quinta-feira, 10 de maio de 2018

Não existe foro por prerrogativa de função em ação de improbidade administrativa proposta contra agente político


Dois temas geravam muita polêmica no Direito Administrativo:
1) A Lei de improbidade administrativa aplica-se ou não aos agentes políticos?
2) Existe ou não foro por prerrogativa de função (“foro privilegiado”) nas ações de improbidade administrativa?

Vamos entender com calma.

Crimes de responsabilidade
Os agentes políticos estão sujeitos à prática de crimes de responsabilidade.
Os crimes de responsabilidade são infrações político-administrativas praticadas por pessoas que ocupam determinados cargos públicos. Caso o agente seja condenado por crime de responsabilidade, ele não receberá sanções penais (prisão ou multa), mas sim sanções político-administrativas (perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública).

Crimes de responsabilidade x improbidade administrativa
Como os crimes de responsabilidade infrações são muito próximas (parecidas) com os atos de improbidade administrativa, surgiu a tese de que se o agente político pudesse ser condenado por crime de responsabilidade e também improbidade administrativa, haveria bis in idem.
Assim, defendeu-se o argumento de que os agentes políticos deveriam estar sujeitos apenas e tão somente aos crimes de responsabilidade (não sendo a eles aplicados os atos de improbidade administrativa).

Essa tese prevalece atualmente?
NÃO. O entendimento atual é o de que, em regra, os agentes políticos podem sim responder por ato de improbidade administrativa.
Vigora aquilo que a jurisprudência chamou de “duplo regime sancionatório”, ou seja, o fato de o agente estar sujeito a:
• crime de responsabilidade e
• improbidade administrativa.

Constituição prevê crime de responsabilidade e improbidade como institutos autônomos
Fazendo uma interpretação sistemática do texto constitucional, conclui-se que há nítida distinção entre os conceitos de improbidade administrativa e de crime de responsabilidade. 
A Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) foi editada com fundamento no art. 37, §4º, da CF:
§ 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

Por outro lado, a CF/88 trata sobre os crimes de responsabilidade em outros dispositivos:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; (Redação dada pela EC 23/99)
[...]
Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
[...]
V - a probidade na administração;
[...]
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
[...]
c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente; (Redação dada pela EC 23/99)

Assim, a tentativa de imunizar os agentes políticos das sanções da ação de improbidade administrativa a pretexto de que essas seriam de absorvidas pelo crime de responsabilidade não tem fundamento constitucional.

“Eu entendo que há, no Brasil, uma dupla normatividade em matéria de improbidade, com objetivos distintos: em primeiro lugar, existe aquela específica da Lei 8.429/1992, de tipificação cerrada mas de incidência sobre um vasto rol de possíveis acusados, incluindo até mesmo pessoas que não tenham qualquer vínculo funcional com a Administração Pública (Lei 8.429/1992, art. 3º); e uma outra normatividade relacionada à exigência de probidade que a Constituição faz em relação aos agentes políticos, especialmente ao chefe do Poder Executivo e aos ministros de Estado, ao estabelecer no art. 85, inciso V, que constituem crime de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a probidade da administração. No plano infraconstitucional essa segunda normatividade se completa com o art. 9º da Lei 1.079/1950.
Trata-se de disciplinas normativas diversas, as quais, embora visando, ambas, à preservação do mesmo valor ou princípio constitucional, – isto é, a moralidade na Administração Pública – têm, porém, objetivos constitucionais diversos.
(...)
Não há impedimento à coexistência entre esses dois sistemas de responsabilização dos agentes do Estado.”
STF. Plenário. Pet 3923 QO, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 13/06/2007;

Desse modo, o que prevalece atualmente é que os agentes políticos, em regra, submetem-se às punições por ato de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92), sem prejuízo de também poderem ser punidos por crimes de responsabilidade. Nesse sentido:
(...) O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que os agentes políticos se submetem aos ditames da Lei de Improbidade Administrativa, sem prejuízo da responsabilização política e criminal. (...)
STJ. 2ª Turma. AgInt no REsp 1607976/RJ, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 17/10/2017.

Por que se falou “em regra”? Existe algum caso em que o agente político não responderá por improbidade administrativa (devendo ser punido apenas por crime de responsabilidade)?
SIM. O Presidente da República.
Os agentes políticos, com exceção do presidente da República, encontram-se sujeitos a um duplo regime sancionatório, e se submetem tanto à responsabilização civil pelos atos de improbidade administrativa quanto à responsabilização político-administrativa por crimes de responsabilidade.

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PREFEITO MUNICIPAL. DUPLO REGIME SANCIONATÓRIO DOS AGENTES POLÍTICOS: LEGITIMIDADE. PRECEDENTES.
1. A jurisprudência assentada no STJ, inclusive por sua Corte Especial, é no sentido de que, "excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (art. 85, V), cujo julgamento se dá em regime especial pelo Senado Federal (art. 86), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4º. Seria incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza" (Rcl 2.790/SC, DJe de 04/03/2010). (...)
STJ. 1ª Turma. AgRg no REsp 1099900/MG, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 16/11/2010.

E quanto ao foro competente? Existe foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa?
NÃO. A ação de improbidade administrativa possui natureza cível. Em outras palavras, é uma ação civil e não uma ação penal.
Em regra, somente existe foro por prerrogativa de função no caso de ações penais (e não em demandas cíveis).
Ex1: se for proposta uma ação penal contra um Deputado Federal por crime que ele tenha cometido durante o seu mandato e que esteja relacionado com as suas funções, esta deverá ser ajuizada no STF.
Ex2: se for ajuizada uma ação de cobrança de dívida contra esse mesmo Deputado, a demanda será julgada por um juízo de 1ª instância.

Por que existe essa diferença?
Porque a Constituição assim idealizou o sistema. Com efeito, as competências do STF e do STJ foram previstas pela CF/88 de forma expressa e taxativa.
Nos arts. 102 e 105 da CF/88, que estabelecem as competências do STF e do STJ, existe a previsão de que as ações penais contra determinadas autoridades serão julgadas por esses Tribunais. Não há, contudo, nenhuma regra que disponha que as ações de improbidade serão julgadas pelo STF e STJ.

Lei nº 10.628/2012 previu foro por prerrogativa de função para a ação de improbidade:
Em 24/12/2002, foi editada a Lei nº 10.628, que acrescentou o § 2º ao art. 84 do CPP, prevendo foro por prerrogativa de função para as ações de improbidade. Veja:
Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
(...)
§ 2º A ação de improbidade, de que trata a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1º.

Diante dessa alteração legislativa, foi proposta a ADI 2797 contra a Lei nº 10.628/2002 e o STF julgou inconstitucional o referido § 2º do art. 84 do CPP, decisão proferida em 15/09/2005.
O Supremo decidiu que:
“no plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes. (...) Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal — salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X e 96, III —, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária.”
STF. Plenário. ADI 2797, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 15/09/2005.

Em suma, o STF afirmou que, como a Constituição não estabeleceu foro por prerrogativa de função para as ações de improbidade administrativa, a lei ordinária assim não poderia prever.
Desse modo, com a decisão da ADI 2797, ficou prevalecendo o entendimento de que as ações de improbidade administrativa deveriam ser julgadas em 1ª instância.

No dia de hoje (10/05/2018), o STF apreciou novamente o tema. O que decidiu a Corte? Existe foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa?
NÃO. O STF reafirmou, por 10 x 1, que:

Não existe foro por prerrogativa de função em ação de improbidade administrativa proposta contra agente político.
O foro por prerrogativa de função é previsto pela Constituição Federal apenas para as infrações penais comuns, não podendo ser estendida para ações de improbidade administrativa, que têm natureza civil.
STF. Plenário. Pet 3240/DF, Rel. para acórdão Min. Roberto Barroso, julgado em 10/05/2018.




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