultativa justamente porque as aulas podem sim ter proselitismo religioso, ou seja, divulgação positiva de uma determinada religião. Como o Estado é laico e vigora a liberdade religiosa, os alunos não podem ser obrigados a frequentar essas aulas, mas elas podem existir, conforme previsto no art. 210, § 1º da CF/88.

Pontos de contato entre o Estado e as religiões
Apesar de o Estado brasileiro ser laico, ele não é avesso à religiosidade. Ao contrário, existe um relacionamento entre o Estado e as Igrejas, conforme explica José Afonso da Silva:
“O Estado Brasileiro é um Estado laico. A norma-parâmetro dessa laicidade é o art. 19, I, que define a separação entre Estado e Igreja. Mas como veremos ao comentá-lo, adota-se uma separação atenuada, ou seja, uma separação que permite pontos de contato, tais como a previsão de ensino religioso (art. 210, §1º), o casamento religioso com efeitos civis (art. 226, §2º) e a assistência religiosa nas entidades oficiais, consubstanciada neste dispositivo. Enfim, fazem-se algumas concessões à confessionalidade abstrata, porque não referida a uma confissão religiosa concreta, se bem que ao largo da história do país o substrato dessa confessionalidade é a cultura haurida na prática do Catolicismo”. (Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 7ª ed, p. 97).

Assim, a separação entre o Estado e as igrejas, proclamada no art. 19, I, da CF/88, não prejudica a colaboração do Poder Público com entidades religiosas. Isso é, inclusive, previsto na parte final do referido dispositivo constitucional.
Citem-se, como exemplo, as parcerias do Poder Público nas áreas da saúde com as Santas Casas de Misericórdia (católicas) e com a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein.

Não se pode adotar o dirigismo estatal no ensino religioso
Em se tratando de ensino religioso, não se pode admitir o dirigismo estatal.
O dirigismo estatal pode se manifestar de duas formas:
1ª) Na intenção do Estado de elaborar um conteúdo único e oficial para a disciplina de ensino religioso, resumindo neste curso a exposição de aspectos descritivos, históricos, filosóficos e culturais de todas as religiões, matéria que deveria ser ministrada por professores do Estado sem vinculação com qualquer religião.
Esta forma de dirigismo estatal violaria a Consagração da Liberdade Religiosa, pois simultaneamente estaria mutilando diversos dogmas, conceitos e preceitos das crenças escolhidas e ignorando de maneira absoluta o conteúdo das demais. Além disso, estaria obrigando alunos de uma determinada religião a ter contato com crenças, dogmas e liturgias contrários à sua própria fé, em desrespeito ao art. 5º, VI, da CF/88.

2ª) Na intenção do Estado de optar pelo conteúdo programático de uma única crença, concedendo-lhe o monopólio do ensino religioso uniconfessional. Isso também seria inconstitucional por configurar flagrante privilégio e desrespeito ao Estado Laico, em clara violação ao art. 19, I, da CF/88. Não pode, portanto, haver o monopólio do ensino religioso uniconfessional.

Dessa forma, em se tratando de ensino religioso, o Estado não deve interferir para determinar o conteúdo programático nem para direcionar o estudo para uma religião específica.

Em suma:
O Estado, observado o binômio Laicidade do Estado (art. 19, I) / Consagração da Liberdade religiosa (art. 5º, VI) e o princípio da igualdade (art. 5º, caput), deverá atuar na regulamentação do cumprimento do preceito constitucional previsto no art. 210, §1º, autorizando na rede pública, em igualdade de condições, o oferecimento de ensino confessional das diversas crenças, mediante requisitos formais e objetivos previamente fixados pelo Ministério da Educação.
Dessa maneira, será permitido aos alunos que voluntariamente se matricularem o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa, por integrantes da mesma, devidamente credenciados e, preferencialmente, sem qualquer ônus para o Poder Público.
STF. Plenário. ADI 4439/DF, rel. orig. Min. Roberto Barroso, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 27/9/2017 (Info 879).

Parcerias
O Estado deverá estabelecer regras administrativas gerais que permitam a realização de parcerias voluntárias sem transferências de recursos financeiros, em regime de mútua cooperação com todas as confissões religiosas que demonstrarem interesse, para a concretização do art. 210, § 1º da CF/88, em termos semelhantes aos previstos na Lei 13.204/2015.
Para isso, as Secretarias de Educação deverão realizar prévio chamamento público para cadastrarem as confissões religiosas interessadas. Posteriormente, no período de matrícula da rede pública, deverão ser ofertadas as diversas possibilidades para que os alunos ou seus pais/responsáveis legais, facultativamente, realizem expressamente sua opção entre as várias confissões ofertadas ou pela não participação no ensino religioso.
Com a demanda definida, o Poder Público poderá estabelecer os horários, preferencialmente nas últimas aulas do turno, para que haja a liberação daqueles que não pretendam participar.


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